[Conto de minha autoria, incluído na obra 39 Poemas e Contos e Contra o Racismo (Edição ACIDI)
No domingo em que a
Clara trouxe o Carlos, o meu avô atrasou-se. O meu avô chegou já depois de
todos termos almoçado. Na mesa, apenas estava ainda o meu pai e eu. O meu avô queixou-se
do barulho à noite junto de sua casa. Disse que a sua rua estava cheia de
vândalos e que a polícia não queria saber. (“A minha rua está cheia de
vândalos! A polícia não quer saber!”) Depois, saímos para o jardim e o meu avô viu
o Carlos brincando com o cão. Olhou para o Carlos como se ele fosse apenas um
Outro qualquer, sem nada que ver com a Clara, e ordenou-lhe que não tocasse no
cão (“Não toque no cão, ouviu?”). A seguir, houve muito barulho, tanto barulho,
demasiado barulho, muitos cacos rompendo a paz da rua, da casa, da minha nuvem.
Todos pareciam gritar. O meu avô gritava mais do que todos. O pai gemia como se
ralhasse-chorasse com as mesmas palavras. A mãe chamava pela Clara (“Clara!
Clarinha!”), muito aflita, com o cabelo caindo-lhe desajeitadamente sobe o
olhar. O meu irmão soltou uma gargalhada da casa de banho, aparecendo com a
escova dos dentes na mão e um fio de espuma escorrendo-lhe da boca. O meu avô
perguntou, berrando, ao meu pai:
- Mas afinal quem é o
preto?
O preto era, visto pelo
meu avô, o Outro. Acho que preto era mesmo a sua forma de dizer o Outro. O
Outro, para mim, já era o Carlos. O Carlos saiu de nossa casa com um olhar
triste. Saiu, segundo me pareceu, como se caminhasse dentro de uma nuvem sua.
Ainda assim, sorriu-me, e na boca vi-lhe o mesmo sorriso que costumo ver na
minha irmã Clara.
O avô não quis a sopa
que a mãe lhe ofereceu. Disse que a paciência tinha limites (“A paciência tem
limites, catano!”). Eu fui para o quarto da Clara e sentei-me a olhar para ela,
abanando um pouco a cabeça para a frente e para trás. Ela tocou na minha mão e
eu deixei. Se eu fosse capaz de falar, dizia-lhe ali que ela era um céu e que,
em ela querendo, eu a deixaria habitar a minha nuvem; que, em ela querendo, eu
lhe daria a minha nuvem. A minha nuvem, Clara, comigo dentro, para tu estares,
para tu viveres. Para tu, explico, fugires dos gritos que a brutidade produz e
espalha, como aranhas más.
O meu pai disse ao meu
avô que já era hora de crescer. Que já era hora de todos crescerem. O avô
começou a gritar, o pai começou a gritar. O meu avô gritava muito alto. O meu
pai gritava mais alto do que o meu avô. A minha mãe tinha os olhos molhados e
tocou na mão do meu pai. Gosto muito de ver a mão dela na mão dele. Certa
noite, vi a minha mãe e o meu pai amontoados, sob os cobertores da sua cama. Os
dois como se fossem um apenas. Assustei-me com o som que faziam, uma correria
de sussurros magoados. Eu julguei que estivessem ambos a chorar. Mas eles
olharam para mim e eu vi-senti que estavam felizes. O meu pai deslizou para o
seu lado da cama e a minha mãe sorriu para mim, inteira e linda, com os olhos
molhados. Ela quis saber se estava tudo bem comigo (“Está tudo bem contigo, meu
querido?”) e havia na sua voz e no seu rosto muita felicidade, tanta
felicidade.
No final daquela tarde
de domingo, a minha mãe tinha também os olhos molhados e a sua mão estava na mão
do meu pai. Notei como ela o mirava ternamente, como se lhe agradecesse o ter
gritado com o meu avô. O Carlos disse obrigado ao meu pai. (“Obrigado, senhor
José.”) A Clara sorriu. O meu irmão ficou em silêncio. O meu irmão não costuma
ficar em silêncio. O meu irmão ficou em silêncio, como se estivesse nessa
altura muito livre da brutidade habitual. O meu avô saiu de casa e agora vem visitar-nos
menos vezes.
Eu gosto do meu pai e
da minha mãe. Gosto um pouco menos do meu irmão, mas afinal o meu irmão não é
bem mau. Tem-me parecido menos bruto, o meu irmão. É por isso que digo que o
meu irmão não é bem mau. É só alguém incompletamente bom. Gosto mais, sem
dúvida, da minha irmã, a Clara. O Carlos está muitas vezes com ela. Já ninguém
o vê como Outro. Está com a minha irmã, é uma parte da minha irmã. É o Carlos.
O meu avô, há dias,
pôs-se a falar para mim. Tinha bebido o vinho todo da garrafa do almoço,
enquanto o pai e a mãe estavam no sótão a arrumar roupas e calçado. Creio que
não lhe passou pela cabeça que eu o entendesse. Falava como se não falasse.
Tinha a voz esponjosa como se tivesse a boca cheia de batatas cozidas. Lá foi
dizendo que gostava de toda a gente, até de mim. (“Até de ti, criatura!”). E que
ninguém o compreendia, que a família tinha endoidecido, que todos um dia se
haveriam de arrepender, que lhe haveriam de pedir desculpa, e que só quando o
Outro se fosse embora é que tudo voltaria à normalidade (“Ninguém me
compreende. A família endoideceu. Um dia, todos se hão-de arrepender e hão-de
pedir-me desculpa. Só quando o preto se for embora é que tudo volta à
normalidade…”)
O meu avô,
visto-sentido como eu o vejo-sinto, é que é o Outro.