domingo, 30 de maio de 2010
Escuridão
A escuridão é uma estrada grande
Aflita, misteriosa e engarrafada.
Além disso
Não existe.
Ribeira de Pena, 30 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma primeira versão deste texto foi escrita em 1996, integrando o volume de poesia Milésimo de Torga. Foto JJC.]
Alvão universal
Deste espaço ao alto do Alvão
Vejo tantas coisas e tão vivas
Rindo da ideia de nação
E de pátrias administrativas!
Sabei que esta beleza mundial
Esta poesia antes do verso
É evidência só do universo
E de Deus redondo, Deus geral.
A única coisa portuguesa
Que do Alvão lobrigo
Quando escrevo-digo
O que escrevo-digo
Sou eu e a língua portuguesa.
Mas
A culpa não é do Alvão
Desta paisagem
Do meu olhar vizinha,
Ou deste irregular chão
De viagem:
É minha
Apenas minha.
Ribeira de Pena, 30 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma primeira versão deste texto foi escrita em 1996, integrando o volume de poesia Milésimo de Torga. A imagem-supra foi colhida - com a devida vénia - em http://cm-vilareal.pt.]
sábado, 29 de maio de 2010
Auto mínimo sobre a Verdade e a Morte
CRISTO: De modo que ressuscitei, para os homens acreditarem na vida eterna.
PLATÃO: E eles acreditaram?
ZÉ POVINHO: Eu cá não acreditei totalmente, digo-vos, mas pelo sim pelo não porto-me bem…
PLATÃO: Mas que queres dizer com isso?
CRISTO: Não percebes? Este homem de boa vontade sabe, em seu coração, que o caminho do bem leva à vida eterna…
PLATÃO: E vós, Jesus de Nazaré, acreditais nisso?
CRISTO: Pois se eu próprio sou a vida eterna, Platão…
PLATÃO: A única vida eterna é a soma de todas as vidas provisórias que aos homens é dado viver.
ZÉ POVINHO: Se a conversa mete contas, retiro-me já…
CRISTO: As verdadeiras contas é meu Pai quem as faz.
PLATÃO: Mas vós já tendes idade para fazer contas sozinho.
CRISTO: Amigo grego, lamento muito que não tenhas fé. Sem esse dom, jamais poderás acreditar seja no que for!
PLATÃO: Eu acredito em algumas coisas. Por exemplo, na necessidade da verdade…
CRISTO: E na necessidade do bem?
PLATÃO: O bem é necessário, sem dúvida. Mas o bem é o mesmo que a verdade.
ZÉ POVINHO: Eu cá gostava era de viver num mundo justo!
PLATÃO: Zé, escuta-me: a justiça, o bem e a verdade são a mesma coisa.
CRISTO: Pois eu sou essa Coisa completa que tu dizes. Sou a justiça, a verdade e o bem.
ZÉ POVINHO: E por isso estais no céu... Bem dizíeis vós que o vosso reino não era deste mundo!
PLATÃO: Pois o que o mundo precisava era que o reino dos céus não fosse nos céus.
CRISTO: Tens a certeza?
PLATÃO: Sou homem. Não tenho a certeza de nada. Mas sei que a justiça, o bem e a verdade valem a pena aqui e agora, no mundo dos homens…
ZÉ POVINHO: A mim tal me parece também, Jesus… Sem querer ofender, bem entendido…
CRISTO: Mas vós os dois, dizei-me, que sabeis afinal da justiça, do bem, da verdade?
PLATÃO: Eu sei delas o que se sabe quando nos falta o que nos faz falta.
ZÉ POVINHO: Platão, explique-se lá melhor, por favor, para eu ver se estou de acordo…
PLATÃO: É simples. Sabemos algo sobre a justiça quando sentimos a injustiça…
ZÉ POVINHO: Bem pensado. Percebemos que nos faz falta o contrário do que sofremos, não é? O meu avô dizia que o remédio começa na doença…
CRISTO: Escutai-me, ambos. A única verdade, neste mundo mortal, é a morte.
PLATÃO: É esse o maior problema da humanidade, tendes razão.
CRISTO: E tu, filósofo sem fé, como o resolves?
PLATÃO: Aceitando a morte, por ser verdade a morte.
CRISTO: Ah! Resolves um problema, aceitando-o?
PLATÃO: A verdade é a verdade. A verdade resolve. A verdade nunca é um problema.
ZÉ POVINHO: Ou, como dizia o meu avô, o que não tem remédio remediado está!
CRISTO: Chega! É a última vez que vos trago comigo em passeio sobre as águas do rio Jordão.
Vila Real, 29 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra (rio Jordão) foi colhida, com a devida vénia, em wikipedia.]
sexta-feira, 28 de maio de 2010
Nota mínima sobre o número máximo de deputados
Este frenesim da austeridade tem pelo menos um lado positivo: mostrar, sem diáfanos mantos de fantasia ou eufemismos, a nudez forte do desperdício de fundos públicos que em muitas repartições do Estado vem durando há anos. Ora, depois de casa roubada, trancas na porta. O país anda de calças na mão, à vista de toda a gente, equacionando drásticos cortes na despesa.
Voltou entretanto ao debate, neste contexto agreste da crise económico-financeira, a questão do número de deputados e (adivinha-se) do sistema eleitoral português. Corre na internet, aliás, uma petição a exigir a diminuição do total de parlamentares com assento na Assembleia da República. É uma ideia cheia de bondade, mas também ingénua e até perigosa.
Visto o problema de repente, estamos todos condenados a concordar: poupa-se dinheiro, reduzindo os indivíduos à mesa do orçamento republicano; aperta-se o crivo da qualidade dos deputados, expulsando medíocres que tanto faz que lá estejam como não; renova-se a dinâmica do trabalho parlamentar, fazendo-se o mesmo ou melhor com menos recursos. Mas esta é, perdoai, uma visão superficial do problema.
A redução do número de deputados implicaria, se feita à pressa e sem critério, uma redução sobretudo da qualidade da vida democrática. Objectivamente, redundaria – para já – na quase extinção dos grupos parlamentares dos partidos mais pequenos. Mas eu creio que forças como o CDS-PP, o PCP e o Bloco de Esquerda são importantes, não obstante a sua menor expressão eleitoral na actualidade.
É preciso pensar no que seria do debate político e do exercício da governação se à compita estivessem apenas o PS e o PSD, repetindo-se e perpetuando-se no poder em disfarçadas poses de alternância.
Talvez esse modelo trouxesse “estabilidade”, mas só se por estabilidade entendermos aquela calma que, segundo se crê, há nos cemitérios municipais.
Ribeira de Pena, 28 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra (a famosa Porca, de Rafael Bordalo Pinheiro) foi colhida - com a devida vénia – em http://raivaescondida.wordpress.com.]
quinta-feira, 27 de maio de 2010
Direito à moderada alienação
Leio no JN de hoje a história de um português de 38 anos que foi ver um treino da selecção portuguesa, tendo levado consigo, ao colo, um filho.
Num frenesim leonino, notável em época de leões tão magros, ele queria sobretudo ver o Liedson:
«Que é do Liedson? Onde está o Liedson?»
Enfim, tratou-se, de acordo com o enunciado jornalístico, de um dia muito feliz para aquele sportinguista beirão.
Ah, falta dizer que a vida deste homem não tem corrido especialmente bem. Está desempregado e tem uma família a seu cargo.
Agora, digo-vos: sou incapaz de levantar um só dedo contra a pontual alienação em que, como aquele concidadão entusiasmado, incorremos todos, uma vez por outra: futebol, alguma literatura, sono, religião, certa música, viagens em busca do sol, converseta de amigos sobre nenhum sonho em especial, televisão.
É que a realidade é insuficiente, senhores. De vez em quando, sabe bem voar para lá (ou para cá) da brutidade quotidiana. Como diria o meu amigo Daniel, antes isso que andar na droga.
Ribeira de Pena, 27 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida – com a devida vénia – em http://desporto.sapo.pt.]
Lírica psico-hípica
Cavalo que ouço correr
Na noite de estar inquieto
É como alguém a morrer
Cansado de estar inquieto;
Cavalo da solidão
Dos sonhos do meu penar –
Cavalga na minha mão
Não deixes de cavalgar;
Cavalo das minhas veias
De ininterruptas corridas
Sonha os sonhos que me anseias
Sara a dor destas feridas;
Cavalo do meu pensar
Cavalo do meu penar
Cavalo do meu esperar –
Não deixes de cavalgar.
Ribeira de Pena, já 27 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma versão deste poema foi originalmente escrita em 1996, integrando – então – o volume Milésimo de Torga. A imagem-supra (capa do single “Cavalos de Corrida”, dos UHF) foi colhida – com a devida vénia – em http://www.cultkitsch.org/musica/tugas.]
Breu de Bragadas
terça-feira, 25 de maio de 2010
Possibilidades de Chuva
Viagem de automóvel, fim de tarde.
Diviso na paisagem, para lá das árvores e dos montes, um lindo céu de Maio com nuvens de muitas formas: há o mapa de Portugal, um velho de longas barbas, um girassol cinzento, um gato adormecido, uma chaminé virada para baixo, um coração assimétrico como o que eu talvez desenhasse.
Às cinco e meia, chove sobre a região de Basto.
Sinto bem no corpo, entre o carro e o Café, esta evidência física. E intimamente espero que a água vinda do céu sobre mim seja, entre tantas possibilidades, aquela assimetria de amor.
Ribeira de Pena, 25 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
segunda-feira, 24 de maio de 2010
Ler Fotografias
Durante uma noite quase inteira, estive a ver fotografias de família. Era uma espécie de arca carregadinha de álbuns e de avulsos rectângulos a cores ou a preto e branco e, a princípio, andei por ali como quem só está de passagem. Mas, como acontece com certos frutos (denotativos ou simbólicos), acabei por me demorar, entregue à volúpia característica dos vícios.
Vi lugares que nunca mais me viram. Revi rostos que são já definitivamente outros (e isto inclui o meu). Vi vivos que mudaram de condição. Vi a minha mãe, num sítio onde nunca pude estar, sorrindo com esperança no futuro. Vi cães, saltitantes personagens da minha infância, que já morreram. Vi casas onde estive e onde a vida era tão novidade. Vi o meu pai vestindo-se à pressa, com ar maroto, junto a nós, muito longe de imaginar a sua ausência à nossa roda. Vi a minha filha tão antes de ser demasiado grande para trazer ao colo. Vi a minha namorada num degrau da casa madeirense onde talvez lesse as minhas cartas de seduzir.
Deitei-me quase de madrugada, aflito como quem perdeu subitamente o pé na profundidade do tempo. Custou-me a adormecer. A minha mulher perguntou-me se eu estivera a ler, e eu disse-lhe, sem mentir, que sim.
Gosto de fotografias, isso é certo. Parecem-me muitas vezes mais vivas que eu olhando-as. Tantas vezes, é como se reconhecesse a minha verdadeira vida naquela imobilidade de ontem.
Coimbra, 24 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
Pergunta de algibeira (2)
Alguns senhores importantes acham que o Estado resolve o seu problema (aliás, nosso problema) reduzindo a despesa. Isto significa, em especial, cortar em salários (públicos e privados) e em serviços (sobretudo, públicos). O Estado explica as suas medidas mais ou menos nestes termos: não há dinheiro, não se paga. Ou: não há receita, não pode haver despesa.
Vista a coisa do lado de quem trabalha, a solução tem consequências: se já havia pouco dinheiro em seus bolsos humildes, agora passa a haver menos. E apetece perguntar: se tomarmos para nós o raciocínio – não há dinheiro, não há despesas -, podemos cancelar ou diminuir os pagamentos ao Banco, à empresa de leasing, à EDP, ao supermercado, etc.?
Dizem-me que não.
De modo que a diferença entre o Estado e nós está em que, se nós não pagarmos, vamos presos.
Coimbra, 23 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
Pergunta de algibeira (1)
sábado, 22 de maio de 2010
O Outro
Roberto Bolaño, chileno, falecido em 2003, é o autor de um fenómeno de vendas intitulado 2666 (obra que é em verdade um conjunto – coerente – de cinco romances), que li no mês passado. Li 2666, digo-vos, como quem entra numa infinita floresta encantada e perigosa de mais de mil páginas. Um grande livro grande.
Na semana passada, graças ao meu cunhado Conceição (que tem vindo a comprar o que há em Portugal deste romancista), pude ler também O Terceiro Reich, editado pela Quetzal. Trata-se também de um romance espantoso, contado de forma vertiginosa, cheio de cor local e de abismos psicológicos. Mas o que, neste curso espaço blogueiro, queria dizer sobre o livro é um pormenor de toda a importância neste jogo intemporal de escrever e de ler. Dir-vo-lo-ei nos últimos três parágrafos.
Ao longo de 46 trechos (como páginas de um Diário, ou de um esboço de Diário), estamos perante certa história passada com o narrador e a namorada, em férias numa praia de Espanha. Aí encontram outros habitantes da intriga e da diegese, num contexto de convívio nem sempre seguro e aprazível, eivado de algum mistério e, finalmente, de adivinhada tragédia. O relato dos acontecimentos cruza-se com um estranho jogo de sociedade denominado “Terceiro Reich”, espécie de monopoly e batalha naval em versão mais sofisticada: o jogo funda-se na própria circunstância histórica e geográfico-temporal dos anos 40 do século XX, e permite a vitória ao jogador mais hábil (representante dos aliados ou do exército nazi).
O narrador (não o autor, note-se) da história é alemão e tem como adversário – feroz, determinado, obcecado com o triunfo – um enigmático indivíduo, vítima de Hitler e do nacional-socialismo. Algumas personagens, à roda do alemão, avisam dos perigos de jogar “aquele jogo” com adversário tão perigoso e talvez letal.
No final do romance, vemos como o narrador, na sequência da derrota, se resigna a uma espécie de inevitabilidade: morrer às mãos do oponente.
Mas não é isso que sucede: o castigo que o vencedor (pelos aliados) impõe ao alemão é tão-só trocar, por momentos, de lugar, de ângulo, de perspectiva. Para que do lado de cá (junto ao mar, no desconforto humilde da areia, do frio e do lento marulhar das embarcações), por algum tempo fique o narrador, ali misturado com a paisagem habitualmente vista da janela do seu hotel, no conforto do quarto.
Que melhor castigo para o derrotado daquele Reich de brincar?
A literatura consiste, em grande medida, nisto mesmo: obrigar-nos a ver um problema (um assunto, um universo, uma pessoa, um jogo) pelo outro lado.
O outro lado, aqui, quer dizer o lado do outro.
Coimbra, 22 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
quinta-feira, 20 de maio de 2010
Feira Medieval e Quinhentista do Arco
Há três anos, o Agrupamento de Escolas do Arco levou a efeito uma “Feira Medieval”, que congregou esforços de alunos, professores e comunidade educativa em geral. Houve música, poesia, teatro de sabor vicentino, autos de fé, torneios de perícia guerreira, gastronomia de outros séculos, guarda-roupa e cenários adequados, música carregada de tempo e religiosidade, dança, frades, cavaleiros, damas e fidalgos, bobos, leprosos, escribas, vendedores, etc.
Retenho dessa mágica empresa certa impressão tão funda e bonita que quase temo anunciar-vos, aqui, a 2.ª edição de um evento assim. Será possível repetir, no presente, a maravilhosa atmosfera daquela festa?
A verdade é que a Feira Medieval (e, agora, também Quinhentista) volta ao Arco. Nos dias 11 e 12 de Junho, portanto, viaja-se livremente na História.
Os arcoenses (eu escrevo assim: “arcoenses” e não “arcuenses”, perdoai) devem estar muito satisfeitos. E eu, que sou “do Arco”, nos termos da minha circunstância humana e profissional, também estou.
Lá irei, de certeza, antecipadamente orgulhoso do brilho que alunos, professores e, enfim, comunidade educativa da minha Escola hão-de conseguir.
Até já.
Ribeira de Pena, 20 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
Acordo, que remédio
Participei, no final da tarde de hoje (5.ª feira), no Auditório Municipal de Ribeira de Pena, numa sessão de esclarecimento sobre aspectos do Novo Acordo Ortográfico. A sessão foi promovida pelo Departamento de Línguas do Agrupamento de Escolas de Ribeira de Pena.
Viajámos, com algum humor e indisfarçada inquietação, pelas curvas, rectas, avenidas e armadilhas desta variegada (e dolorosa) novidade.
A verdade é que, aquém e além todas as azias, pouco mais resta aos educadores e professores, enquanto soldados ao serviço da legal potestade, que engolir os sapos atlânticos do acordo – e ensinar as nossas crianças e os nossos jovens (etc.) a escrever segundo novas regras.
De todo o modo, acho eu, a nossa Pátria há-de ser sempre a Língua Portuguesa. Aliás, a nossa Pátria HÁ DE ser sempre a Língua Portuguesa.
Assim é que está correcto. Aliás, CORRETO.
(Mas custa, oh, se custa!)
Ribeira de Pena, 20 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra representa o Padre António Vieira, sublime cultor da nossa Língua, como justamente sublinhou Pessoa, e foi colhida - com a devida vénia - em http://www.historiadoensino.blogspot.com.]
quarta-feira, 19 de maio de 2010
Bondade Silvestre
Gostava, Deus, que a minha história fosse um romance de Júlio Dinis, e que o mundo fosse feito de árvores de frutos, entardeceres tranquilos, madrugadas esperançosas e soalheiras, alguns amores, bondade silvestre.
Ali, um regato fresco.
Aqui, uma casa antiga de janelas limpas, rescendendo a alecrim ou a honesto refogado.
Em baixo, vista da varanda que a minha mãe nunca teve, uma velha tia alimentando as galinhas e os patos.
Este meu amor antiquíssimo pela narrativa dinisiana representa bem uma filosofia e uma certa vida correndo, algures entre Rousseau e Alberto Caeiro (ou Horácio), ambas nascidas muito na infância da Rua Dr. Manuel Almeida e Sousa, da Relvinha, da Pedrulha ou da Soalheira, nesse tempo estrangeiro em que não tinha ainda sido inaugurada a mortalidade.
Leio a Morgadinha como se o meu pai me levasse, pela mão, ao futebol, ou se a minha mãe fosse à tia Lurdes provar um vestido para o casamento do primo Armandito. A minha rua, então, volta a ser mais campo que cidade, e eu também.
Ribeira de Pena, 19 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto-supra, tirada no jardim da casa n.º 90 da minha rua e datada, salvo erro, de 1970, inclui o irmão Zé-Tó, a irmã Fátima et moi-même.]
terça-feira, 18 de maio de 2010
Hoje Jogo Eu
Esta era uma rubrica do velhinho “A Bola”, muitas vezes território para crónicas maravilhosas de Carlos Pinhão, um grande escritor e um grande jornalista. Tomo o nome de empréstimo para, hoje, desabafar um bocadinho em matérias futebolísticas. Divido esta croniqueta em pontos, com subtítulos indicativos.
1. MOURINHO:
Os patrioteiros do nosso país acham que José Mourinho é um herói universal. Como em todas as grandes e populares mentiras, esta ideia tem um bocadinho de verdade. O setubalense já demonstrou, ao longo de cerca de uma década, que é um extraordinário líder, com personalidade, carisma, sentido de responsabilidade, invulgar sentido estratégico, poder comunicativo e gestão psicológica dos seus jogadores. Em relação à presente época, o Inter ganhou com mérito a liga italiana e, graças a um vergonhoso ferrolho (em Barcelona) e à mão amiga de Olegário Benquerença (em Milão), está na final da Champions. Pode, aliás, vir a ser campeão europeu, mas essa circunstância não apaga, na memória de quem ama o Futebol, a injustiça que caiu sobre os espanhóis da Catalunha.
Para se ter a noção da fragilidade do argumentário de quem (só) vê em Mourinho o melhor do mundo “porque ganha e pronto”, basta pensar que uma derrota na final, lida com essa superficialidade, fará do treinador interista ou do treinador do Bayern um mau treinador “porque perdeu”. Seria justo?
Os burros cheios de certezas absolutas e cheios de pátria da boca para fora, como é habitual, verão numa opinião como a minha uma espécie de traição a Portugal. Bondosamente explico a essa gente que o meu país, neste caso, é o Futebol, e é nessa perspectiva que, respeitando embora Mourinho, não conseguiria nunca preferir o futebol do Inter em Barcelona ao futebol do Barça em Milão. Guardiola, perdoai-me a provável excentricidade, foi melhor, na Champions, do que o português.
2. QUEIROZ
É uma dor de alma aturar Carlos Queiroz em lugares de chefia. O seu futebol é tão previsível e cinzento como o de Mourinho, mas os resultados são piores. É, como dizia André Pipa no Correio da Manhã, “errático e inseguro”, mas gosta de vestir um certo fato domingueiro de critério & rigor para impressionar os indígenas. A exclusão de Quim, Rui Patrício e João Moutinho é um escândalo. Sem se rir e aparentemente sem vergonha do que dizia, explicou (?) que “Quim tinha presente mas não tinha futuro”. É, senhores, o mesmo que convocou recentemente o suplentíssimo Hilário, cuja idade deve ser a mesma do guarda-redes campeão do Benfica.
Eu sou admirador de Liedson, de Deco e de Pepe. São, em minha opinião, jogadores de selecção, mas não da selecção portuguesa. Talvez merecessem jogar na selecção do Brasil, até. (Quereis maior admiração que esta?) Subjaz à sua inclusão na equipa portuguesa a noção (pouco edificante) de que vale tudo para sermos melhores. Eu gostaria que fôssemos melhores com jogadores nacionais. Xenofobia, dirão-pensarão alguns. Mas eu quero Liedson no meu Sporting. Onde está xenofobia?
(Abro uma excepção nesta irredutibilidade, já agora: Pepe quis sempre jogar pela selecção portuguesa, excluindo à partida qualquer primitiva frustração por não ter sido chamado, antes, pelo Brasil. Mais: veio para Portugal como juvenil, completando aqui, portanto, a sua formação e sendo, de certo modo, “um produto do futebol português”.)
Ponto de ordem: até treinada por Queiroz a selecção portuguesa pode conseguir bons resultados. Para os resultadistas, aliás, que normalmente nem sequer gostam de futebol, tudo estará bem se a selecção fizer um grande Mundial (e bastará, para isso, que Ronaldo extraterrestre decida aparecer na África do Sul). Mas nada apaga estes erros queirozianos e estas queirozianas injustiças, que alguns prudentemente ignoram e só sublinharão se o Mundial “nos” correr mal.
Eu vou torcer pela equipa portuguesa. Questão de amor, talvez. Mas o amor não tem de ser cego; eu não me demito de pensar.
3. PAULO SÉRGIO:
Tenho a ideia de que se Mourinho, por alguma razão, viesse treinar esta época o Sporting, começaria por tirar da cartola, já, um “facto” que motivasse e unisse os sportinguistas. Este sentido de timing é magistralmente utilizado pelo ora treinador do Inter, sempre que necessário, e é sem dúvida uma das razões para o seu sucesso.
Paulo Sérgio, que fez muito bem em humildemente reconhecer a modéstia, por agora, do seu currículo, perdeu uma grande oportunidade de ganhar os adeptos de imediato. Bastaria que, em vez de respeitosamente considerar que Moutinho poderia ter sido seleccionado por Queirós, tivesse gritado-garantido (alto e bom som) que o seleccionador nacional é um incompetente e que Moutinho e Rui Patrício foram vítimas dessa incompetência.
Teria Paulo Sérgio perdido, talvez, algumas amizades. Mas a nação sportinguista estaria consigo.
Lembrei-me agora, já a terminar, de uma expressão inglesa que descreve bem a aguda eficácia de Mourinho: “killer instinct”. Mourinho tem; outros não têm, ou têm menos.
Ribeira de Pena, 18 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida, com a devida vénia, em http://esporte.ol.com.br.]
segunda-feira, 17 de maio de 2010
Detective de Bicicleta
Adquiri por menos de 3 Euros, em saldos, um filme de 2004, intitulado Crimes Ocultos (Murdoch Mysteries, no original), com realização de Michael DeCarlo e John L’Ecuyer. Trata-se de uma história de crimes e detectives (inspirada, aliás, num romance policial homónimo de Maureen Jenninggs).
O filme é feito, como outros do género, de mistério e acção em doses adequadas. O detective, protagonista da história, recorre a instrumentos e métodos científicos, analisa minuciosamente pistas, interroga suspeitos, revisita registos policiais (casos antigos, cadastros) e sofre pressões do poder social e político.
A quem me estiver a ler parecerá, sem dúvida, que pouco ou nada difere de séries televisivas como CSI ou quejandas. Mas há, nesta história, uma nuance: passa-se no século XIX. O detective viaja de bicicleta, quase não usa armas, não tem computadores nem telefones (ou telemóveis) à disposição. A tecnologia de vanguarda é, ali, um rudimentar microscópio que permite identificar certa fibra presa nas unhas de um cadáver. A pressão da hierarquia tem a ver com a conveniência de, se necessário, fechar os olhos a crimes de senhores importantes e de, se possível, encontrar um bode expiatório entre algum criado anónimo.
Talvez se pudesse dizer que, no fundo, a intriga imita o que, hoje, nos cinemas e na televisão, superabunda em histórias que se repetem que se repetem que se repetem. Mas reencontrei neste filme uma lentidão reconfortante: um tempo em que havia tempo para o detective pensar. Um tempo em que o homem era mesmo o centro da acção, independendo de aparatos científicos e tecnológicos, de análises ao dna ou de ciberpesquisas sofisticadas.
Anda à roda desta circunstância o facto de eu serodiamente preferir ainda Conan Doyle, Agatha Christie (ou mesmo Enid Blyton e Earl Stanley Gardner) a CSI & derivados. E, de forma concomitante, o facto de preferir o ritmo da leitura ao ritmo da tele-recepção.
E eis aqui, reiterado nesta reflexão sobre um filmezito comprado em saldos, um facto fundamental da minha existência: o de, desde que me conheço, eu ter saudades de um passado anterior ao meu próprio século.
Ribeira de Pena, 17 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra é um pormenor da capa do DVD. Os intérpretes principais do filme são Peter Outerbridge, Keeley Hawes, Flora Montgomery, Colm Meaney e William B. Davis.]
domingo, 16 de maio de 2010
A Oficina Literária (Fábula)
1.
Era uma vez um homem que tinha uma livraria. O homem era filho de um conhecido comerciante e de uma costureira. Antes de o homem ter uma livraria, os seus pais haviam mantido um bem diferente negócio numa cidade pequenina, junto ao mar: uma loja de roupas que fornecia também serviços de ajustamento ou reparação de peças de vestuário (ali compradas ou não).
Até à reforma, a loja fora um sucesso, mas o filho do casal formara-se entretanto em letras e preferira investir no negócio dos livros.
Não obstante terem pena, os pais venderam a loja e financiaram uma livraria.
Inspirado pela experiência profissional da filiação, o herdeiro decidiu que, além da venda de literatura, aquele espaço comportaria um serviço de reparação de livros com defeito. Mas tinham de ser livros comprados na sua loja, porque o homem era ainda solteiro e não podia estar a ocupar-se de todas as peças defeituosas do universo literário.
À secção de reparações de livros avariados chamou, sem grandes investimentos de imaginação, “Oficina Literária”.
A história que aqui se conta aconteceu logo ao segundo dia de funcionamento deste serviço.
2.
Numa manhã fria de Março, aí pelas dez horas, duas pessoas chegaram, praticamente ao mesmo tempo. A primeira era uma mulher de talvez 40 anos, de olhar triste: trazia um sucesso editorial de certa autora muito elegante que ganhava a vida a escrever histórias que supunha originais. A segunda era um homem de talvez 30 anos, cheirando a perfume caro: trazia um opúsculo esverdeado de um poeta português do século XX.
O dono da livraria (e da oficina literária) começou por atender a mulher. Perguntou:
- Minha senhora, qual é o problema com esse livro?
- Nem sei explicar bem. Talvez tenha a ver com o título … - respondeu ela.
- Os títulos podem ser enganadores – lembrou o homem.
- Talvez. Mas como falava em amor, sabe, eu achei que não poderia tratar-se de engano…
- Deixe-me ver.
O homem, então, leu uma, duas, vinte e quatro páginas e, já convencido da avaria reportada, disse:
- Tem razão. É um problema de fabrico. O livro tem defeitos irreparáveis. Tecnicamente, trata-se de um problema de vacuidade literária…
- Mas – contrapôs a mulher – o livro parece bom. Tem palavras, tem uma história…
- Histórias e palavras nem sempre chegam para se fazer um livro, minha senhora. Falta aqui o mais importante – disse o homem.
- O que é? – perguntou a mulher.
- Não lhe posso dizer – respondeu o homem.
- É segredo? – tornou a mulher.
- Não exactamente. É (como é que lhe hei-de dizer?) uma questão de alma e de linguagem. É difícil de explicar, na literatura, o que falta quando algo falta, mas nota-se facilmente que algo falta quando nos pomos a ler com olhos de ler.
- E então?
- Então, vou dar-lhe um vale literário na importância do objecto que comprou, acrescida de dez euros de indemnização. Com este vale, a senhora pode comprar um livro que esteja em condições.
A mulher aceitou, agradada da amabilidade e competência do atendimento.
3.
Despachada a primeira cliente da oficina literária, seguiu-se o senhor perfumado.
- O meu problema é o mesmo daquela senhora – avisou.
- Nenhum problema é igual a outro – garantiu o dono da livraria. – Faça o favor de expor a sua situação.
O senhor perfumado explicou:
- Eu chamo-me Rui Merrick. Tenho este nome estrangeiro porque o meu avô era inglês.
- Muito prazer – disse o dono da loja, estranhando a apresentação.
O senhor perfumado continuou:
- Digo-lhe o nome porque a primeira coisa que me encantou no livro foi o nome do autor: Rui como eu.
- Rui Merrick? – admirou-se o dono da loja.
- Rui Belo. Rui com y. Ruy – precisou o senhor perfumado.
- Ah! – exclamou o dono da loja, sorrindo. – Conheço. É um grande escritor.
O senhor perfumado encolheu os ombros, céptico.
- Talvez seja. Mas o título dizia “O Problema da Habitação” e eu, que estou há mais de quinze anos no ramo imobiliário, achei que fosse um livro sobre casas.
- De certa forma, é… – considerou o dono da loja, procurando encontrar palavras que explicassem o funcionamento de uma metáfora.
- Perdão! - interrompeu-o o senhor perfumado. – Não há aqui nada sobre casas. Aliás, tanto quanto percebi, não há aqui nada sobre nada. É um conjunto de palavras incoerente. Falta-lhe (deixe ver se lhe explico isto bem) comunicação.
- Compreendo – suspirou o dono da loja.
- Ora – continuou o senhor perfumado – um livro tem de comunicar, não é verdade?
O dono da loja, um pouco nervoso, dissertou sobre o assunto com esforçada bonomia:
- Para comunicar, caro cliente, é preciso que haja mais do que um elemento. Comunicar é sobretudo um diálogo.
Mas o senhor perfumado parecia zangado com o tom tautológico da exposição. Sem mais palavras, passou o livro para as mãos do dono da loja, e deu em tamborilar com três dedos (o anelar, o médio e o indicador) sobre o balcão de atendimento. Tirando esse batuque impaciente, sucedeu na loja um silêncio embaraçoso que durou uns quinze segundos.
- Então? – perguntou depois o senhor perfumado. – Não me vai ressarcir do prejuízo?
O dono da loja guardou o livro, foi à caixa registadora e devolveu ao cliente o exacto valor que este gastara.
O senhor perfumado contou o dinheiro e perguntou:
- Por que não me deu, em vez disto, um vale literário?
E, lembrando-se de um pormenor importante, perguntou também:
- E por que não tenho direito aos dez euros de indemnização?
O dono da loja, já não nervoso, disse-lhe com sereníssima bonomia:
- O defeito, neste caso, não está no livro. Está no leitor. Lamento, caro senhor, mas a minha oficina não está habilitada a tratar do seu caso. Muito bom dia.
FIM
Ribeira de Pena, 16 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este conto foi escrito em Coimbra no dia 9 de Abril de 2010 e lido (de forma dramatizada) no dia 22 de Abril, por mim e pelos meus colegas Olívia Sofia Coutinho, Jorge Magalhães e Telmo Bértolo, durante a sessão “Café & Letras” levada a efeito pelo Agrupamento de Escolas do Arco, no âmbito da celebração do 1.º aniversário da nossa Biblioteca. As ilustrações-supra são da autoria da colega Rosário Coelho.]
A Verdade
O político Miguel Frasquilho, do PSD, foi confrontado por João Galamba, do PS, no programa “Parlamento” (da RTP2), com uma incómoda contradição.
Frasquilho é deputado na Assembleia da República e, simultaneamente, trabalha para o Banco Espírito Santo. Ao que parece, esta promiscuidade é legal e compreende elementos de outras bancadas. Mas sucede neste caso que, sobre a crise económica e financeira, o parlamentar social-democrata subscreveu um documento do BES (tornado, entretanto, público) garantindo que Portugal vai bem, que foi o país da zona Euro que mais rapidamente saiu da recessão e que mais cresceu no 1.º trimestre de 2010, e enfim que a especulação financeira é motivada por nefandas razões estranhas à objectiva realidade e ao rigor; por outro lado, na Assembleia, diz que Portugal está numa situação terrível, que o governo tem feito tudo mal e que, por culpa dos socialistas, não se vislumbra esperança no horizonte.
Deixo as reflexões mais político-partidárias para quem tenha atribuições, vocação e paciência para tal. Cá por mim, fico-me por um ângulo filosófico. Ora, salta-me à vista que, nesta história portuguesa com certeza, ou como deputado (no Parlamento) ou como economista (no BES), em algum momento a Verdade foi sacrificada pelo Dr. Miguel Frasquilho, decerto em nome de outros “valores mais altos que se (a)levantaram”.
Eu tinha (e tenho) boa opinião deste senhor. Mas a questão a colocar, à roda desta fábula, não pode deixar de ser a seguinte: onde se sente o cidadão Frasquilho mais livre – na Assembleia ou no Banco Espírito Santo?
Vila Real, 15 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra é a da capa do romance de José Saramago, O Homem Duplicado. Curiosamente, na sua contracapa, lemos a mui saramaguiana frase: “O caos é uma ordem por explicar.”]
sábado, 15 de maio de 2010
Ultimatum
A obediência, pelo Estado português, aos ditames do Mercado e da Europa foi baptizada, por eufemística caridade, com o nome de “inevitabilidade económico-financeira”.
Esta atitude portuguesa representa, na contemporaneidade, o gesto de meter o rabo entre as pernas que, no século XIX, sucedeu ao Ultimatum inglês.
Olhado daqui, esse passado lança sobre o presente uma pesada ominosidade. É que a monarquia, pouco depois, caiu. A questão, agora, é: que haverá, no nosso tempo, para cair?
Ribeira de Pena, 14 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra, de Rafael Bordalo Pinheiro, foi colhida, com a devida vénia, em http://www.citi.pt.]
sexta-feira, 14 de maio de 2010
Falta o Fado
Quase em surdina, o país tomou consciência do aumento da carga fiscal e do corte nos investimentos públicos. Vagamente, percebe que se trata de “uma inevitabilidade”, tendo em conta as exigências dos mercados e da Europa (leia-se, sobretudo, Alemanha). De modo geral, o bom povo português não repara ou, se repara, não se importa.
O presente é feito de êxtase benfiquista e, nos últimos dias, da visita do Papa. (Vivò Benfica! Vivò Papa!) Sócrates e Passos Coelho são, por isso, uma despicienda periferia da nossa actualidade.
Para não haver problemas, o Estado - feito deste Governo & desta Oposição (?) - só precisava que, depois do Benfica e de Bento XVI, se pensasse talvez numa homenagem a Amália. É que falta, ainda, o Fado para se cumprir o ramalhete tradicional da alienação indígena. E é preciso entreter a néscia pátria enquanto não começa o Mundial da África do Sul, não é?
Ribeira de Pena, já 14 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida, com a devida vénia, em http://www.jn.pt.]
quarta-feira, 12 de maio de 2010
Oração sem amen obrigatório
Creio numa capela feita de escrever
E de certos silêncios, avesso de tédios.
Nela cabem muitas formas de ver –
Deus, o diabo e seres intermédios.
As palavras, ali, são sangue e voz
(Oferecidas sem que alguém as peça)
Derramadas por mim, e talvez por vós
Na única parte que me interessa.
Podeis ler-me em memória de mim
E de uma coisa anterior e posterior
Isto é, do princípio, do meio e do fim:
Do amor.
Ribeira de Pena, 12 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra é da capela de S. Roque, em Machico (Madeira). Foto JJC.]
Arte de Bate-Chapas
Muito novo ainda, o meu pai começou a trabalhar. Em 1950, era o costume. Com a 4.ª classe feita, iniciava-se a adulta rotina de ganhar a vida. Tornou-se ajudante de bate-chapas e, à custa de provas dadas, mestre reconhecido no seu ofício.
A sua técnica apurou-se de tal modo que, no meio operário e industrial de Coimbra, rapidamente lhe substituíram o nome de família (Carvalho) pelo da sua arte: “José Bate-Chapas”.
Que orgulho sentia eu, senhores, sempre que me interrogavam sobre a minha família e respondia: “Sou filho do senhor José Bate-Chapas...”
Ao contrário dos dois irmãos rapazes, nunca eu me interessei pelo mundo dos automóveis. Quando o nosso pai se tornou patrão (com dois empregados, contabilidade razoavelmente organizada, telefone comercial nas páginas amarelas), íamos à sua oficina e eu, sem hesitação, escolhia o escritório para abrigo. Ali escrevia cartas em nome do progenitor, pedindo desculpas pelas dívidas da empresa ou solicitando urgente pagamento, pelos clientes, de reparações já feitas. Também escrevia poemas, histórias inspiradas em Verne ou Dumas (pai e filho) ou Enid Blyton. E também lia.
Às vezes, calhava-me assistir ao trabalho de meu pai: via-o avaliar a amolgadela de uma porta, de língua de fora, e a abanar a céptica cabeça, e a apalpar o interior da chapa, e a martelar com fúria ou delicadeza, e a murmurar um ou outro desabafo vernacular, e a reanalisar a textura, e a martelar de novo, e a enxugar o suor do rosto, e a arrumar as ferramentas. Lembro-me de o estar vendo, e de estar vendo, ao mesmo tempo, a admiração circunstante à sua roda.
(Parêntesis. O meu pai devolveu-me, com excessivos juros, este enlevo. Mil vezes me apontou a amigos e a conhecidos, até a desconhecidos, como se eu fosse um fenómeno raro: “É meu filho; joga no União.” “É meu filho; anda na universidade.” “É meu filho; escreve no Diário de Coimbra.” “É meu filho; é professor.”)
Sei que tinha muitos defeitos. A minha mãe, coitada, sofreu muito e, apesar de tudo, amou-o santamente, mesmo em horas que convidavam mais à revolta do que ao amor. Mas era o meu pai, senhores.
Aprendi com ele esta coisinha singela de haver quase sempre remédio para os estragos, mesmo os mais aparatosos e violentos. Que às mãos de um artista pode um carro muito acidentado ficar como novo. Que a arte da reparação é, portanto, uma espécie de segunda criação de objectos e de seres.
Na vida, tenho sofrido a minha considerável quota-parte de amolgadelas. Algumas, notai, violentas e de improvável reparação.
Bate-chapas da escrita, eu avalio-as, abano a cabeça, ponho mentalmente a língua de fora, e tento fazer, dos acidentados dias, dias novos.
Nem sempre sou capaz. Nem sempre (me) é possível. Mas tento, pai.
Ribeira de Pena, já 12 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto-supra foi tirada na Praia de Mira, por alturas de 1966 ou 1967. Vê-se o primo Valter e a esposa, a cunhadita do Valter, o senhor Jorge do “Café S. José”, o meu pai, o irmão Tó, eu, a irmã Fátima e a minha mãe (de luto pela sua própria mãe, a avó Adília).]
terça-feira, 11 de maio de 2010
Tempo como água
segunda-feira, 10 de maio de 2010
Inês & Laranjas
No dia em que o Estado português matou Inês de Castro, talvez um homem chamado João da Póvoa estivesse, desde manhã cedo até à tardinha, junto à porta da igreja de Santa Cruz. Se o homem existisse, seria vendedor de fruta e, nesse dia em que se soubera, em surdina, da morte da galega formosa, ele estaria a comerciar laranjas.
Entre a manhã e a tarde, o homem enxotará vários mendigos do saco da fruta, importunará donzelas do povo que passam, em trapos, a caminho do rio, será insultado por velhas beatas que vêem no preço das laranjas pecado mortal e, entre dois copos de vinho, numa casa baixa ao fundo da Rua Direita (a que vem da estrada de Lisboa em santa direcção à igreja), saberá por outros que D. Fernando e alguns nobres assassinaram a amante de D. Pedro.
Sem lirismos, porque desconheciam essas delicadezas do espírito e da fala, os homens ali presentes recordam o cabelo loiro da mulher, os seus olhos claros, as formas generosos do seu colo e das suas ancas.
João da Póvoa estivera, certa manhã, muito próximo dessa mulher e pudera até sentir, evolando-se da pele feminina, uma espécie de cheiro a muitas flores. Ouvindo-o apregoar as suas laranjas, a bela interrogara-o, com um sorriso trocista:
- Tens a certeza de que são laranjas?
- Conheço-as de antes ainda de serem nascidas, senhora – assegurara ele. – Fui eu que as plantei e as colhi.
Inês engelhara, suspeitosa, o delicado nariz:
- Pelo aspecto, mais depressa diria que eram limões, homem.
As duas outras damas, que acompanhavam a espanhola, riram-se muito. E João da Póvoa, sorrindo também, decidira oferecer uma, duas, três peças daquela fruta.
Apesar do mau aspecto, as laranjas eram doces como as semelhantes dos Algarves. E Inês reconhecera-o:
- É certo que, por detrás do aspecto mais feio, há muitas vezes doçura escondida. Vende-me dois sacos: o primeiro irá connosco para Santa Clara; o outro distribuirás pelos infelizes que além nos estão mirando com indisfarçada gula.
Assim se fizera, lembra-se João. E mais recorda a tarde em que, numa das margens do Mondego, divisara o príncipe caminhando, de braço dado, com Inês. Imagem difícil de esquecer, pois concentrara o sol todo desse dia longínquo, e o vendedor de laranjas julgara perceber, então, na serenidade dos passos e na adivinhada alegria de murmúrios e risos, uma profecia de felicidade a haver para os namorados.
Mas Inês era morta já.
De modo que, pensa o homem (e talvez o diga aos co-bebedores daquela tarde), pode dar-se com a felicidade o mesmo que sucede com a fruta: não se mede o sumo pelo aspecto da casca.
Coimbra, ainda 10 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra (da Quinta das Lágrimas) foi colhida, com a devida vénia, em http://sol.sapo.pt.]
Flores de papel
Coimbra, entardecer.
No devir do cortejo da Queima das Fitas, carros alegóricos são depositados num terreno largo, em margem escondida do Mondego.
Vejo-os de cima, despidos já das flores e dos estudantes. Vislumbro esqueletos de rede e de madeira, pedaços de cartazes com piadas já ilegíveis, garrafas vazias, lixo.
Uma futura médica caminha sozinha, a uns trinta metros, provavelmente indisposta: os pés doridos, a dor de cabeça, o estômago desabituado da cerveja, a garganta latejando, a fome. Pelo caminho que leva, adivinho que o seu destino é o Fórum Doce Vita. Leva uma flor pendurada na lapela, que talvez guarde, para sempre, numa gaveta da casa natal. Vai pouco formosa. Não vai segura.
O entardecer da festa é um lampejo de fim.
Coimbra, já 10 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
No dia 9 de Maio de 2010
Sei que houve em Portugal, hoje, um acontecimento muito importante.
Não apenas Lisboa esteve envolvida, mas todo o país em geral, incluindo as regiões autónomas.
Aliás, em outras áreas do mundo milhões de pessoas se deram conta do fenómeno.
Falo, como já deveis ter adivinhado, da nuvem de cinzas vulcânicas que obrigou centenas de voos a ficarem em terra.
A maioria de nós não tem a noção do que um vulcão adormecido pode impressionar e, admitamo-lo, incomodar.
Não nos resta nada, em casos assim, senão ter paciência, esperar que a nuvem passe e que durante muito tempo nos livre da sua presença impressionante e, admitamo-lo, incomodativa.
Coimbra, já 10 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
domingo, 9 de maio de 2010
Contra o escarro
Fernando Pessoa (em versão Bernardo Soares), insuspeito amante da Língua Portuguesa, chamou às imperfeições da escrita - às ortográficas e decerto às sintácticas – “escarros na página”. A expressão é feia, mas correcta, pois designa uma realidade feia.
Não me arrogo a autoridade linguístico-judicativa da voz pessoana, mas compreendo bem este seu desassossego, este seu nojo, esta sua visceral dor.
Não me deterei, nesta croniqueta rápida, na questão da pronúncia correcta ou da esquecida Dicção. Na rádio, na tv, nas ruas, nos fóruns político-partidários, nos futebóis de todas as divisões, fala-se mal e porcamente, e cada vez pior. Certa tia, há poucos dias, glorificava o Algarve (ou “Allgarve”), um lugar “xelente” onde ela tinha “tado” há dias, um destino “fant-tás-tic-co, pe’cebe?”, “muito melhor qu’ir paspanha”.
Há pior. Todos os dias, em contexto de trabalho ou de lazer, identifico erros que são, em sua substância, uma espécie de nova gramática, gémea do escarro que Pessoa denunciou e cunhou.
Há poucos dias, ouvi o senhor Zeinal Bava (que ganha, num dia, o que a minha mãe não ganha num ano, ou o que eu não ganho num mês), a garantir que “o Estado não interviu”, em vez de “não interveio”, erro que – anos antes – ouvirá já, no “Prós e Contras”, ao então ministro da Educação, David Justino…
Hoje mesmo, ouvi a (formosa) deputada do PSD, Carla Rodrigues, num programa da, salvo erro, RTPN, deixar cair uma feia nódoa no seu fluente e correcto discurso sobre a Comissão de Inquérito ao caso TVI: disse que “se houvessem circunstâncias” em vez de “houvesse circunstâncias”…
Na zona onde trabalho (Minho, Trás-os-Montes), farto-me de ouvir a conjugação errada do conjuntivo do verbo “dar”. Por exemplo, frases como “Quer que eu lhe deia uma sugestão?”, em vez de “Quer que eu lhe dê uma sugestão?”, aparecem na boca de alunos, pais, professores…
Igualmente vejo, aqui, instalada a confusão entre o pretérito perfeito da segunda pessoa do singular e o pretérito perfeito da segunda pessoa do plural. Exemplo: “tu tivestes” (em vez de “tu tiveste” ) e vós tivésteis” (em vez de vós tivestes”)…
Ao escritor-apresentador José Rodrigues dos Santos não o ensinaram ainda que a frase “o homem tinha morto a companheira” está errada; deveria utilizar, neste caso, o particípio passado regular, “matado”.
Ao entrevistador-cronista-escritor Miguel Sousa Tavares deveriam explicar, como aliás aos falantes lisboetas em geral, que não há razão válida para substituir o particípio passado regular “encarregado” pelo particípio passado irregular “encarregue”. Exemplo: “O governo tinha encarregado a Direcção Regional do Norte”, e não “O governo tinha encarregue a Direcção Regional do Norte”. Conheço alguém que, sobre isto, a rir-se, diz que ainda havemos de ver convocatórias de directores de turma a chamar à Escola os “encarregues de educação”…
Finalmente, na minha Coimbra, tem vindo a reproduzir-se, com a velocidade de um vírus, a expressão “está aponte” ou “fica aponte”, em vez de “fica apontado” (anotado) ou “está apontado”. Por algum tempo, ainda pensei que o fenómeno tivesse a ver (não “a haver”, notai) com a proliferação de pontes na beira litoral: a Ponte de Santa Clara, a Ponte Rainha Santa Isabel, a Ponte do Açude, etc. Mas não. Este escarro decorre, ao que parece, da emergência espontânea de um novo particípio passado irregular: o dito “aponte”, em vez do inditoso “apontado”.
Adivinho gente que, lendo-me, se irrite com esta militância purista. Talvez lhes apeteça utilizar um argumento muito em voga na contemporaneidade: que a Língua é uma coisa viva, e por isso temos de tolerar as variações, a “evolução”.
Eu tenho uma resposta para esses que, sem vergonha, me atiram à cara que a Língua é uma coisa viva. Ofereço-vo-la.
A Língua é uma coisa viva, sim. É por isso que eu a defendo: para que não a matem!
É isto, senhores, o que eu penso. Se quiserdes, tomai nota. Já está “aponte”?
Coimbra, já 09 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida, com a devida vénia, em www.wook.pt.]
sexta-feira, 7 de maio de 2010
A razão da chuva
Tenho andado a reler, no intervalo das Pupilas, da Família, da Morgadinha e dos Fidalgos, a diarística de Torga.
Os textos deste escritor transmontano (aliás, universal) estão cheios de um tortuoso amor por Portugal (terra e gentes) misturado com uma, às vezes truculenta, amargura face à ignorância, à pobreza de espírito e à venalidade dos habitantes do país e do planeta.
Aquilo que, lido abstractamente, seria uma contraditória forma de ver-perceber o mundo explica-se, em minha opinião, pela própria natureza genológica dos diários: são estados – momentâneos – de alma, telegramas do instante, (des)apontamentos dos seus dias.
Por mim, gosto sobretudo de reconhecer nos seus textos certa toponímia familiar (da minha existência litoral e também transmontana): Coimbra, Mira, Peso da Régua, Lamego, S. Martinho de Anta…
Também me sucede reconhecer, em figuras que o autor encontrou algures, personagens do meu pessoalíssimo e hodierno quotidiano. É o caso de uma velha, conterrânea de Miguel Torga, que comenta determinado dilúvio ocorrido na primeira metade do século XX. A criatura, com recurso a litanias religiosas e a aforismos, diz que a chuva resulta dos caprichos de Nosso Senhor, mas depois acrescenta:
“- Que ele há quem diga que são as nuvens…”
Há dias, num Café da vila onde resido a maior parte da minha vida, um homem lamentava “a crise”, isto é, este nosso tempo em que “não há dinheiro”. Como no caso da velha do Torga, sucedeu a esta generalidade discursiva uma pausa e, depois, uma sensata descida ao chão das coisas:
“- Que ele há quem diga que o dinheiro existe; está é mal distribuído…”
Coimbra, ainda 07 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
quinta-feira, 6 de maio de 2010
Memória filha da mãe
Pessoa amiga dizia-me, há dias, que eu tinha qualidades (“qualidades, pá!”), que era uma pena não escrever, não aparecer, não fazer parte de.
O discurso talvez quisesse ser encomiástico. Mas transportava, na forma e no conteúdo profundo, uma certa repreensão burguesinha: que era uma pena não escrever onde devia, não aparecer onde devia, não fazer parte do que devia.
Respondi-lhe, genericamente lembrando a felicidade de estar em paz comigo desta forma; de o meu aparente isolamento ser uma forma de comunhão com os outros; de eu, ao contrário do que ele dizia, continuar a escrever (talvez até mais do que devia).
Mas – confesso agora – os meus motivos não são apenas bondosos e inocentes. Também têm a ver com a minha memória. A minha ressentida memória.
É que muito mundo à volta de mim, há alguns meses, ignorou as minhas dores de professor revoltado. Há nem sequer dois anos, ouvi pequenos, médios e grandes ignorantes defender a ministra Maria de Lurdes Rodrigues e pôr em causa a pertinência e a justiça de manifestações pertinentes e justas. Há pouco tempo, ouvi e li gente resumir a revolta de tantos a, deixai que vo-lo recorde, coisa de "movimentos corporativos", de "sindicatos comunistas", de luta por "indecentes privilégios".
Eu não me esqueço das ofensas à minha dignidade, senhores.
E se não me esqueço de quem, na Assembleia da República (dentro e fora do PS), votou por nós, tão-pouco me esqueço de quem votou contra nós.
Agora, com Isabel Alçada (que tem a enorme vantagem de conhecer o terreno, de ter sido professora do ensino básico e secundário, de gostar de professores e de não ter Valter Lemos a seu lado), algo mudou, graças a Deus.
Já há até bastante gente a fazer de conta que sempre defendeu esta política (ainda que “esta política” seja, em muitos aspectos, o contrário, ou quase, da anterior).
Mas eu sou um filho da mãe com memória (“com memória, pá!”). Não me esqueço.
Ribeira de Pena, ainda 06 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
Milésimo de Torga (1)
Granito
O granito é o chão do destino, bruto e terno como um pai: ampara e dói, e não desaparece senão para morrer.
Há no granito qualquer coisa de eternidade. Pelo granito vai-se ao futuro ou regressa-se ao princípio de tudo.
Não há talvez no granito matéria de estrelas, nem poéticos pretextos de sonhar. Mas no granito se fundam os pés de agora. No granito começa a presente possibilidade dos passos.
É no granito que se constrói, aqui, a casa de resistir. Com o granito se faz, agora, a casa de permanecermos.
As estrelas ficam mais além, mas só existem porque há chão.
Ribeira de Pena, já 6 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma 1.ª versão deste texto foi publicada em 1996. Fazia parte de um volume a que chamei Milésimo de Torga.]
quarta-feira, 5 de maio de 2010
Entrevista que o João de Mancelos me fez em 1996
Em Fevereiro de 1996, o João de Mancelos, ilustre professor universitário de Literatura e interessantíssimo escritor (visitar http://www.joaodemancelos.wordpress.com), fez-me uma entrevista - dada à estampa em Latitude, suplemento Cultural do jornal O Aveiro, ed. de 07-02-1996. Foi pouco depois de eu ter publicado, em Coimbra, um livrinho de poesia, Desapontamentos dos Dias (Coimbra, Ed. A Mar Arte, 1995).
Dei com o texto dessa entrevista há dias e, depois de (gratamente) me “rever” em muitas das respostas dadas, decidi publicá-la em “Muito Mar”. Chamo a atenção para a circunstância de algumas das observações feitas estarem inevitavelmente datadas e, em alguns casos, desactualizadas. É o caso, por exemplo, da referência triste ao facto de Daniel Abrunheiro permanecer, então, inédito. Isso já não é, felizmente, verdade. É ainda o caso da referência ao Independente, histórico semanário que então vivia, cheio de saúde, e que entretanto faleceu.
As questões de João de Mancelos partem, normalmente, de citações do volume Desapontamentos dos Dias (daí o uso de aspas).
João de Mancelos: “O futebol e a poesia são outra vez fáceis”. Quando te acontecem os poemas?
Joaquim Jorge Carvalho: Todos os poemas, os que escrevo, os que leio, os que me doem, e os que me aquecem, já aconteceram. Eu actualizo-os em mim. Em registo diferente, Almada Negreiros fala do facto delicioso e perturbador de estarem já inventadas as palavras que salvarão o mundo; e lembra que falta apenas salvar o mundo! A escrita é quase sempre um milagre (de segundos, ou de horas, ou de dias) de hipersensibilidade, de capacidade de ver, de perceber, de emergir do caos. Por instantes, num desequilíbrio lúcido e bonito, há em mim (como, por certo, em tantos outros, coitados!) a ilusão de saber tudo pela primeira vez; de amar como nunca e como mais ninguém; de chorar por mim e por Camilo (ou por Gaitinhas de Soeiro) de modo essencial e redentor; de ser feliz ou infeliz profundamente e para sempre. Tudo isto tem a ver com os olhos, o sangue e os dedos, e com a noite, com os cafés e os comboios da cidade, com a solidão e o mar. O que acontece, não são poemas. Sou eu, perdidamente, a salvar o mundo e a salvar-me. Sublinho: perdidamente.
JM: “E a tua vida dá corda à minha escrita”. Que(m) te inspira?
JJC: Tenho, às vezes, uma febre maldita e urgente de dizer, de criar, de registar uma ideia, uma pulsão, um grito, uma graça, um balanço. É uma febre maldita e bela, porque dela resulta a escrita que é, pobre de mim, a única coisa em que acredito mesmo, na auditoria optimista que faço à minha vida e aos meus caminhos. Eu escrevo, acho, para me tornar mais bonito, mais forte e mais interessante, aos olhos dos outros e, sobretudo, de mim próprio. Isto pode não ser, afinal, politicamente correcto, mas é assim! Desde miúdo, por exemplo, sofro a violenta angústia do tempo passando, da vida que se escoa inexoravelmente, da minha Mãe-bela se tornar Mãe-velha. A escrita é um pouco o exorcismo desta noção violenta e bruta, a navegação contra a corrente do calendário, eu a gritar de saudade de todo o tempo e de todo o mundo que me vai fugindo. Esta resposta não fala de “musas” porque não há musas. A verdadeira musa só existe quando não existe. Aliás: só existe porque não está, porque faz falta. É esse o motivo por que um dos meus poemas se chama “dedicatória não”.
JM: “Devo-te este poema há cem anos”. Desapontamentos dos Dias é uma estreia com maturidade. Por que aguardaste tanto tempo para publicar em forma de livro?
JJC: A pergunta é generosa, mas parte de um pressuposto pouco verdadeiro. A minha estreia, em termos de publicação, não é uma “estreia com maturidade”. Se eu tivesse maturidade suficiente, não publicaria ainda. A publicação deste livrinho (os Desapontamentos) é uma extraordinária violência, por tudo o que implica de selecção, hesitação, medo, vaidade e mimo, medo outra vez, vertigem (estúpida e lúcida) do ridículo, etc. A única grande e verdadeira vantagem de publicar este primeiro livro é esta: já ter publicado o primeiro livro. E poder ir agora enganando cuidadosamente as pessoas: pior que isto, em verdade, não me verão publicar!
JM: “Esta cidade é doida”. És um autor que vive e labora na província. Para a tua recente obra, haverá vida depois da sessão de autógrafos? Como tencionas divulgá-la?
JJC: Tratando-se de uma tiragem modesta, o esforço de divulgação e concomitante venda não se me afigura particularmente hercúleo. Ressalvo, contudo, que a publicação, em Abril, correspondeu ao interesse da editora A Mar Arte, de Coimbra, e à calendarização dos seus projectos (que são vários). Teria sido mais fácil para mim publicar entre Outubro e Dezembro, visto ser esta, em meu entender, a melhor altura para elaborar, junto de escolas, autarquias e instituições de carácter artístico-cultural, um esquema de apresentação e promoção do livro. Mesmo assim, pude participar em dois eventos interessantes neste âmbito, onde esse desiderato foi satisfatoriamente atingido. Devo dizer que, de algum modo, através de jornais, revistas, até da televisão (graças à generosidade do Carlos Pinto Coelho, apresentador do magazine cultural “Acontece”, na RTP 2), o livro foi razoavelmente divulgado. A este esforço espero poder acrescentar, em breve, o obséquio de apreciações críticas de alguns nomes interessantes da nossa praça.
JM: “O tempo de eu ser é agora”. Estás ligado a actividades diversas, na área do desporto, do teatro e, sobretudo, do jornalismo. Conta.
JJC: Sou professor do ensino secundário e, neste âmbito, orgulho-me de desenvolver, com alunos e colegas, várias actividades de carácter extra-curricular, que valorizam a escola e a nossa vida. Assim, no teatro (já fui autor, actor e encenador nos últimos quatro anos) como no Jornalismo (pátria feliz do acontecimento, da reflexão e da escrita), tenho procurado investir tempo e esforço (de mim próprio e dos outros) na busca de instantes bonitos e gratificantes. “Poesis” (fazer, fazer coisas). Em termos pessoais e privados, tenho vindo a escrever crónicas semanais para jornais e rádio. É um exercício interessante porque me obriga a determinado tipo de produção escrita (opinativa, crítica, confessional), com carácter periódico e mais ou menos inevitável. E está algures implícita a mágica generosidade das pessoas que perdem tempo a ouvir-nos e a ler-nos, a seguir-nos, enfim, o olhar e o raciocínio. Ah!, é verdade: também me divirto a jogar futebol, uma paixão de sempre (que já levei mais a sério), cujo protagonismo prático se vem deslocando, às ordens de Cronos, dos pés para os olhos…
JM: “Li o Independente enquanto não vinhas”. Se fosses para uma ilha deserta, que jornais levarias contigo (para além do Latitude, obviamente).
JJC: Se fosse para uma ilha deserta, que jornal?! O do dia seguinte, naturalmente. Por razões de ética leitora, recuso-me a confessar a minha preferência pelo Público, Independente, Expresso, Bola e o JL. E muito menos citar o Pedro Rolo Duarte, na falecida K, que dizia, sobre o assunto “jornais”: “o Público é o melhor, o Expresso é o maior, e o Independente é o mais importante”.
JM: “Soube que a palavra nasce no meio / De outras árvores, de outros frutos”. Um livro de cabeceira, um filme de culto, um disco tocado e retocado, um pintor que se admira… Fala-nos dos teus gostos.
JJC: Gabriel Garcia Márquez, Cem Anos de Solidão e Amor em Tempos de Cólera. Camilo, de perdição. Eça, todo! E ainda Faulkner, Twain, Beauvoir, Pessoa, Joyce, Sophia, Eugénio, Daniel Abrunheiro (meu amigo, nunca publicado!), David Lodge, Guerreiro de Sousa, Salinger, Kundera. E um imenso ETC! Sobre filmes, dificuldade quase igual: Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore, O Império do Sol, de Spielberg, O Último Imperador, de Bertolucci, Aniki Bobó, de Manuel de Oliveira, O Clube dos Poetas Mortos, de Peter Weir, O Senhor das Moscas, de Harrison Hook, etc. Música: Pink Floyd (e outro etc.). Pintura: Picasso (quando percebo, quando penso que percebo e quando não percebo). Devo confessar, já agora, que sou muito pouco educado em matéria de pintura e de escultura, o que me torna um ingénuo à mercê do cânone e do instinto.
JM: “As ruas de Coimbra estão sujas / De versos e de cascas de tremoços”. O academismo conimbricense incomoda-te?
JJC: Não há um academismo conimbricense; há várias maneiras de entender e protagonizar uma carreira e um trabalho académicos. Algumas dessas maneiras são saudáveis e bonitas; outras, não. Recomendo, sobre estes últimos casos (que existem!) a leitura atenta e feliz de Woody Allen (Sem Penas, Para acabar de vez com a Cultura e Não bebas dessa Água).
JM: “O Silêncio: dir-te-ei tudo no próximo verso”. Ideias na manga e projectos na cartola.
JJC: Vou andar preferencialmente sem mangas nem cartola. Desesperadamente à procura de coisa nenhuma. A ler e a escrever. A namorar. E (já agora) vou tentar acabar a minha tese de Mestrado. Estou a responder a estas perguntas com a perna direita engessada, do pé até à virilha, literalmente, devido à lesão ligamentar no joelho. Este gesso é físico e metafórico: sou eu a convalescer e a acreditar na convalescença; e sou eu preso, impaciente, insatisfeito e brusco. Há sempre um gesso qualquer na minha vida de jogador, de namorado e de poeta. Sempre.
[A 1.ª das fotos-supra é do professor João de Mancelos. A segunda é de um momento feliz que vivi em Lisboa, há cerca de dois anos, quando recebi, das mãos de Manuel Carvalho da Silva, o 1.º Prémio do Concurso de Conto da CGTP. A minha narrativa (mais uma novela do que um conto, sublinho) intitulou-se Teresa – Relato Cuidadoso de um Excessivo Amor e foi publicada no ano passado (Lisboa, Ed. CGTP, 2009).]
terça-feira, 4 de maio de 2010
Naufrágio d'Ilha
É notícia de primeira página no JN: a ribeirapenense Ilha dos Amores, cunhada e celebrada por Camilo (à boleia de Camões) vai desaparecer devido à construção de uma barragem.
Razões literárias e outras – como a questão dos terrenos expropriados, a mágoa pelo fim de uma paisagem afectiva, etc. – compareceram já, numa espécie de avesso da notícia.
Já no século XIX, para não irmos mais longe, a fúria empreendedora de Fontes Pereira de Melo foi mal recebida por muitos portugueses: a construção de estradas de macadame e a expansão da linha férrea sacrificaram campos de cultivo, residências antigas, vilas e aldeias, jardins, pomares, recantos naturais cheios de tradição. O progresso, ainda que bem intencionado, nem sempre é compreendido, e não deixa de ser verdade que, muitas vezes, estraga mais do que beneficia.
Lembro-me de ouvir, em Coimbra, um septuagenário pintor, de conversa fácil e interessante, falar (com admiração verdadeira) sobre as ruas estreitinhas da baixa. Àquele homem, nascido na cordura antiga e familiar da Rua da Moeda, da Rua dos Sapateiros, da Rua das Padeiras, da Rua Direita, do Bota-Abaixo, etc., doía a possibilidade de um dia se destruir um património simultaneamente coimbrinha e pessoal, seu.
A ouvi-lo estava também o C., filho de um bombeiro, que sensatamente nos recordou a dificuldade que, em caso de incêndio, os soldados da paz sentiriam para combater as chamas.
- Aquilo é um perigo – avisou. – Nem um carro de bombeiros passa por ali.
De modo que, em relação à submersão da Ilha dos Amores, convenhamos: há sempre dois ângulos, pelo menos, por onde analisar a questão. Todas as épocas são palco desta tensão entre presente (relicário do passado) e futuro (presente a haver).
O ideal seria que o progresso se fizesse numa comunhão bonita de passado e presente. Marguerite Yourcenar, pela boca de Adriano (em Memórias de Adriano) defende que “construir é colaborar com a terra”. Mas a ideia, embora formosa, implica um nem sempre possível equilibrismo.
O futuro dirá se vale(u) a pena a barragem e o seu preço . De qualquer modo, importa lembrar que, ao contrário daquela porção de terra em vias de extinção, a memória (a do coração das gentes e a documental) não é facilmente submergível – e ainda bem!
Ribeira de Pena, já 04 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[As fotos-supra foram colhidas, com a devida vénia, em http://www.cm-rpena.pt.]
Feira do Livro em Ribeira de Pena
De 30 de Abril, dia da inauguração da Biblioteca Municipal, até ao próximo dia 7 de Maio, decorre, no Auditório Municipal, uma Feira do Livro.
Creio que estas realizações, naturalmente bem-vindas e meritórias, ganhariam em ser concretizadas noutros moldes, que eficazmente articulassem a vertente – mais lata - da animação cultural com a vertente mais estritamente literário-livresca. Associar música, teatro, exposições, debates, etc. à Feira do Livro – eis o que me atrevo a sugerir. Esse casamento feliz já se experimentou, com sucesso, no passado.
PS: No dia 30, a autarquia lançou a obra Roteiro Religioso de Ribeira de Pena. Foi-me oferecido um volume, que hei-de apreciar e comentar oportunamente neste “Muito Mar”.
Ribeira de Pena, já 04 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
segunda-feira, 3 de maio de 2010
Do lugar onde me encontro
O Benfica vai, segundo julgo, ser campeão de futebol já na próxima semana, mas hoje os seus adeptos estavam tristes como quem acaba de perder a esperança.
O F. C. Porto está virtualmente arredado da participação na Liga dos Campeões da próxima temporada (pela primeira vez em muitos anos). Mas hoje os seus adeptos festejaram como quem acaba de vencer uma grande competição.
O Sporting perdeu, em Alvalade, frente à Naval 1.º de Maio, por 1-0. Mas parece que, beneficiando do empate do Vitória de Guimarães, o 4.º lugar está garantido e alguns responsáveis salientaram, discretamente, o facto.
Há alguns dias, após um vergonhoso ferrolho, o Inter conseguiu perder apenas por 1-0 frente ao Barcelona e o português Mourinho falou da mais bela derrota da sua carreira.
Isto é: as coisas, no futebol como na vida, podem sempre ser vistas de – pelo menos – duas maneiras. Fértil em paradoxos, a avaliação das vidas humanas depende do ângulo do avaliador. Antigamente, durante as transmissões radiofónicas ou televisivas, os repórteres de campo enquadravam as suas intervenções com um incipit sensato: “Do lugar onde me encontro…”
Por mim, hoje, do lugar onde me encontro, opto por recordar um grande jogo que televi, das 18 às 20 horas. O Real Madrid passou as passas do Algarve para ganhar 3-2 ao Osasuna (de Camacho) e, entre várias estrelas, brilhou mais alto um moço que o meu Sporting ajudou a fabricar: Cristiano Ronaldo.
Extraordinária exibição fez o número 9! Afinal, à luz dos padrões loucos do mercado futebolístico, o rapaz foi barato…
Ribeira de Pena, já 03 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
domingo, 2 de maio de 2010
Preguiça Social
No dia 1 de Maio, não estive na Grécia a gritar contra o governo e o FMI. Tão-pouco estive em Lisboa ou Coimbra a marchar pelo emprego e pela justiça social. Nem sequer passei por uma associação qualquer para ouvir falar da história do sindicalismo ou escutar canções de protesto.
Preguicei o sábado inteiro, em cafés, centros comerciais, ruas transmontanas.
Se tivesse vergonha, talvez não o confessasse. Não tenho vergonha.
Depois dos quarenta anos, a preguiça é um direito humano tão fundamental como os outros.
Eu, ontem, morei numa canção dos Deolinda: estou preocupado e solidário, mas ainda não bem pronto para a acção. De modo que vão andando, que eu já lá vou ter…
Ribeira de Pena, já 02 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
Vida (enumeração de vantagens)
Apesar do ruído, há flores
Urgentemente primaveris.
Apesar do pessimismo, amores
Nascem (e um, talvez, feliz).
Apesar do cansaço, o sol ainda vem
Beijar-me, cedinho, olhos e pele –
E tenho viva ainda a minha mãe
(Apesar do tempo, passando, cruel).
Apesar de morrermos, apesar de não ser
Eterna a vida (por nos gastarmos)
Ainda é tempo de agradecer
Haver ar bastante para respirarmos.
Apesar das doenças e da inveja
Apesar da rotina e dos inimigos
Há a praia, o cinema, a cerveja,
A música, o futebol e os amigos.
Apesar da ferrugem nos corações
Apesar da angústia e da tristeza
Há afecto, literatura e recordações,
Gente, fruta, cozido à portuguesa.
Ribeira de Pena, já 02 de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra é a do cartaz do filme “Melhor é Impossível” (1997), de James L. Brooks, com interpretações de Jack Nicholson, Helen Hunt e Greg Kinnear.]
sábado, 1 de maio de 2010
Livros & LIberdade
Foi ontem a (anunciada) inauguração da Biblioteca Municipal de Ribeira de Pena. O momento, para além dos discursos da Directora do Instituto das Bibliotecas e do Livro, do Presidente da Câmara local e do Governador Civil de Vila Real, foi ainda ocasião para apontamentos poético-teatrais, a cargo de alunos da Escola E.B. 2, 3 / Secundária de Ribeira de Pena, sob minha orientação (e com o apoio das professoras Maria da Paz Carvalho e Sandra Leão).
Numa primeira parte, os alunos representaram “Explicação da Cúmplice Idade”, texto meu fundado numa espécie de anedota em verso que Júlio Dinis deixou no volume “Tentativas Poéticas”. Mais à frente, já durante o “Verde de Honra”, no lounge do Auditório Municipal, eu próprio e Emanuel Guimarães (com o apoio técnico de Marco Andrade) demos voz ao meu texto “Diálogo com Sentido”, fabricado para a ocasião e que a seguir se reproduz neste “Muito Mar”. Esta função terminou com uma dedicatória especial ao Francisco Botelho que, por merecer muito ali estar, não deixou de marcar presença na memória grata dos (outros) convivas.
Diálogo - com sentido - sobre livros e liberdade
- Diz aqui no programa que, depois da história das consultas e dos discursos, há um verde de honra…
- E é verdade. E bem bom que é o verde…
- Diz também que há um “diálogo com sentido, entre dois amigos” sobre a importância dos livros e, finalmente, uma canção interpretada por um coro de jovens ribeirapenenses…
- Diálogo entre dois amigos?
- Com sentido. Um diálogo com sentido.
- Entre dois amigos?
- Entre dois amigos.
- Amigos de quem?
- Amigos um do outro. Ou amigos da terra. Ou amigos dos livros…
- E quem serão eles?
- Eles quem?
- Os amigos…
- Sei lá.
- Cheira-me que estão atrasados. Se calhar, nem vêm…
- Seja como for, a inauguração propriamente dita já se fez.
- É verdade. Fica para a história: 30 de Abril…
- Abril… Esse mês diz-me qualquer coisa…
- É um mês bonito. Tem a ver com a Primavera, as flores, o renascimento da Natureza…
- Não só. É outra coisa. Uma coisa da nossa História…
- Ah! Deves estar a falar do 25 de Abril…
- O 25 de Abril?
- A revolução. Foi há 36 anos. Diz-se que é o “Dia da Liberdade”: Devias sabê-lo…
- Ai devia? Mas tu ainda agora disseste que foi há 36 anos. É muito tempo, tem lá paciência.
- De facto, é. Mas tratando-se da liberdade é sempre uma coisa de hoje.
- Não digo que não. Talvez seja. Embora…
- Duvidas do carácter sempre actual da liberdade?
- Não. Quero dizer, um pouco. Isto é…
- Estou espantado. Tu, um homem que toda a vida defendeu a liberdade, duvidas de uma coisa tão essencial?
- Mas repara, amigo: as datas são apenas números, acontecimentos algures no calendário. As coisas passam, como as modas.
- A liberdade não é uma moda. E, se fosse, não passaria nunca de moda. É sempre nova…
- Sempre nova?
- Sempre nova enquanto estamos vivos.
- Mas, escuta, se tu próprio dizes que, há 36 anos, não havia liberdade…
- E não…
- Então, posso deduzir que estávamos mortos antes do 25 de Abril?
- Estávamos quase mortos. Ou, se preferires, quase vivos.
- Quase mortos? Quase vivos? Desculpa lá, mas isso é tão absurdo como uma mulher dizer que está quase grávida.
- Acredito. Mas uma mulher quando quer muito ser mãe está quase grávida…
- Não percebo.
- Uma mulher, quando deseja muito ser mãe, já é um bocadinho mãe, antes mesmo de estar grávida…
- Talvez tenhas razão…
- Tenho razão. Com a liberdade é a mesma coisa…
- A liberdade é uma mulher grávida antes de estar grávida?
- Quando desejamos a liberdade, já somos um bocadinho livres…
- Ah! Agora, percebo. Acho que percebo.
- Vê. O 25 de Abril não nasceu no dia 25 de Abril. Começou no dia em que homens e mulheres sonharam com o 25 de Abril.
- Por isso dizes que a liberdade já existe quando existe o desejo de sermos livres…
- Por isso digo que já estávamos vivos antes de a liberdade chegar e nos livrar da condição de mortos…
- De modo que, em teu entender, valeu a pena inaugurar a biblioteca em Abril?
- Por acaso, acho que Abril é um bom mês para celebrar os livros…
- Mas eu julgava que os livros são para ler durante todo o ano…
- E são! Como a liberdade é para ser vivida durante todo o ano. Mas é preciso que, de vez em quando, nos lembremos disso…
- De vez em quando?
- Em datas certas. Em (como é que se diz?...) efemérides. Em dias que celebrem a alegria de viver em liberdade.
- Engraçado! Quem te ouvir julga que confundes as duas coisas: livros e liberdade.
- E confundo, sim. Isto é, vejo-as como uma coisa só. A liberdade é um livro sempre por abrir, por ler, por fruir…
- E um livro é o quê?
- É a própria voz da liberdade. Um eu, feito de muitos eus em diálogo com outros eus. Um eu do nosso tempo, e de todos os tempos, até do Futuro, dialogando com eus de hoje e de sempre.
- Mas, repara, há sempre livros fechados, não lidos…
- Um livro fechado é o contrário da liberdade. Mas a simples possibilidade de abrirmos, quando quisermos, um livro - é já a liberdade a funcionar.
- Sabes? Acho que tens razão. Mas a História está cheia de casos de destruição de livros. De gente que queima livros, autores, bibliotecas…
- É verdade. Há gente que não suporta a liberdade. Que prefere, digamos, a morte à vida. Há gente que não suporta a literatura, as ideias diferentes, o sonho, o ideal, as utopias…
- Mas isso prova que os livros são frágeis, que podem ser destruídos.
- Que são frágeis, sim. Os próprios homens são frágeis. A liberdade é frágil. Mas, como acontece com os homens, a liberdade não pode ser destruída!
- E, contudo, há livros queimados…
- Mas até esses são, nas cinzas que sobrevivem ao fogo, testemunhas da voz que eram. Até esses permanecem na memória de quem os tenha lido, na tristeza de quem não os pôde ler e na vergonha de quem, por fraqueza, os não suportou e os queimou!
- Acreditas, portanto, que não se pode destruir um livro?
- Pode (como te hei-de dizer?...) matar-se lentamente um livro.
- Como?
- Ignorando-o. Não o abrindo. Não o lendo. Fingindo que não existe. Virando as costas à vida que um livro é.
- Mas pode viver-se sem livros?
- Aparentemente, sim. O mesmo se passa com a liberdade. Diz-me tu: pode viver-se sem liberdade?
- Não bem. Segundo percebi no que tão bem explicaste, não se trataria, então, de vida realmente.
- Pois é assim também com os livros. Pode viver-se sem os livros, mas não se trata, nesse caso, de vida realmente.
- Trata-se de morte…
- Trata-se de não viver completamente, que é uma forma de morrermos antes de morrermos.
- Sendo assim, que vivam os livros, não é?
- É. Que vivam os livros!
- Então, olha, façamos um brinde à Biblioteca Municipal de Ribeira de Pena. Fala tu…
- Não. Fala tu.
- Fala tu. Hoje, estás inspirado…
- De facto, estou. É decerto por ser Abril. É pelos livros. É pela ideia de liberdade que parece florescer tão formosamente, hoje, no concelho de Ribeira de Pena.
- Vês? Eu não te dizia? Estás inspirado! Anda, faz lá o brinde… E rápido, porque o coro vai começar a cantar não tarda nada…
- Seja. Acompanhai-me, caros amigos. Que esta biblioteca viva por muitos mais anos que a soma das nossas vidas e as dos nossos filhos e netos! Que a qualidade de vida dos ribeirapenenses presentes e futuros cresça em informação, conhecimento, sabedoria e liberdade! E, já agora, que o Francisco Botelho, homem de letras e de liberdade, sorria algures no universo, orgulhoso de uma obra que ajudou a sonhar!
Saúde e Sorte!
(FIM)
Ribeira de Pena, já 1.º de Maio de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Ao diálogo seguiu-se a interpretação, por alunos e professores do Agrupamento de Escolas de Ribeira de Pena, do tema “Somos Livres”, de Ermelinda Duarte. Os últimos versos foram, por nós, levemente alterados: em vez de "Somos livres, somos livres / Não voltaremos atrás!", cantámos "Somos livres, com os livros / Não voltaremos atrás!".]
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