Memórias...
Pelas montanhas e rios
e mares que os rios buscam,
com o seu murmúrio fundo,
juro nunca me render.
Não comando a memória ou a lembrança de determinados eventos de que fui, para o bem e para o mal, espectador e actor. Por vezes quero lembrar-me de um sorriso de alguém que já foi e só a expressão na morte recordo. Outras, quero esquecer um momento menos bom e não consigo, apesar da tentativa reiterada. Traumas, chamam-lhe alguns, memórias os oradores e os românticos, síndrome pós-qualquer coisa os médicos. Eu cá chamo-lhe experiência de vida não desejada.
Há uma vantagem quase morbidamente invejosa em ter sobrevivido ao horror; a de me ver envelhecer recordando os que morreram sempre jovens, tal como eram no dia em que encontraram a dama de negro. Cinicamente assaltava-me a ideia, quando estive naquelas situações, de desejar que nada acontecesse e que se tivesse de acontecer que fosse aos outros, ou então, se me tivesse de tocar, que fosse só um ferimento ligeiro. Pensava nisto amiúde, diariamente, mas quando havia acção, inconscientemente saltava em frente e fui capaz de coisas que o temor normal, humano, meu também, não imagina sequer realizável, sem heroísmos ou essas tretas que os homens inventam para distinguir quem sobrevive à matança, esquecendo convenientemente que por cada herói num lado, há mães, pais, talvez mulheres e filhos que choram alguém no outro.
Cada medalha equivale a determinado número de mortes do outro lado. Talvez por isso tenha vendido as minhas fardas, latas com fitas de pano e outras vãs exaltações do orgulho militar. Uma qualquer companhia de teatro lhes dará melhor uso. Orgulho-me dos homens com quem servi, de com eles ter partilhado o perigo, sem mais. Um dia atravessei a correr uma praça para ir buscar uma criança que havia ficado para trás na debandada que se sucedeu a um ataque de morteiro. Havia ficado só e ainda não o sabia, mãe e pai haviam morrido na explosão e só a sua pequena estatura a salvou. Estivesse ela ao colo de um dos pais e estaria com eles agora. Quando uma granada de morteiro rebenta, quanto maior é a distância ao ponto de impacto maior é a amplitude da projecção de estilhaços, pelo que quanto mais junto ao solo menor é a probabilidade de sermos atingidos. Daí por vezes suceder que após um rebentamento, ao nível do solo nada sucedia, mas nas janelas próximas morriam pessoas atingidas pelos estilhaços. Enquanto atravessei a praça a correr os atiradores furtivos tentaram atingir-me, houve até quem dissesse que elas me “batiam” próximas dos calcanhares. Porque o fiz? Eu sei lá…faz-se e pronto, nem há cá palmadinhas nos ombros ao estilo Hollywood, os camaradas chama-nos filho da p…, monte de m… e segue-se em frente. Nada mais fiz que outros não tenham feito e isso serve-me de consolação por ter ajudado ao regresso de uns, da mesma forma que frequentemente me recrimino de não ter podido ajudar outros. Por vezes sinto remorso de não ter ficado lá eu em vez de outro, mas a simples lembrança dos meus filhos e dos que quero reconforta-me sem me curar. Um balão de aguardente anestesia a dor do momento e amanhã é outro dia, …só isso.
Regressaram as memórias por via deste frio que se faz sentir. Como o respeito. Ainda há gente que gosta de ir à neve, como esta que caiu hoje. Já dormiram ao sabor da intempérie, mesmo dentro de um saco térmico? A perspectiva romântica sobre férias na neve muda radicalmente.
Já sentiram vontade de aliviar o intestino ao relento, em montanha, com ventos gélidos a soprar e temperaturas na ordem dos menos dois dígitos? Então não sabem as dores que se sente se não untarem previamente o “olho” do dito com vaselina para evitar a congelação dos fluidos interiores. Em casos extremos causa morte. Para os menos prevenidos ficam as comissuras do dito em ferida e para sararem são duas a três semanas. O simples libertar de uma bolha gasosa pelos fundos causa lágrimas de dor. O acto de agachar e pôr a pele a nu, apesar das ceroulas de tampa traseira, causa dores e cãibras enormes devido ao frio que se sente.
Experimentem, após uma noite em altitude, tentar tirar as luvas para simplesmente rasgar o papel de uma barra energética. As sandes parecem pedra, qualquer sumo, leite com chocolate ou até a água estão sólidos, somente a aguardente, vodka ou rákia (aguardente balcânica) se mantém líquidas neste inferno frio. Não se lava a cara, os dentes esfregam-se com uma pasta tipo pó granulado que depois se cospe misturado na saliva. O cuspo congela mesmo antes de chegar ao chão. O frio greta os lábios e até o mais leve sorriso se transforma num esgar de dor. E quando se tem de tirar as luvas para urinar? O momento parece hilariante, mas é deveras dos mais sofridos, isto porque a seguir as articulações das mãos ficam dolorosas até aquecerem de novo…que dores…nos nós dos dedos então!
Colocam-se as barras energéticas debaixo das axilas, local mais quente do corpo e depois de aquecidas mastigam-se cuspindo o papel de embrulho…férias na neve? Nem oferecidas. Poderia discorrer sobre o tema por horas e no entanto nenhum manual militar refere o assunto.
Reacendeu-se então uma das mais terríveis visões da guerra. Durante os combates por Mostar era frequente aparecerem de manhã, bem dentro das linhas bósnias, cadáveres de muçulmanos degolados. Os sérvios da bósnia infiltravam-se de noite nas linhas inimigas e em silêncio executavam a matança. Uma noite estava de vigia num monte sobranceiro a Mostar, o monte Hum, a sudoeste da cidade, os combates pelos bairros periféricos aumentavam à medida que a noite avançava. Já de madrugada, a minha parelha, o sargento Evans, acordou-me dizendo que a cidade parecia um imenso cenário de fogo de artifício. O espectáculo era absolutamente inédito e terrivelmente belo, face aos milhares de pontos luminosos que se moviam em todas as direcções.
Os bósnios haviam descoberto que os sérvios se infiltravam pelos esgotos e prepararam-lhes a recepção. Nessa noite, depois de detectarem a sua presença, inundaram os esgotos com gasolina e lançaram-lhe fogo. Os que apressadamente tentaram sair pelas tampas à superfície foram abatidos, os outros, ou morriam queimados ou sufocavam. No dia seguinte as margens do rio Neretva, onde os esgotos conduziam, estavam pejadas de corpos de homens e animais.
Descemos à cidade e ali fiquei a saber a origem do “fogo de artifício” que havíamos testemunhado na noite anterior. O fogo nos esgotos incendiara homens e animais. Milhares de ratos em chamas haviam fugido do horror do fogo subindo à superfície e correndo pelas ruas da cidade até morrerem, outros caíram nas águas do rio. Os seus pequenos corpos em chamas eram os pequenos pontos luminosos que se nos afigurou ser fogo de artifício. Nunca mais vi girândolas com os mesmos olhos, detesto-as até. E o cheiro?...Meu Deus como cheira a morte pelo fogo…vomitei o dia todo e ainda me agonio quando recordo o cenário daquela manhã. Frio e fogo…dispenso!