A Caçada - Parte II
Este sábado houve jantarada e regressei de boleia até perto de casa. Saí do carro e senti a chuva bater-me na cara “arrefecendo-me”…soube-me bem. Trazia comigo emoções em turbilhão. Instintivamente, ao som dos meus passos na calçada, assobiei “Sounds of silence”, enquanto recordei as pessoas que fazem agora parte desta nova faceta da minha vida.
Que noite para passear… a chuva e o mau tempo são meus amigos. Fecho os olhos enquanto caminho e aquela sensação traz-me de volta recordações. Sacudo a cabeça e solto um palavrão, numa tentativa, sempre vã, de exorcizar o passado.
Abro a porta de casa e às escuras faço tudo. A escuridão e eu damo-nos bem. Atiro-me para a cama e sorrio relembrando o riso daqueles com quem passei as últimas horas. Boa gente, idealista, autêntica e generosa.
São 06H10 da manhã. Não dormi mais do que duas horas. Voltaram os pesadelos, especialmente o meu de “estimação”. Acordei suado, coração a latejar nas têmporas, tremor nas mãos, secura na boca e uma dor na alma…grande…as lágrimas voltam e vou espreitar o sono dos meus filhos. Dormem em paz e sossego os meus anjinhos. Vou à cozinha e faço café forte. É já uma rotina nestas noites em que o passado se torna presente de vivo que é, aliás, nunca foi passado pois está sempre comigo.
Às escuras, abro a janela da cozinha que dá para o quintal, enquanto saboreio o café duplo quentinho. O barulho da chuva nas árvores atira-me de novo lá para trás nas minhas memórias…
Amanhecia nas montanhas de Gubavitsa e uma névoa impenetrável tomou o lugar da chuva. A noite, essa, havia sido de alerta total. Os lobos haviam saído para matar e o início da madrugada trouxera-nos o cheiro da barbárie. Um cheiro agridoce, diferente dos outros cheiros. Queimavam-se corpos para esconder os vestígios da animalidade sanguinária. É um cheiro que não sai nem com mil banhos, entranha-se na memória e fica cá para sempre.
O homem é definitivamente o único animal que caça os da sua espécie por ódio e tira prazer disso. Eu ouvi-o, cheirei-o e vi-o.
Na chuva impenetrável daquela noite, onde nem os dispositivos de visão nocturna funcionam, foram os sentidos que nos descreveram o horror trazido pelo vento.
Que porra de clima este. Vestimos o “poncho” impermeável e o efeito de estufa deixa-nos molhados com o suor. Tiramos o “poncho” e ficamos encharcados até aos ossos. Safam-se os pés nas botas de montanha canadianas oferecidas pelo meu amigo Dany “Saguenay”, assim chamado por ser natural da terra dos índios daquela tribo.
Volta a realidade…Gritos de crianças, o choro aflitivo dos bebés e das mulheres violadas e violentadas, o choro convulsivo dos idosos e o do grito raivoso dos homens válidos a serem executados. Tudo isto entrecortado pelo crepitar das chamas e o ruir das estruturas de edifícios. O ladrar raivoso dos cães endoidece-me. Eis o que nos trouxe o vento naquela madrugada de Abril de 1994. Não precisávamos de ver para saber, até S. Tomé dispensaria a visão da tragédia.
Em silêncio, cerca das 2 horas da madrugada, o meu sub-grupo de três homens, aproveitando o ruído da barbárie e da chuva, recebera ordens para se deslocar em silêncio para um ponto mais baixo que permitisse uma melhor avaliação da situação. Éramos novamente os cordeiros em terra de lobos.
Aproximamo-nos dos arrabaldes de Gorazde por oeste noroeste, após quase 4 horas de caminhada, deixando Jabuka à esquerda. Usava-mos um lenço envolvendo a cara para dissipar o bafo quente da expiração, pois podia trair-nos. Eram agora mais perceptíveis os gritos dos carrascos e das vítimas. Torturavam ainda alguém para obter informações. A impunidade reinava e os sérvios sabiam-no.
Uma hora antes havíamos parado para recolher algumas plantas e fungos que esmagámos e esfregámo-nos nos sovacos e por todas as partes de onde se exala mais odor. Era difícil não cheirar mal após vários dias com a mesma roupa, mas o faro dos cães, apesar da chuva, podia facilmente detectar-nos e então…
Por cautela misturámos comprimidos esmagados com a pimenta das rações de combate e adicionámos-lhe vidro moído das lâmpadas de reserva das lanternas e dos filtros de cor das mesmas. Tal mistela, que guardámos dentro de um saco de plástico metido dentro de outro, liberta um odor intenso para os cães, atraindo-os e afastando-os de nós. É só polvilhar uma pequena peça de roupa ou um farrapo da mesma com a mistela e a força de aspiração dos cães fará o resto. Em poucos minutos o vidro moído fará o trabalho e os pobres bichos morrerão afogados no seu próprio sangue. São eles ou nós, por muito que nos doa.
Chegámos a um parapeito natural de onde se tinha uma vista privilegiada sobre o vale do Drina. Tínhamos de nos manter ali até ao anoitecer, regressando ao “conforto” da equipa durante a noite seguinte. A menos de duzentos metros de onde estávamos, junto a uma pequena cascata, cerca de quarenta elementos da milícia sérvia descansavam dos massacres nocturnos. Os que estavam de pé pareciam bêbados que nem cachos. Nas casas ainda intactas era visível uma inscrição em servo-croata; “zaizeta” (ocupada).
De repente, a menos de trinta metros de onde estávamos, para a nossa direita e ao mesmo nível de altitude, um miliciano sérvio, de cabelos já grisalhos, saiu de um abrigo de montanha, desses de madeira, caminhando direito à nossa posição. Vinha a compor-se, apertando o Anorak. A sinalética do costume e colocámo-nos em posição para o eliminar caso tropeçasse connosco. Teria de ser à faca, para não alertar os outros.
O coração batia descontroladamente, apesar de não ser a primeira vez que estava naquela situação. Parou a cerca dois metros de Stefan e, quando colocou o cigarro na boca para o acender, o nosso guia croata saltou eliminando-o silenciosamente. Subitamente ouvimos uns gemidos do mesmo local de onde tinha saído o miliciano. Fui lá caminhando curvado e a coberto das vistas do vale, enquanto os outros escondiam o corpo por entre o mato. Uma garota, não mais de quinze anos, com as roupas rasgadas, tentava limpar o sangue e os vestígios da violação que lhe corriam pelas pernas nuas. Abriu os olhos quando me viu e tive de lhe dar com a coronha da SA-80 para a impedir de gritar, denunciando a nossa presença.
Mais tarde, quando acordou e depois de se ter limpo, vestimos-lhe a farda do morto e Stefan indicou-lhe o caminho de montanha por onde fugir. Demos-lhe alguma comida e as guloseimas da ração. Nunca mais a vimos nem dela soubemos. No entanto tinha-nos visto e podia denunciar-nos sob tortura, para além de termos deixado um cadáver que mais tarde ou mais cedo seria descoberto.
Reportámos a situação via rádio e abandonámos a área rumando a sul, paralelamente ao rio Drina.
Após uma hora de caminhada Evans escorregou e caiu, danificando o emissor do rádio. Ouvíamos claramente os outros, mas parecia que ninguém nos ouvia. A noite descia e a escuridão voltava. Aproximava-se uma tempestade e os relâmpagos projectavam sombras ameaçadoras na floresta. Para norte, o ruído dos tiros e o ladrar dos cães não pronunciava nada de bom. Encontraram o corpo.
Ouviam-se claramente motores de viaturas nas estradas de montanha, a caçada havia começado.
Que noite para passear… a chuva e o mau tempo são meus amigos. Fecho os olhos enquanto caminho e aquela sensação traz-me de volta recordações. Sacudo a cabeça e solto um palavrão, numa tentativa, sempre vã, de exorcizar o passado.
Abro a porta de casa e às escuras faço tudo. A escuridão e eu damo-nos bem. Atiro-me para a cama e sorrio relembrando o riso daqueles com quem passei as últimas horas. Boa gente, idealista, autêntica e generosa.
São 06H10 da manhã. Não dormi mais do que duas horas. Voltaram os pesadelos, especialmente o meu de “estimação”. Acordei suado, coração a latejar nas têmporas, tremor nas mãos, secura na boca e uma dor na alma…grande…as lágrimas voltam e vou espreitar o sono dos meus filhos. Dormem em paz e sossego os meus anjinhos. Vou à cozinha e faço café forte. É já uma rotina nestas noites em que o passado se torna presente de vivo que é, aliás, nunca foi passado pois está sempre comigo.
Às escuras, abro a janela da cozinha que dá para o quintal, enquanto saboreio o café duplo quentinho. O barulho da chuva nas árvores atira-me de novo lá para trás nas minhas memórias…
Amanhecia nas montanhas de Gubavitsa e uma névoa impenetrável tomou o lugar da chuva. A noite, essa, havia sido de alerta total. Os lobos haviam saído para matar e o início da madrugada trouxera-nos o cheiro da barbárie. Um cheiro agridoce, diferente dos outros cheiros. Queimavam-se corpos para esconder os vestígios da animalidade sanguinária. É um cheiro que não sai nem com mil banhos, entranha-se na memória e fica cá para sempre.
O homem é definitivamente o único animal que caça os da sua espécie por ódio e tira prazer disso. Eu ouvi-o, cheirei-o e vi-o.
Na chuva impenetrável daquela noite, onde nem os dispositivos de visão nocturna funcionam, foram os sentidos que nos descreveram o horror trazido pelo vento.
Que porra de clima este. Vestimos o “poncho” impermeável e o efeito de estufa deixa-nos molhados com o suor. Tiramos o “poncho” e ficamos encharcados até aos ossos. Safam-se os pés nas botas de montanha canadianas oferecidas pelo meu amigo Dany “Saguenay”, assim chamado por ser natural da terra dos índios daquela tribo.
Volta a realidade…Gritos de crianças, o choro aflitivo dos bebés e das mulheres violadas e violentadas, o choro convulsivo dos idosos e o do grito raivoso dos homens válidos a serem executados. Tudo isto entrecortado pelo crepitar das chamas e o ruir das estruturas de edifícios. O ladrar raivoso dos cães endoidece-me. Eis o que nos trouxe o vento naquela madrugada de Abril de 1994. Não precisávamos de ver para saber, até S. Tomé dispensaria a visão da tragédia.
Em silêncio, cerca das 2 horas da madrugada, o meu sub-grupo de três homens, aproveitando o ruído da barbárie e da chuva, recebera ordens para se deslocar em silêncio para um ponto mais baixo que permitisse uma melhor avaliação da situação. Éramos novamente os cordeiros em terra de lobos.
Aproximamo-nos dos arrabaldes de Gorazde por oeste noroeste, após quase 4 horas de caminhada, deixando Jabuka à esquerda. Usava-mos um lenço envolvendo a cara para dissipar o bafo quente da expiração, pois podia trair-nos. Eram agora mais perceptíveis os gritos dos carrascos e das vítimas. Torturavam ainda alguém para obter informações. A impunidade reinava e os sérvios sabiam-no.
Uma hora antes havíamos parado para recolher algumas plantas e fungos que esmagámos e esfregámo-nos nos sovacos e por todas as partes de onde se exala mais odor. Era difícil não cheirar mal após vários dias com a mesma roupa, mas o faro dos cães, apesar da chuva, podia facilmente detectar-nos e então…
Por cautela misturámos comprimidos esmagados com a pimenta das rações de combate e adicionámos-lhe vidro moído das lâmpadas de reserva das lanternas e dos filtros de cor das mesmas. Tal mistela, que guardámos dentro de um saco de plástico metido dentro de outro, liberta um odor intenso para os cães, atraindo-os e afastando-os de nós. É só polvilhar uma pequena peça de roupa ou um farrapo da mesma com a mistela e a força de aspiração dos cães fará o resto. Em poucos minutos o vidro moído fará o trabalho e os pobres bichos morrerão afogados no seu próprio sangue. São eles ou nós, por muito que nos doa.
Chegámos a um parapeito natural de onde se tinha uma vista privilegiada sobre o vale do Drina. Tínhamos de nos manter ali até ao anoitecer, regressando ao “conforto” da equipa durante a noite seguinte. A menos de duzentos metros de onde estávamos, junto a uma pequena cascata, cerca de quarenta elementos da milícia sérvia descansavam dos massacres nocturnos. Os que estavam de pé pareciam bêbados que nem cachos. Nas casas ainda intactas era visível uma inscrição em servo-croata; “zaizeta” (ocupada).
De repente, a menos de trinta metros de onde estávamos, para a nossa direita e ao mesmo nível de altitude, um miliciano sérvio, de cabelos já grisalhos, saiu de um abrigo de montanha, desses de madeira, caminhando direito à nossa posição. Vinha a compor-se, apertando o Anorak. A sinalética do costume e colocámo-nos em posição para o eliminar caso tropeçasse connosco. Teria de ser à faca, para não alertar os outros.
O coração batia descontroladamente, apesar de não ser a primeira vez que estava naquela situação. Parou a cerca dois metros de Stefan e, quando colocou o cigarro na boca para o acender, o nosso guia croata saltou eliminando-o silenciosamente. Subitamente ouvimos uns gemidos do mesmo local de onde tinha saído o miliciano. Fui lá caminhando curvado e a coberto das vistas do vale, enquanto os outros escondiam o corpo por entre o mato. Uma garota, não mais de quinze anos, com as roupas rasgadas, tentava limpar o sangue e os vestígios da violação que lhe corriam pelas pernas nuas. Abriu os olhos quando me viu e tive de lhe dar com a coronha da SA-80 para a impedir de gritar, denunciando a nossa presença.
Mais tarde, quando acordou e depois de se ter limpo, vestimos-lhe a farda do morto e Stefan indicou-lhe o caminho de montanha por onde fugir. Demos-lhe alguma comida e as guloseimas da ração. Nunca mais a vimos nem dela soubemos. No entanto tinha-nos visto e podia denunciar-nos sob tortura, para além de termos deixado um cadáver que mais tarde ou mais cedo seria descoberto.
Reportámos a situação via rádio e abandonámos a área rumando a sul, paralelamente ao rio Drina.
Após uma hora de caminhada Evans escorregou e caiu, danificando o emissor do rádio. Ouvíamos claramente os outros, mas parecia que ninguém nos ouvia. A noite descia e a escuridão voltava. Aproximava-se uma tempestade e os relâmpagos projectavam sombras ameaçadoras na floresta. Para norte, o ruído dos tiros e o ladrar dos cães não pronunciava nada de bom. Encontraram o corpo.
Ouviam-se claramente motores de viaturas nas estradas de montanha, a caçada havia começado.