segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Discurso, Cerveja, Gênero e Raça

A representação da mulher negra como objeto sexual é secular e é atualizado nesta peça publicitária com várias referências simbólicas: o vermelho (paixão), a rosa (amor), o sapato de salto fino e alto (sedução, fetiche), o vestido (sedução, erotização), meia de liga (sedução, fetiche). Porém, tudo isso quando associado ao desenho do corpo da mulher no enquadramento da foto, de costas para o(a) observador(a), com as pernas abertas (pela posição da perna esquerda), sentada inclinadamente na mesa, olhando de perfil, acentua-se a carga erótica. 

Se atentarmos bem, a literatura sempre atrelou à mulata o eroticismo, basta ver a descrição de Rita Baiana, em O Cortiço, e de Gabriela, em Garbiela Cravo e Canela. A questão é quando essa imagem associa-se ao mercantilismo, orientando o consumidor a olhar uma experiência humana com a lógica do comércio, numa previsível relação de coisificação, neste caso a sexualidade da mulher negra

Tudo isso ganha complexidade em uma cultura corporal como a baiana que muitas vezes não percebe as nuances do discurso e acaba se identificando com uma imagem ideologicamente montada para que haja uma identificação, porém para regulá-la.

A questão é: de onde parte o discurso? Como as mulheres negras se vêem nessa representação?

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

MULHER AINDA GANHA MENOS


O vídeo mostra que a luta das mulheres não é apenas por sua inserção nos espaços de poder, mas manterem-se nele com dignidade, pois exercer o mesmo trabalho que os homens e ganhar menos é, no mínimo, indecoroso. Para ampliar as riquezas, investe-se no discurso de equiparação de gênero, aparente, já que não há garantia, de fato, que as mulheres possam usufruir do seu salário. Mas para onde vai essa mais-valia? 

Neste vídeo, que parece óbvio, podemos verificar que as lutas feministas permanecem, mas as estratégias de enfrentamento devem ser outras porque o nível de sofisticação, não da exploração, mas de escamoteá-la, tornou-se extremamente confusa, mesclando discursos conservadores com emancipatórios.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA DE GÊNERO E A LEI “ANTIBAIXARIA” NA BAHIA[1]

Cecilia M. B. Sardenberg
OBSERVE- Observatório de Monitoramento da Lei Maria da Penha
NEIM/UFBA


A polêmica atual instaurada em torno da constitucionalidade do Projeto de Lei no. 19.137/2011 (apelidada de lei “Antibaixaria”) da Deputada Estadual Luiza Maia da Bahia, que dispõe sobre a não contratação, com verbas públicas, de artistas que degradem a imagem das mulheres, me faz voltar pouco mais de vinte anos no tempo, mais precisamente aos fins dos anos 1980, quando da elaboração da Constituição do Estado da Bahia. Naquela época, nós, feministas atuantes no Fórum de Mulheres de Salvador, nos reunimos várias vezes para discutir a inclusão de um capítulo específico sobre os direitos das mulheres na nova carta magna baiana.

Inspiradas pelos avanços conquistados por nós na Constituição Federal de 1988 com a mobilização de mulheres, em todo país, e, em especial, pelo chamado “Lobby do Batom” – o lobby exercido diretamente junto aos deputados e deputadas constituintes -- ousamos ir além formulando uma proposta ainda mais progressista para a Bahia. Dentre outras questões de interesse das mulheres, incluímos nessa proposta disposições sobre a prevenção da violência contra as mulheres e a obrigatoriedade de criação de delegacias especiais de atendimento às vítimas em cidades com mais de 50.000 habitantes, a proibição da exigência por parte de empregadores de comprovantes de esterilização das trabalhadoras, a criação de comissões especiais para monitorar as pesquisas no campo da reprodução humana, e – de interesse especial para o momento -- o impedimento da veiculação de mensagens que aviltassem a imagem das mulheres.

Nossa ousadia se revelava, tanto no teor dessas propostas, quanto no fato de que, para defendê-las na Constituinte Estadual, contávamos apenas com a Deputada Amabília Almeida, a única mulher então exercendo mandato naquela casa. Mas, nesse ponto, não havia o que temer. Com muita diplomacia, a nossa querida Amabília, companheira de muitas batalhas, conquistou mais aquela, logrando transformar nossas propostas em princípios e leis sagradas na Constituição Estadual de 1989. Foi assim que a Bahia passou a ter uma das constituições mais avançadas do país no tocante aos direitos das mulheres.

Frente à citada polêmica em torno do Projeto de Lei da Deputada Luíza Maia, destaco aqui, em especial, o Art. 282 da Constituição Estadual, particularmente o inciso I, em que se afirma que o Estado da Bahia “garantirá, perante a sociedade, a imagem social da mulher como mãe, trabalhadora e cidadã em igualdade de condições com o homem, objetivando”, entre outras questões, “impedir a veiculação de mensagens que atentem contra a dignidade da mulher, reforçando a discriminação sexual ou racial.” Nesse artigo reside, sem sombra de dúvida, a constitucionalidade do Projeto de Lei “antibaixaria”. Aliás, ele vem com mais de vinte anos de atraso para regulamentar o que reza nossa Constituição desde 1989, como de resto ainda acontece com a maior parte de nossas conquistas nessa carta, que ainda aguarda regulamentação.

Em relação ao Art. 282, posso testemunhar que, já na década de 1980, ao propormos sua inclusão na Constituição da Bahia, tínhamos em mente, não apenas o combate à constante veiculação de anúncios em jornais, outdoors e na mídia televisiva, que em muito desmerecem, objetificam e assaltam moralmente a nós, mulheres, como também à cantigas que exemplificam, em suas letras, o que se classifica como violência simbólica de gênero – tal qual em “...nega do cabelo duro... pega ela aí, pega ela aí prá passar batom ... na boca e na bochecha”, música sexista e racista, popular na época!

Na verdade, uma de nossas maiores preocupações era (e ainda é) o enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres, particularmente a violência simbólica de gênero, que se infiltra por todo a nossa cultura, legitimando os outros tipos de violência. Por “violência de gênero”, refiro-me a toda e qualquer forma de agressão ou constrangimento físico, moral, psicológico, emocional, institucional, cultural ou patrimonial, que tenha por base a organização social dos sexos e que seja impetrada contra determinados indivíduos, explícita ou implicitamente, devido à sua condição de sexo ou orientação sexual. Isso implica dizer que tanto homens quanto mulheres, independente de sua preferência sexual, podem ser alvos da violência de gênero. Contudo, em virtude da ordem de gênero patriarcal, ‘machista’, dominante em nossa sociedade, são, porém, as mulheres e, em menor número, os homossexuais, que se vêem mais comumente na situação de objetos/vítimas desse tipo de violência.

Quando falamos de violência de gênero contra mulheres, pensamos mais de imediato em atos de violência física – agressões, espancamentos, estupros, assassinatos -- perpetrados, geralmente, por seus companheiros, e que acabam estampados em manchetes nas páginas policiais jornalísticas. Essa é, sem dúvida, a mais chocante e revoltante forma de violência de gênero, posto que atenta diretamente contra a vida de uma pessoa, não sendo raros os casos em que ela passa impune.

A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, trouxe um grande avanço no enfrentamento à violência de gênero contra mulheres, vez que, além de criminalizar esse tipo de violência - que passava invisível na esfera doméstica e familiar - também reconheceu outras formas de violência, tais como a violência sexual, moral, psicológica, e patrimonial, como igualmente puníveis por lei. Cabe lembrar, porém, que tanto as agressões físicas, quanto essas outras formas de violência e sua impunidade, são legitimadas pela ordem social de gênero que caracteriza a nossa sociedade, a ordem de gênero patriarcal, ordem inscrita e perpetrada nas nossas instituições sociais, nos nossos sistemas de crenças e valores e no nosso universo simbólico, com ressonância nas relações interpessoais e na construção das nossas identidades e subjetividades enquanto homens e mulheres.

De fato, a violência de gênero se expressa com força nas nossas instituições sociais (falamos então de violência institucional de gênero) e, de maneira mais sutil, embora não menos constrangedora, na nossa vida cultural, nos atacando (ou mesmo nos bombardeando) por todos os lados, sem que tenhamos plena consciência disso. Diariamente, ouvimos piadinhas, canções, poemas, ou vemo-nos diante de contos, novelas, comerciais, anúncios, ou mesmo livros didáticos (ditos científicos!), de toda uma produção cultural que dissemina imagens e representações degradantes, ou que, de uma forma ou de outra, nos diminuem enquanto mulheres. Essas imagens acabam sendo interiorizadas por nós (até mesmo as feministas “de carteirinha”), muitas vezes sem que nos demos conta disso. Elas contribuem sobremaneira na construção de nossas identidades/subjetividades, diminuindo, inclusive, nossa auto-estima.

Isso tudo se constitui no que chamamos de violência simbólica de gênero, uma forma de violência que é, indubitavelmente, uma das violências de gênero mais difíceis de detectarmos, analisarmos e, por isso mesmo, combatermos. Talvez até mesmo porque o ‘bombardeio’ é tanto, de todos os lados, que acabamos ficando anestesiadas, inertes, impassíveis, incapazes de percebê-la, bem como o seu poder destruidor. Na verdade, o mundo simbólico aparece como um grande quebra-cabeças a ser decifrado, difícil de abordar, vez que, como no caso das metáforas, ele se processa através de um encadeamento e superposição de símbolos e seus significados, ou de associações, transposições, oposições e deslocamentos. Destrinchar esses processos é muitas vezes adentrar num labirinto, correndo atrás de um novelo que torce, retorce, rola, enrola e dá nós, difíceis de serem desatados. Por isso mesmo, a violência simbólica é sutil, mascarada, disfarçada e, assim, bastante eficaz.

Certamente, não é esse o caso da “nova poesia baiana”, tal qual expressa nas letras do nosso cancioneiro popular contemporâneo. Ao contrário, não há nada de dissimulado nessas cantigas. Nelas, a imagem da mulher, de todas nós mulheres, é explicitamente aviltada, rebaixada, causando constrangimento naquelas que se prezam. Senão vejamos:

Em “Me Dá a Patinha”, por exemplo, a mulher é abertamente chamada de “cadela”, porque está supostamente disponível para todos:

O João já pegou
Manoel, pegou também
O Mateus engravidou,
tá esperando o seu nenem
Carlinhos, pegou de quatro
Marquinhos fez frango assado
José sem camisinha
Pego uma coceirinha
O nome del'é Marcela
Eu vou te dizer quem é ela
Eu disse
Ela, ela, ela é uma cadela
Ela,ela mais ela é prima de Isabela
Joga a patinha pra cima
One,Two,Three
Me dá, me dá patinha
Me dá sua cachorrinha

(sic)

Igualmente desrespeitosa em relação às mulheres é a cantiga “Ela é Dog”, que segue a mesma linha (... estilo cachorra, ela fica de quatro, ela é dog, dog, dog, ....parede de costas), assim como “Rala a Tcheca no Chão” (rala a tcheca no chão, a tcheca no chão, a tcheca no chão, mamãe), sem esquecer de “Na Boquinha da Garrafa”, onde se afirma que ...no samba ela gosta do rala, rala, me trocou pela garrafa, não agüentou e foi ralar... vai ralando na boquinha da garrafa, sobe e desce na boquinha da garrafa,

É na boca da garrafa...

Ressalto que não se trata somente do gosto deveras questionável desses versos, mas, sobretudo, da incitação e legitimação da violência física contra mulheres que eles expressam. Como nos versos, ...se o homem é chiclete, mulher é que nem Lata, um chuta, o outro cata...”, ou então, na já combatida “Tapinha de Amor”:

Não era preciso chorar desse jeito
Menina bonita anjo encantador
Aquele tapinha que dei no seu rosto
Não foi por maldade foi prova de amor
A nossa briguinha foi de brincadeira
...
Não seja assim tolinha eu sei que tapinha de amor não dói

(sic)

Não custa lembrar que foram mais de 30 anos de lutas dos movimentos feministas no país no combate à violência de gênero contra mulheres, uma luta que logrou trazer a elaboração e aprovação da Lei Maria da Penha em agosto de 2006. Essa lei cria mecanismos para “coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, assim destacando, em seus Artigos 2º e 3º:

Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

De acordo com a Lei Maria da Penha, uma Lei Federal, e, como vimos, também de acordo com a Constituição da Bahia, é dever do Estado combater a violência, assegurando às mulheres o direito ao respeito e dignidade enquanto seres humanos. O Projeto de Lei apresentado pela Dep. Luiza Maia vem regulamentar a intervenção do Estado nesse tocante, dispondo sobre “a proibição do uso de recursos públicos para a contratação de artistas que, em suas músicas, danças, ou coreografias desvalorizem, incentivem à violência ou exponham as mulheres a situações de constrangimento.”

Ressalte-se que não se trata aqui de cercear o direito de “livre expressão artística” de ninguém, já devidamente consagrada na Constituição Federal. Não se trata de fazer censura. Longe disso! Mas é necessário que o Estado não seja conivente com mensagens que façam a apologia da violência de gênero contra mulheres, utilizando verbas públicas – o dinheiro nosso e do nosso povo – para aviltar a nossa imagem! Fazê-lo, ou seja, contratar com dinheiro público quem assim procede é legitimar a violência de gênero contra as mulheres. É, pois, atentar contra a nossa carta magna, cabendo, pois, de nossa parte, a impetração de ações cíveis junto ao Ministério Público.
Espera-se, outrossim, que o Projeto de Lei em questão também tenha um papel pedagógico. Que ele venha a conscientizar mulheres e homens desta Bahia (e por que não, do nosso Brasil) da necessidade de combate à violência contra mulheres, hoje expressa, de forma tão vulgar e grosseira, no nosso cancioneiro popular. Creio que é isso que minhas combativas companheiras do Fórum de Mulheres de Salvador, que comigo lutaram pelo avanço das nossas conquistas nos idos dos anos 1980, tinham também em mente quando sonhávamos com uma Bahia sem sexismo, sem racismo, e sem violência!
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[1] Uma primeira versão deste ensaio foi apresentada como contribuição aos debates sobre o Projeto de Lei No.19.137/2011, na Comissão da Mulher da Assembléia Legislativa da Bahia, em 24/08/2011.

O artigo acima foi autorizado por e-mail pela autora para fins de divulgação neste blog.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Mandem no mundo (garotas) - Beyoncé

Run the World (girls)



A letra é composta por Beyoncé e traz também a participação de Major Lazer (Diplo e Switch), DJs responsáveis pela música. Tive conhecimento da composição através de uma aluna, após uma discussão sobre relações de gênero, condição da mulher, representações da mulher na mídia. Ao final da aula, ela me enviou por e-mail a letra traduzida e o link do videoclipe. Durante a sua intervenção, ela chegou a considerar que a produção artística tinha um olhar  feminista, mas que, ao perceber que a cantora na performance "bate continência" para os homens, isso a teria feito mudar de opinião, pelo menos naquele momento.

Lembro-me que havia lhe dito que o gesto de "bater continência" tinha uma conotação de poder. A discussão prosseguiu e entrou pela aula seguinte. A questão é que na cultura militar, de onde o gesto tornou-se difundido, quem primeiro saúda é quem possui nível hierárquico inferior, o que traduziria na música uma inferioridade feminina. Talvez isso tenha trazido uma ambiguidade à composição.

O videoclipe é um texto audiovisual que eclodiu nos anos 80 em uma linguagem mais voltada para a televisão. A sua estética veloz e de imagens fragmentadas coaduna com a narrativa condensada e sugestiva, daí a dificuldade de encerrar uma interpretação fechada, provocando, em geral, diferentes possibilidades interpretativas, uma das riquezas, a meu ver, deste gênero. Seu propósito consiste em divulgar uma música e, obviamente, o artista, e é exibido em televisão, tornando-se um meio poderosos de massificação musical e de projeção de cantores e cantoras.

Em relação a Beyoncé, sabe-se que o seu grupo é formado apenas por mulheres e o videoclipe reforça essa escolha. A letra projeta a mulher em um mundo em que a sua afirmação de gênero se faz mediante a um discurso contundente, expressivamente firme, (em palavras, gestos e passos de dança) que busca por uma unidade das mulheres. O discurso de “quem manda” sugere uma disputa por espaço, de afirmação, dentro de uma sociedade de consumo em que o poder está relacionado ao que se pode comprar e pagar. As ideias de poder envolvem a emancipação em relação aos homens, através da autonomia financeira, do controle sobre a sua sexualidade, muito visível no vídeoclipe através do vestuário com base em tecidos diáfanos, meias de liga e lingerie, do acesso ao conhecimento (Deixe-me fazer um brinde/ Para as universitárias graduadas), e no direito de ter uma profissão e à maternidade (cuidar das crianças e dos negócios).


O videoclipe é visualmente rico, composto em um ambiente underground, no qual dois grupos formados de um lado por mulheres e de outro por homens se enfrentam, nos lembrando dos videoclipes de Michael Jackson como Beat it, por exemplo. Os homens aparecem munidos de equipamentos militares (cassetete, escudo, medalhas de condecoração, farda, coturno, capacete), mas o outro (quem sabe o mesmo) aparece com leves semelhanças, porém sem os capacetes, os escudos. Esta ambiguidade pode sugerir uma linha tênue entre os dois mundos, até porque, se tomarmos a continência como exemplo, veremos que grupos não apenas militares a utilizam, mas os paramilitares ou, em suma, qualquer organização. O uso da continência está relacionado, assim, à identificação de membros do mesmo grupo. Se a saudação tem a ver com a identificação de pessoas que se reúnem para um mesmo propósito, de defender o território, neste sentido, o grupo de mulheres do videoclipe pode estar se colocando como um grupo organizado disposto a defender o “estado” das mulheres, mas que ao se dirigir para o outro, homens, reconhece-os como parte deste estado, no entanto essa aproximação não é sem tensão haja vista as referências no video ao carceramento e ao sofrimento das mulheres, evocados na modelo que está dentro de uma jaula e na outra que está amarrada em posição de crucufixão. A liberdade,  a incontinência do prazer, expressa nas roupas das dançarinas, podem sugerir uma crítica ao olhar fetichizado sobre a mulher-objeto, e que elas utilizam agora como forma de empoderar-se. Mas ainda fica vaga a ideia de como se dá esse empoderamento, na medida em que ao se colocar nessa condição na vida real, elas são violentadas ou mortas, já que passam a controlar o desejo masculino.

Existem recursos simbólicos que envolvem cores, gestos, mas também animais, a exemplo do cavalo, hiena, búfalo, leão, espécies de origem africana e americana, podendo ser entendida como uma referência a cultura afro-americana.  Os animais estão associados ao poder, à altivez, à força.

Segue abaixo a letra da música traduzida

Garotas, a gente manda nesta m*.


Garotas, a gente manda nesta m*!
Garotas, a gente manda nesta m*!
Garotas, a gente manda nesta m*!
Garotas!
Quem manda no mundo?
Garotas!
Quem manda no mundo?
Garotas!
Quem manda no mundo?
Garotas!
Quem manda no mundo?
Garotas!


Quem manda nesta merda?
Garotas!
Quem manda nesta merda?
Garotas!
Quem manda nesta merda?
Garotas!
Quem manda nesta merda?
Garotas!


Alguns daqueles homens pensam que detonam isso
Como nós
Mas não, eles não detonam
Vão conferir, cheguem em seus pescoços
Nos desrespeitar?
Não, eles não irão

Garoto, nem tente tocar nisso
Garoto, essa batida é louca
Foi assim que eles me criaram
Em Houston, Texas querido

Essa vai para todas as minhas garotas
Que estão no clube curtindo a última novidade
Que compram para si mesmas
E ganham mais dinheiro depois


Eu acho que preciso de uma folga
Nenhuma desses manos podem me ocultar
Eu sou tão boa nisso
Vou te lembrar, eu conheço bem isso


Garoto, estou apenas brincando
Venha aqui, querido
Espero que você ainda goste de mim
F*, me pague


Minha persuasão
Pode construir uma nação
Poder infinito
Com o nosso amor, a gente pode devorar


Você vai fazer qualquer coisa para mim

Refrão

Está quente aqui em cima DJ
Não tenha medo de tocar essa, tocar essa de volta
Estou falando em nome das garotas
Que já dominaram o mundo

Deixe-me fazer um brinde
Para as universitárias graduadas

Amigo, uma rodada e
Eu te deixo saber que horas são, veja
Você não pode me deter
Eu me arrebento o dia todo, melhor ir pegar meu cheque


Essa vai para todas as mulheres
Que estão conseguindo
Alcançando seus objetivos
Para todos os homens que respeitam
O que eu faço
Por favor, aceite meu brilho


Garoto você sabe que adora
Como somos espertas o bastante para ganhar milhões
Forte o suficiente para lidar com as crianças
E depois voltar aos negócios

Veja, é melhor não brincar comigo
Oh, venha aqui querido
Espero que você ainda goste de mim
F*, me pague


Minha persuasão
Pode construir uma nação
Poder infinito
A gente pode devorar o amor

Você vai fazer qualquer coisa para mim

Refrão

Podemos ver o videoclipe como um encenação do que seria aparentemente uma guerra dos sexos, desta vez protagonizados por mulheres negras urbanas que performatizam as disputas pelos espaços de poder entre mulheres e homens. No final do videoclipe, quando ocorre a continência, dá a entender que as mulheres formam um grupo tão organizado quando o dos homens e que, pela altivez, representada pelo corpo esguio e cabeça suspensa, a ideia é fazer com que eles as respeitem também.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O Pagode ou a Derrota das Mulheres – Parte II

“O intelectual encontra-se sempre entre a solidão e o alinhamento”
(Edward Said)

Já escrevi uma vez sobre algumas músicas de pagode que desqualificam a mulher e depois do PL da deputada Luiza Maia (PT) sinto-me mais uma vez provocada a participar do debate.

Tenho escutado e lido a respeito e os argumentos são antigos, velhos conhecidos nossos. Vejamos alguns. Um deles diz respeito a ferir a liberdade de expressão ao instituir a censura, mas a democracia não significa ausência de regras, e a liberdade, o seu sustentáculo, garante o direito ao outro de escolher, o que não acontece em nossa sociedade, uma vez que as mulheres pobres e negras da sociedade são apenas valorizadas pelos seus atributos físicos e mais nada. Onde está a escolha? Não é preciso dizer como anda a educação pública em termos de valorização do potencial intelectual e de conscientização dessas mulheres, o que me faz desconfiar de um livre consentimento delas. Noam Chomsky em seu livro “O Lucro ou as Pessoas” fala de um consentimento sem consentimento, ao defender a ideia de que as pessoas consentem porque são agraciadas, corrompidas, aliciadas, seduzidas à prática, o que isenta o agressor de qualquer violência (o crítico norte-americano faz referência à mídia principalmente). E é exatamente neste ponto que reside a manobra mais astuta e a face mais cruel da nossa sociedade porque a sedução não agride, ela é suave, vem acompanhada de palavras carinhosas, afetuosas, e vem de um sujeito não tão distante, mas de homens tão pobres e negros quanto as mulheres que se lançam nas pistas de dança para viverem alguns minutos de prazer (já que não existe outro espaço e momento que possa equiparar em  intensidade e frequência). O consumo e o afã de enriquecer desconhecem qualquer laço de solidariedade. É a face extrema do individualismo.

Outro ponto argumentativo dos que defendem este discurso verborrágico misógino é de que tudo é em nome da brincadeira, como se isso não fosse uma estratégia para alcançar o gosto das meninas e adolescentes, confundindo-as, tratando-as infantilmente, a fim de transformá-las em parque de diversões dos meninos que se divirtem às suas custas. Há quem diga ainda que as meninas não são tão inocentes, mas ponho em dúvida se o excesso de exibicionismo do corpo significa controle ou falta deste, na medida em que a indústria cultural e de entretenimento é expert em transformar os gestos espontâneos da cultura em negócios, que são devolvidos para o povo de forma distorcida. Daí a confusão que causa nas pessoas já que uma parte desta devolução contém elementos que fazem parte da identidade cultural, mas a outra banda podre explora, prostitui e suga toda a beleza e encanto que o gesto popular pode ter, mas que as pessoas não percebem diante da manobra de assimilação. Além disso, o discurso é veiculado por jovens, geralmente oriundos do mesmo estrato social, por isso mais convincente, além de ser revestido de expressões e tons de grande apelo afetivo.

Outro aspecto relevante é que qualquer pessoa que se posicione contra o pagode está perseguindo o povo negro e pobre. Isso é um jogo retórico conhecido, já que opera com a inversão, no sentido de neutralizar o discurso do outro através da universalização. É sabido que o ritmo é contagiante, o que facilita a absorção das letras misóginas, mas sabemos também nem toda música de pagode tem uma letra depreciativa, a exemplo de Açaí Granola, do Sam Hop, Liberar Geral, do Terra Samba, entre outras. Portanto, o discurso da perseguição ao povo negro e pobre não se sustenta. Outro ponto é que as mulheres brancas e ricas se renderam ao pagode. Na busca de desvincular o pagode de um gosto específico de pobres e negros, adota-se, mais uma vez, o argumento universalista, aludindo a raça e a classe. As brancas podem gostar e se identificar, até porque tem muita menina branca na periferia, mas ricas, só se for para exorcizar as suas repressões burguesas, encontrando um emplasto para liberarem as suas emoções contidas, mas depois voltam para o seu mundo.

Outro argumento foi em relação à musica de duplo sentido, como traço pertencente à música popular. Disso sabemos, mas o que existe em certas letras de pagode é uma grosseria, não há duplo sentido, já que a explicitação ocorre na coreografia e na letra da música. Onde está o duplo sentido? O povo sabe fazer isso com muita engenhosidade, criatividade, mas como o consumo exige uma produção em larga escala, o que era criatividade poética popular, tornou-se uma avalanche de combinações homonímicas pobres, repetitivas e estereotipadas.

É uma pena que uma música tão nossa tenha se tornado tão alijada de humanidade porque os lucros transformam meninos ambiciosos em baluartes e porta-vozes daqueles que pouco se incomodam com o que o povo pensa. E as meninas, transbordando vitalidade e vigor, desperdiçam as suas vidas e energia para alimentarem uma indústria que abarrota suas contas bancárias de sonhos cifrados. Sem melhores oportunidades, essas meninas se entregam a alguns instantes de prazer renovados a cada show e patrocinados pelas grandes marcas.

Outro ponto, mostrado por um programa de TV, destacou, pela sua edição, que haveria incoerência da deputada baiana ao ter manifestado o seu apreço pelo pagode, como se fosse uma contradição. O que foi muito tendencioso da emissora, já que a questão não é, a meu ver, uma cruzada contra o pagode, mas reconhecer que algumas letras são, de fato, depreciativas e nós, mulheres, pelo menos algumas de nós, não podemos assistir a tudo isso sem, pelo menos, mostrar a nossa visão, o contraponto. O que eu percebo é um silêncio cínico dos intelectuais em relação a determinadas discussões, principalmente quando se trata da cultura, como se tudo que fosse da cultura fizesse bem ou, pior, como se o intelectual não pudesse interferir no seu curso. É lamentável que alguns intelectuais cometam esse desserviço e apenas descrevam e não critiquem. O resultado disso é uma população acrítica graças a certos doutores que constatam a realidade, mas não a analisam, não a transformam.

Eu, particularmente, Said, prefiro a solidão.


“O que o intelectual deveria menos fazer é atuar para que seu público se sinta bem: o importante é causar embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável”
(Edward Said)

domingo, 24 de julho de 2011

Amy Jade Winehouse

Amy Winehouse nasceu em uma área suburbana de Southgate, bairro de Londres, numa família judia de quatro pessoas, com tradição musical ligada ao jazz. Seu pai, Mitchell Winehouse, era motorista de táxi e sua mãe, Janis, farmacêutica. Amy tem ainda um irmão mais velho, Alex Winehouse. Cresceu em Southgate, onde fez os estudos na Ashmole School. (wikipedia)

Ter nascido em setembro já lhe confere uma áura artística, típica dos virginianos. Já a sua intensidade vem da energia do signo que precede, leão.

A morte da cantora britânica Amy Winehouse nos faz pensar seriamente sobre uma geração de mulheres que transitam pelo meio artístico e  também em mulheres que, embora não estejam diante dos holofotes, morrem diariamente por dependência: química, patrimonial, emocional, financeira, psicológica.

Para além de perscrutar as causa da morte da cantora, quase toda ela apontando para o consumo das drogas, o fato é que não se consegue sair de um discurso culpabilizante, moralista e condenatório, enxergando apenas a superfície da questão. Vejo a relação entre talento, mídia, consumo e uma marca que atribuo a uma geração de mulheres, assoladas pela desesperança e pela indignação diante da vida. A morte por drogas é um misto de suicídio e homicídio, já que, em razão de não ser executado por outro, ganha contornos suicidas, mas, se olharmos por outro ângulo, veremos que neste gesto há uma forte participação da sociedade, já que os sujeitos que aqui estão não foram criados em outro planeta. Isso me fez lembrar o romance Atire em Sofia, de Sonia Coutinho, 1989, quando a voz narrativa não deixa claro para o leitor a autoria do crime, deixando várias possibilidades, incluindo as instituições sociais.

Em tempos de extremo individualismo, é mais fácil atribuir à morte de Amy a uma atitude que resulta em uma escolha pessoal, um estilo de vida, mas acredito que qualquer dependência seja uma situação muito difícil de sair, porque para ter se chegado a essa situação, a pessoa foi seduzia ou forçada a consumir uma ideia. As ideias não são boas ou ruins em si, mas elas são apresentadas de forma sedutora porque o mundo dos holofotes é muito atraente, o poder, a fama, mas este mesmo mundo que promete luz e glória apresenta a sua face mais perversa, pois quem dá um dia, no outro quer de volta.

Qualquer dependência é perniciosa, seja ela química ou cultural. Não conhecemos nada sobre Amy a não ser que tinha uma linda voz, era talentosa, que consumia drogas e apresentava-se bêbada nos shows. A mídia mostra uma mulher completamente outsider, embora, paradoxalmente, seja essa performance que renda uma fortuna para a mesma sociedade que a execra.

Não tinha chegado aos 30 e já aparentava um desgaste físico, marcando em seu corpo pela dor e pela intensidade, uma extrema vontade de viver e de prazer que só poderia existir metafisicamente. As ideias oferecidas ao consumidor diariamente são pequenos prazeres passageiros, como é tudo na vida, mas nos enganam desde que nascemos com o discurso de um permanente estado de gozo que, obviamente, pela sua inexistência, só poderia atrair tragédias cotidianas.

Eu não conheci Amy, mas a sua história não deve ser muito diferentes de outras mulheres de sua geração e quiçá de outras, de tempos remotos, de mulheres talentosas, mas que, de alguma forma, não conseguem viver neste mundo.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O DISCURSO NA MÍDIA - CABELO DE NEYMAR

Embora não tematize a mulher (apesar de algumas gostarem do tema), não pude deixar de comentar uma manchete publicada ontem em um jornal de Salvador que trazia mais ou menos o seguinte enunciado sobre o cabelo do jogador de futebol Neymar: nem punk, nem índio, apenas na moda.  Aparentemente parece que o enunciador (entidade do texto que diz algo sobre alguém ou alguma coisa) tem o interesse em desvincular a imagem do punk e do índio do estilo capilar de Neymar ao fazer referência ao corte de cabelo em que apenas uma linha central e vertical de aproximadamente dez centímetros, que vai do frontal da cabeça até a nuca, é mantida, tendo as laterais raspadas.

Neste enunciado, ao colocar a moda ao lado do punk e do índio, e ao encadear os três termos intercalados pela estrutura de negação nem...nem, percebi que a moda aparece como se não fosse algo ideologicamente manifesto, ao contrário do punk que se apresenta como movimento estético-político e o corte de cabelo indígena que corresponde a uma etnia, portanto com marca ideológica também. Já quando se fala no cabelo como moda, negando qualquer vínculo com as outras expressões, pressupõem-se  de que não há na moda qualquer manifestação interessada: moda é apenas curtição... mas não é. Portanto, o cabelo de Neymar não é apenas moda (embora seja legítimo e compreensível que ele tenha que negar isso publicamente), é também uma afirmação de classe (origem) e, também, étnico-racial.

"É do cabelo à raiz, é da cabeça feliz."
(Chiclete com Banana)