sexta-feira, 23 de março de 2012

Estampas de violência de gênero

A telenovela Fina Estampa, exibida pela Rede Globo de Televisão, no horário das 21h, tem sido muito injusta com as mulheres sobretudo as solteiras e bem-sucedidas, como a personagem vivida por Renata Sorrah.

A cassação da licença de Daniele (Renata Sorrah) para exercer a medicina teria sido para introduzir o tema ética? Parece que não.

Se obervrmos atentamente, veremos que as cenas da telenovela constróem uma imagem idônea da médica, mostrando que a sua atitude em manejar os gametas foi um ato isolado, na medida em que ela não é descrita ao longo dos capítulos como uma pessoa desonesta, mercenária e reincidente. Cassa-se a médica por um ato pontual em sua longa carreira ética, mas deixa livre um agressor como Balthazar que comete ao longo dos capítulos repetidamente agressões físicas e verbais à sua esposa.

A meu ver, houve um tratamento diferenciado para as duas práticas sociais e penso que este tratamento está relacionado com a visão que ainda se tem sobre o espaço público e privado. Aquele seria mais valorizado do que este, reforçando subrepticiamente o ditado "briga de marido e mulher não se mete a colher". A direção preferiu não se meter e deixar que o clichê, que tanto tem causado dor e destrução às mulheres, permanecesse: o mote de que o amor pode tudo, mas entendendo o amor como uma atitude de subserviência ao outro, herança judaico-cristã que nos persegue há séculos.

Mas essa mesma lógica parece não ter sido usada no caso de Daniele cujo amor pela medicina não foi o suficiente para redimi-la de seu único ato, mesmo tendo demonstrado ao longo de sua carreira uma idoneidade profissional e de ter expressado isso diante do Conselho de Medicina, representado na telenovela como uma instância que nos lembra os inquisidores medievais. O amor de Daniele foi comparado ao de Balthazar e colocado como menor, menos importante. Ele, criminoso reincidente, teve uma chance, mas ela foi queimada viva na fogueira do preconceito e que, por não achar lugar nesta sociedade, se auto-degreda.

O desespero vivido pela personagem chegou ao ponto de querer voltar a fazer vestibular para medicina, no esforço de retornar à sua profissão, a sua única razão de existir, mas ela que já tinha sido  condenada à pena máxima, deixou-se iludir, num claro gesto desesperador, de quem segura a único objeto flutuante antes do naufrágio. Sem a possibilidade de reintegração social, Daniele agoniza e é engolida pelas águas patriarcais que norteiam as práticas sociais de gênero.

O que considero também curioso é que Daniele era pesquisadora geneticista juntamente com o seu marido, mas é na viuvez que ela comete o desvio ético. Por que ela se culpa tanto e faz referência à memória do seu marido? Se ele estivesse vivo, ela teria feito a mesma coisa? Ela, por ser mulher, deixou a emoção falar mais alto? Os homens estão isentos a cometer esses erros? As razões seriam as mesmas? Será que a tutelagem, que tanto acompanha o discurso machista, não está sendo reforçada? 

Se os homens representam essa regulação racional, as mulheres não seriam adequadas a desempenhar tarefas intelectuais, em razão do sexo. São inaptas a exercerem uma profissão que exige a aplicação da razão e, por isso, devem ser tuteladas. Para piorar, o que está em jogo é a reprodução. É como se elas fossem colocar as emoções acima da razão por uma condição inata ao sexo.

O ódio às mulheres sem homem é visível nesta telenovela. A uma mulher intelectual, madura e independente  reserva-se um final trágico, pois além de ser banida do convívio da sociedade (observe-se que ela não é vista em um círculo de amizades) é resgatada por um homem que não pertence a sua classe social e cultural, descrito como "golpista". No capítulo exibido ontem, 22 de março, em uma conversa com o pai (José Meyer) foi perceptível a sua indiferença ao revelar as suas esporádicas visitas a Daniele na África. Como se a sua aproximação com a médica fosse um gesto de misericórdia. O fato de o modelo ter agora dinheiro coloca-o em nível superior à Danielle que precisou perder o seu status social para ser feliz no amor. Que retrocesso...

Os constrangimentos para esta médica parecem ser poucos: neste mesmo capítulo, enquanto o emergente modelo caminhava pela rua com a médica, ele foi assediado por um grupo de jovens mulheres. Uma delas pediu que ele desse um autográfo em sua roupa, um top. Ele olha para Danielle e ela o autoriza, constrangida, a dar o autógrafo na região do seio. Para suplementar a punição a esta médica, a jovem referiu-se a ela como mãe.

Ela precisa passar por um sofrimento progressivo (pathos) e, como sempre acontece nas tragédias misóginas ocidentais, o desenlace da personagem feminina é a morte física ou simbólica.  

Balthazar foi (re)integrado, mas Daniele foi  execrada da sociedade, queimada na fogueira por uma hybris sociocultural que confere aos homens privilégios, pois a lei patriarcal ainda é a base das ações nas práticas sociais.

E já que a telenovela tem tanto merchandising, seria uma ótima oportunidade de a Lei Maria da Penha aparecer através de uma cena gravada na DEAM com Celeste denunciando Balthazar, se houvesse de fato algum interesse emancipatório para as mulheres. Como não há, isso se constituiria um desvio ético?

domingo, 1 de janeiro de 2012

Resultado da enquete

Uma enquete esteve disponível no ano passado sobre quais  setores da sociedade mais desqualificavam a mulher nas propagandas. 15 pessoas votaram e destas, 10, isto é 66%, acharam que as propagandas de bebida são as que mais violentam as mulheres. Em segundo, com 3 votos (20%), ficaram a propagandas de produtos domésticos e em terceiro, com 02 votos (13%), as de moda. A indústria automobolística parece ter reduzido as propagandas que expunham a mulher e talvez, em razão disto, não obteve votação.

sábado, 31 de dezembro de 2011

Lady Delish

A indústria da cultura pop é um campo profícuo para as analistas críticas do discurso feminista porque produzem textos que contribuem enormemente para organização do tecido social com base nas relações de gênero. Por meio de referências intergenéricas, linguagens variadas, estrutura muitas vezes pouco linear, mais sugestivas do que explícitas, o texto audiovisual vai evocando e significando corpos, atitudes, ideologias. Os vídeosclipes são muito ricos neste sentido.

Neste blog, postei uma reflexão sobre o videoclipe de Beyoncé, Run The World (girls), material repleto de simbologias e imagens que sugerem o confronto de gênero e de sexo: de um lado as mulheres e do outro os homens, cada um marcando o seu território dentro de uma prática social que emana poder, disputa, projeção: o show business ou a indústria do entretenimento. Acontece que para as feministas da segunda onda, aquelas que foram formadas pelo pensamento da modernidade, não é fácil compreender o movimento das jovens envolvidas no show business, corporificando representações que parecem contrariar as bandeiras feministas. Nestes espaços, elas interagem com diferentes significações em torno da representação semiótico-performativa do que se entende como mulher nos discursos das letras, na musicalidade, na coreografia e na encenação. Essas jovens se tornam ícones de uma geração: Beyoncé, Pink, Amy Winehouse, Adele, Rhianna, Shakira, entre outras. Que mulher está sendo apresentada para o público consumir para ele se identificar? Quem é este público consumidor? Quais os signos em rotação, para citar Eco, que explodem em um videoclipe com menos de 5 minutos ou um megashow de 2 horas com palcos gigantescos, músicos especializados, onde a cantora canta, dança, pula, faz acrobacias, em meio a profusões de cores, ritmos e palavras? Vale destacar que a experiência visual de quem assiste a estes shows ao vivo é diferente de quem usa o DVD e assiste em casa. Neste aspecto, as câmeras tem um grande papel.

O videoclipe de Beyoncé mostra que as mulheres competem arduamente, com firmeza e determinação na indústria de entretenimento com os homens, por isso a imagem no videoclipe de territórios demarcados. Para isso, elas lançarão mão de estratégias diversas, incluindo usar o fetiche para regular o fetichista. O corpo é extremamente espetacularizado, exageradamente adornado, para mostrar claramente que elas utilizarão, com a mesma intensidade com que são reguladas, o feitiço contra o feiticeiro.

Outra representante da música pop, com influências do rock, é P!nk ou Pink, com proposta de alcançar também o público jovem com performances sofisticadas, sensuais, altamente estilizada.


A música U + Ur Hand, de Pink, uma das mais executadas, parece trazer uma história baseada em fatos reais. A compositora e cantora resolveu retextualizar, como resposta a um fato ocorrido com ela mesma, o tema do assédio, o que certamente contribui para a adesão de várias fãs que já se viram na mesma situação: trata-se de uma jovem assediada, mas que rejeita a investida, por não querer servir de diversão para o rapaz, o que fica explícito no título da música U + Ur Hand (you and your hand), uma expressão idiomática para masturbação. A letra sugere ainda que o assédio público pode ser uma simples disputa entre machos, uma aposta, na qual a mulher participa como objeto de um rito machista:

“In the corner with your boys you bet up five bucks
To get at the girl that just walked in but she thinks you suck
We didn't get all dressed up just for you to see.”

“No canto com seus amigos, você apostou 5 dólares
Para ficar com a garota que acabou de entrar, mas ela te acha um idiota
Nós não nos produzimos só pra você ver.”
Em um videoclipe a música acompanha uma sequência de imagens e temos que levá-la em consideração. Nesta canção, a cantora Pink se transforma em várias mulheres, são seis ao todo, chamada Lady Delish ou Dona Delícia (delish é uma expressão idiomática para delicious). A experiência de Lady Delish ocorre tanto no livro folheado, no plano da ficção, quanto na realidade quando a leitora passa pela mesma situação, rompendo com a barreira entre ficção e realidade para mostrar a tênue linha que separa estas esferas. Como as bonecas russas, babooshkas, dentro do videoclipe existe um outro texto cujas letras escapam do livro e se diluem, sinalizando o processo de interação entre leitura e texto:

Primeiro capítulo: a garagem de Pancho
Lady Delish adorava carros. Carros foram sempre mais confiáveis do que os homens que tratavam deles.
Segundo capítulo: O Buraco do Inferno
Após o trabalho, seu treinador, Carlos, queria mantê-la [treinando]. Ela pulou e socou até sua raiva ter se esgotado. Com longas horas de treinamento, sua vida fascinante tinha se esvaído.
Terceiro capítulo: Sopro do vento
Lady Delish, em seguida, migrou para o boteco ao escopo da vida selvagem. Muito músculo e pouco cérebro fez esses caras muito estropiados.
Quarto capítulo: Jardim do chá
Lady Delish procurou por um homem que pudesse compartilhar seus interesses.
* Lendo um livro chamado "Um sugestivo inquérito no mistério hermético" *
Pelo menos, um livro com substância não era difícil ...
Quinto capítulo: O Mundo do Governador
Numa elegante noite, Laady Delish misturou-se com a elite. Sua percepção deles logo foi maculada.
Sexto capítulo: Em casa sozinha novamente
Ela olhou, ela tolerou, ela conciliou, mas Lady Delish ainda estava sozinha em casa. O que uma Lady vai fazer? Ela decide contactar uma antiga paixão com um presente (na caixa o endereço cujo destinatário é "Papai Dick". Ela sela a embalagem com um beijo deixando a marca do batom)

É uma canção que agrada jovens da área urbana que passam por experiência como a dificuldade de estarem no espaço público sem serem assediadas ou em um espaço historicamente masculino sem serem molestadas e o quanto reagir a tudo isso faz com que as jovens se tornem solitárias, sem uma boa companhia, porque quase todos os rapazes são tolos. Esta solidão parece ser uma realidade para as mulheres que já não aceitam qualquer pessoa ao seu lado e que têm a sensação de que estão fora do lugar. Porém a solidão, embora não quista, já não as apavora tanto, é uma opção. Elas preferem ficar sozinhas do que acompanhadas por um homem que não as respeitam e as tratam como um objeto de conquista, resultado de uma aposta, de uma competição. Neste aspecto, é que reconheço na música ecos de uma mensagem feminista, já que a mulher rejeita submeter-se ao código, embora faça uso dele, e prefira estar só. Esta ambiguidade embaraçosa está na pauta de discussão dos estudos pós-feministas, o que me faz lembrar de um artigo de Angela McRobbie no qual ela cita Judith Butler e o conceito de 'duplo enredamento':
"Isto implica a co-existência de valores neo-conservadores em relação a gênero, sexualidade e vida familiar (por exemplo, o suporte de George Bush à campanha para encorajar a castidade entre o público jovem e, em março de 2004, declarar que a civilização depende do casamento tradicional) com processos de liberação em relação à escolha e à diversidade nas relações domésticas, sexuais e de parentesco (por exemplo, casais homossexuais agora estão aptos a adotar, criar ou ter seus próprios filhos e, ao menos no Reino Unido, tendo plenos direitos a ‘parcerias civis’). (McRobbie, 2066, 59-69)

Este início de século aparece muito violento para as mulheres que precisam aprender a conviver com a solidão para não sucumbirem a uma subserviência de gênero que só as desqualificam. Se é complexificação ou backlash, penso que seja uma complexificação em razão do backlash, uma tentativa de golpear o processo de emancipação, mas que as mulheres têm resistido, negociando muitas vezes com os elementos do próprio código. Esta estratégia gera ambiguidade, contradições, que rompem com um pensamento linear, de causa e efeito, que deixa nas bordas outros nexos. O resultado disso ainda não dá para visualizar, pelo menos não vejo, porque trata-se da recepção de uma geração que cresce imersa em uma bolha de apelos mercadológicos, ideológicos, espetaculares.

Estou ainda pensando sobre tudo isso.


Referência:
In: CURRAN, James; MORLEY, David. Media and Cultural Theory. London/New York: Routlege, 2006, p. 59-69. Tradução: Márcia Rejane Messa.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Discurso, Cerveja, Gênero e Raça

A representação da mulher negra como objeto sexual é secular e é atualizado nesta peça publicitária com várias referências simbólicas: o vermelho (paixão), a rosa (amor), o sapato de salto fino e alto (sedução, fetiche), o vestido (sedução, erotização), meia de liga (sedução, fetiche). Porém, tudo isso quando associado ao desenho do corpo da mulher no enquadramento da foto, de costas para o(a) observador(a), com as pernas abertas (pela posição da perna esquerda), sentada inclinadamente na mesa, olhando de perfil, acentua-se a carga erótica. 

Se atentarmos bem, a literatura sempre atrelou à mulata o eroticismo, basta ver a descrição de Rita Baiana, em O Cortiço, e de Gabriela, em Garbiela Cravo e Canela. A questão é quando essa imagem associa-se ao mercantilismo, orientando o consumidor a olhar uma experiência humana com a lógica do comércio, numa previsível relação de coisificação, neste caso a sexualidade da mulher negra

Tudo isso ganha complexidade em uma cultura corporal como a baiana que muitas vezes não percebe as nuances do discurso e acaba se identificando com uma imagem ideologicamente montada para que haja uma identificação, porém para regulá-la.

A questão é: de onde parte o discurso? Como as mulheres negras se vêem nessa representação?

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

MULHER AINDA GANHA MENOS


O vídeo mostra que a luta das mulheres não é apenas por sua inserção nos espaços de poder, mas manterem-se nele com dignidade, pois exercer o mesmo trabalho que os homens e ganhar menos é, no mínimo, indecoroso. Para ampliar as riquezas, investe-se no discurso de equiparação de gênero, aparente, já que não há garantia, de fato, que as mulheres possam usufruir do seu salário. Mas para onde vai essa mais-valia? 

Neste vídeo, que parece óbvio, podemos verificar que as lutas feministas permanecem, mas as estratégias de enfrentamento devem ser outras porque o nível de sofisticação, não da exploração, mas de escamoteá-la, tornou-se extremamente confusa, mesclando discursos conservadores com emancipatórios.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA DE GÊNERO E A LEI “ANTIBAIXARIA” NA BAHIA[1]

Cecilia M. B. Sardenberg
OBSERVE- Observatório de Monitoramento da Lei Maria da Penha
NEIM/UFBA


A polêmica atual instaurada em torno da constitucionalidade do Projeto de Lei no. 19.137/2011 (apelidada de lei “Antibaixaria”) da Deputada Estadual Luiza Maia da Bahia, que dispõe sobre a não contratação, com verbas públicas, de artistas que degradem a imagem das mulheres, me faz voltar pouco mais de vinte anos no tempo, mais precisamente aos fins dos anos 1980, quando da elaboração da Constituição do Estado da Bahia. Naquela época, nós, feministas atuantes no Fórum de Mulheres de Salvador, nos reunimos várias vezes para discutir a inclusão de um capítulo específico sobre os direitos das mulheres na nova carta magna baiana.

Inspiradas pelos avanços conquistados por nós na Constituição Federal de 1988 com a mobilização de mulheres, em todo país, e, em especial, pelo chamado “Lobby do Batom” – o lobby exercido diretamente junto aos deputados e deputadas constituintes -- ousamos ir além formulando uma proposta ainda mais progressista para a Bahia. Dentre outras questões de interesse das mulheres, incluímos nessa proposta disposições sobre a prevenção da violência contra as mulheres e a obrigatoriedade de criação de delegacias especiais de atendimento às vítimas em cidades com mais de 50.000 habitantes, a proibição da exigência por parte de empregadores de comprovantes de esterilização das trabalhadoras, a criação de comissões especiais para monitorar as pesquisas no campo da reprodução humana, e – de interesse especial para o momento -- o impedimento da veiculação de mensagens que aviltassem a imagem das mulheres.

Nossa ousadia se revelava, tanto no teor dessas propostas, quanto no fato de que, para defendê-las na Constituinte Estadual, contávamos apenas com a Deputada Amabília Almeida, a única mulher então exercendo mandato naquela casa. Mas, nesse ponto, não havia o que temer. Com muita diplomacia, a nossa querida Amabília, companheira de muitas batalhas, conquistou mais aquela, logrando transformar nossas propostas em princípios e leis sagradas na Constituição Estadual de 1989. Foi assim que a Bahia passou a ter uma das constituições mais avançadas do país no tocante aos direitos das mulheres.

Frente à citada polêmica em torno do Projeto de Lei da Deputada Luíza Maia, destaco aqui, em especial, o Art. 282 da Constituição Estadual, particularmente o inciso I, em que se afirma que o Estado da Bahia “garantirá, perante a sociedade, a imagem social da mulher como mãe, trabalhadora e cidadã em igualdade de condições com o homem, objetivando”, entre outras questões, “impedir a veiculação de mensagens que atentem contra a dignidade da mulher, reforçando a discriminação sexual ou racial.” Nesse artigo reside, sem sombra de dúvida, a constitucionalidade do Projeto de Lei “antibaixaria”. Aliás, ele vem com mais de vinte anos de atraso para regulamentar o que reza nossa Constituição desde 1989, como de resto ainda acontece com a maior parte de nossas conquistas nessa carta, que ainda aguarda regulamentação.

Em relação ao Art. 282, posso testemunhar que, já na década de 1980, ao propormos sua inclusão na Constituição da Bahia, tínhamos em mente, não apenas o combate à constante veiculação de anúncios em jornais, outdoors e na mídia televisiva, que em muito desmerecem, objetificam e assaltam moralmente a nós, mulheres, como também à cantigas que exemplificam, em suas letras, o que se classifica como violência simbólica de gênero – tal qual em “...nega do cabelo duro... pega ela aí, pega ela aí prá passar batom ... na boca e na bochecha”, música sexista e racista, popular na época!

Na verdade, uma de nossas maiores preocupações era (e ainda é) o enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres, particularmente a violência simbólica de gênero, que se infiltra por todo a nossa cultura, legitimando os outros tipos de violência. Por “violência de gênero”, refiro-me a toda e qualquer forma de agressão ou constrangimento físico, moral, psicológico, emocional, institucional, cultural ou patrimonial, que tenha por base a organização social dos sexos e que seja impetrada contra determinados indivíduos, explícita ou implicitamente, devido à sua condição de sexo ou orientação sexual. Isso implica dizer que tanto homens quanto mulheres, independente de sua preferência sexual, podem ser alvos da violência de gênero. Contudo, em virtude da ordem de gênero patriarcal, ‘machista’, dominante em nossa sociedade, são, porém, as mulheres e, em menor número, os homossexuais, que se vêem mais comumente na situação de objetos/vítimas desse tipo de violência.

Quando falamos de violência de gênero contra mulheres, pensamos mais de imediato em atos de violência física – agressões, espancamentos, estupros, assassinatos -- perpetrados, geralmente, por seus companheiros, e que acabam estampados em manchetes nas páginas policiais jornalísticas. Essa é, sem dúvida, a mais chocante e revoltante forma de violência de gênero, posto que atenta diretamente contra a vida de uma pessoa, não sendo raros os casos em que ela passa impune.

A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, trouxe um grande avanço no enfrentamento à violência de gênero contra mulheres, vez que, além de criminalizar esse tipo de violência - que passava invisível na esfera doméstica e familiar - também reconheceu outras formas de violência, tais como a violência sexual, moral, psicológica, e patrimonial, como igualmente puníveis por lei. Cabe lembrar, porém, que tanto as agressões físicas, quanto essas outras formas de violência e sua impunidade, são legitimadas pela ordem social de gênero que caracteriza a nossa sociedade, a ordem de gênero patriarcal, ordem inscrita e perpetrada nas nossas instituições sociais, nos nossos sistemas de crenças e valores e no nosso universo simbólico, com ressonância nas relações interpessoais e na construção das nossas identidades e subjetividades enquanto homens e mulheres.

De fato, a violência de gênero se expressa com força nas nossas instituições sociais (falamos então de violência institucional de gênero) e, de maneira mais sutil, embora não menos constrangedora, na nossa vida cultural, nos atacando (ou mesmo nos bombardeando) por todos os lados, sem que tenhamos plena consciência disso. Diariamente, ouvimos piadinhas, canções, poemas, ou vemo-nos diante de contos, novelas, comerciais, anúncios, ou mesmo livros didáticos (ditos científicos!), de toda uma produção cultural que dissemina imagens e representações degradantes, ou que, de uma forma ou de outra, nos diminuem enquanto mulheres. Essas imagens acabam sendo interiorizadas por nós (até mesmo as feministas “de carteirinha”), muitas vezes sem que nos demos conta disso. Elas contribuem sobremaneira na construção de nossas identidades/subjetividades, diminuindo, inclusive, nossa auto-estima.

Isso tudo se constitui no que chamamos de violência simbólica de gênero, uma forma de violência que é, indubitavelmente, uma das violências de gênero mais difíceis de detectarmos, analisarmos e, por isso mesmo, combatermos. Talvez até mesmo porque o ‘bombardeio’ é tanto, de todos os lados, que acabamos ficando anestesiadas, inertes, impassíveis, incapazes de percebê-la, bem como o seu poder destruidor. Na verdade, o mundo simbólico aparece como um grande quebra-cabeças a ser decifrado, difícil de abordar, vez que, como no caso das metáforas, ele se processa através de um encadeamento e superposição de símbolos e seus significados, ou de associações, transposições, oposições e deslocamentos. Destrinchar esses processos é muitas vezes adentrar num labirinto, correndo atrás de um novelo que torce, retorce, rola, enrola e dá nós, difíceis de serem desatados. Por isso mesmo, a violência simbólica é sutil, mascarada, disfarçada e, assim, bastante eficaz.

Certamente, não é esse o caso da “nova poesia baiana”, tal qual expressa nas letras do nosso cancioneiro popular contemporâneo. Ao contrário, não há nada de dissimulado nessas cantigas. Nelas, a imagem da mulher, de todas nós mulheres, é explicitamente aviltada, rebaixada, causando constrangimento naquelas que se prezam. Senão vejamos:

Em “Me Dá a Patinha”, por exemplo, a mulher é abertamente chamada de “cadela”, porque está supostamente disponível para todos:

O João já pegou
Manoel, pegou também
O Mateus engravidou,
tá esperando o seu nenem
Carlinhos, pegou de quatro
Marquinhos fez frango assado
José sem camisinha
Pego uma coceirinha
O nome del'é Marcela
Eu vou te dizer quem é ela
Eu disse
Ela, ela, ela é uma cadela
Ela,ela mais ela é prima de Isabela
Joga a patinha pra cima
One,Two,Three
Me dá, me dá patinha
Me dá sua cachorrinha

(sic)

Igualmente desrespeitosa em relação às mulheres é a cantiga “Ela é Dog”, que segue a mesma linha (... estilo cachorra, ela fica de quatro, ela é dog, dog, dog, ....parede de costas), assim como “Rala a Tcheca no Chão” (rala a tcheca no chão, a tcheca no chão, a tcheca no chão, mamãe), sem esquecer de “Na Boquinha da Garrafa”, onde se afirma que ...no samba ela gosta do rala, rala, me trocou pela garrafa, não agüentou e foi ralar... vai ralando na boquinha da garrafa, sobe e desce na boquinha da garrafa,

É na boca da garrafa...

Ressalto que não se trata somente do gosto deveras questionável desses versos, mas, sobretudo, da incitação e legitimação da violência física contra mulheres que eles expressam. Como nos versos, ...se o homem é chiclete, mulher é que nem Lata, um chuta, o outro cata...”, ou então, na já combatida “Tapinha de Amor”:

Não era preciso chorar desse jeito
Menina bonita anjo encantador
Aquele tapinha que dei no seu rosto
Não foi por maldade foi prova de amor
A nossa briguinha foi de brincadeira
...
Não seja assim tolinha eu sei que tapinha de amor não dói

(sic)

Não custa lembrar que foram mais de 30 anos de lutas dos movimentos feministas no país no combate à violência de gênero contra mulheres, uma luta que logrou trazer a elaboração e aprovação da Lei Maria da Penha em agosto de 2006. Essa lei cria mecanismos para “coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, assim destacando, em seus Artigos 2º e 3º:

Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

De acordo com a Lei Maria da Penha, uma Lei Federal, e, como vimos, também de acordo com a Constituição da Bahia, é dever do Estado combater a violência, assegurando às mulheres o direito ao respeito e dignidade enquanto seres humanos. O Projeto de Lei apresentado pela Dep. Luiza Maia vem regulamentar a intervenção do Estado nesse tocante, dispondo sobre “a proibição do uso de recursos públicos para a contratação de artistas que, em suas músicas, danças, ou coreografias desvalorizem, incentivem à violência ou exponham as mulheres a situações de constrangimento.”

Ressalte-se que não se trata aqui de cercear o direito de “livre expressão artística” de ninguém, já devidamente consagrada na Constituição Federal. Não se trata de fazer censura. Longe disso! Mas é necessário que o Estado não seja conivente com mensagens que façam a apologia da violência de gênero contra mulheres, utilizando verbas públicas – o dinheiro nosso e do nosso povo – para aviltar a nossa imagem! Fazê-lo, ou seja, contratar com dinheiro público quem assim procede é legitimar a violência de gênero contra as mulheres. É, pois, atentar contra a nossa carta magna, cabendo, pois, de nossa parte, a impetração de ações cíveis junto ao Ministério Público.
Espera-se, outrossim, que o Projeto de Lei em questão também tenha um papel pedagógico. Que ele venha a conscientizar mulheres e homens desta Bahia (e por que não, do nosso Brasil) da necessidade de combate à violência contra mulheres, hoje expressa, de forma tão vulgar e grosseira, no nosso cancioneiro popular. Creio que é isso que minhas combativas companheiras do Fórum de Mulheres de Salvador, que comigo lutaram pelo avanço das nossas conquistas nos idos dos anos 1980, tinham também em mente quando sonhávamos com uma Bahia sem sexismo, sem racismo, e sem violência!
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[1] Uma primeira versão deste ensaio foi apresentada como contribuição aos debates sobre o Projeto de Lei No.19.137/2011, na Comissão da Mulher da Assembléia Legislativa da Bahia, em 24/08/2011.

O artigo acima foi autorizado por e-mail pela autora para fins de divulgação neste blog.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Mandem no mundo (garotas) - Beyoncé

Run the World (girls)



A letra é composta por Beyoncé e traz também a participação de Major Lazer (Diplo e Switch), DJs responsáveis pela música. Tive conhecimento da composição através de uma aluna, após uma discussão sobre relações de gênero, condição da mulher, representações da mulher na mídia. Ao final da aula, ela me enviou por e-mail a letra traduzida e o link do videoclipe. Durante a sua intervenção, ela chegou a considerar que a produção artística tinha um olhar  feminista, mas que, ao perceber que a cantora na performance "bate continência" para os homens, isso a teria feito mudar de opinião, pelo menos naquele momento.

Lembro-me que havia lhe dito que o gesto de "bater continência" tinha uma conotação de poder. A discussão prosseguiu e entrou pela aula seguinte. A questão é que na cultura militar, de onde o gesto tornou-se difundido, quem primeiro saúda é quem possui nível hierárquico inferior, o que traduziria na música uma inferioridade feminina. Talvez isso tenha trazido uma ambiguidade à composição.

O videoclipe é um texto audiovisual que eclodiu nos anos 80 em uma linguagem mais voltada para a televisão. A sua estética veloz e de imagens fragmentadas coaduna com a narrativa condensada e sugestiva, daí a dificuldade de encerrar uma interpretação fechada, provocando, em geral, diferentes possibilidades interpretativas, uma das riquezas, a meu ver, deste gênero. Seu propósito consiste em divulgar uma música e, obviamente, o artista, e é exibido em televisão, tornando-se um meio poderosos de massificação musical e de projeção de cantores e cantoras.

Em relação a Beyoncé, sabe-se que o seu grupo é formado apenas por mulheres e o videoclipe reforça essa escolha. A letra projeta a mulher em um mundo em que a sua afirmação de gênero se faz mediante a um discurso contundente, expressivamente firme, (em palavras, gestos e passos de dança) que busca por uma unidade das mulheres. O discurso de “quem manda” sugere uma disputa por espaço, de afirmação, dentro de uma sociedade de consumo em que o poder está relacionado ao que se pode comprar e pagar. As ideias de poder envolvem a emancipação em relação aos homens, através da autonomia financeira, do controle sobre a sua sexualidade, muito visível no vídeoclipe através do vestuário com base em tecidos diáfanos, meias de liga e lingerie, do acesso ao conhecimento (Deixe-me fazer um brinde/ Para as universitárias graduadas), e no direito de ter uma profissão e à maternidade (cuidar das crianças e dos negócios).


O videoclipe é visualmente rico, composto em um ambiente underground, no qual dois grupos formados de um lado por mulheres e de outro por homens se enfrentam, nos lembrando dos videoclipes de Michael Jackson como Beat it, por exemplo. Os homens aparecem munidos de equipamentos militares (cassetete, escudo, medalhas de condecoração, farda, coturno, capacete), mas o outro (quem sabe o mesmo) aparece com leves semelhanças, porém sem os capacetes, os escudos. Esta ambiguidade pode sugerir uma linha tênue entre os dois mundos, até porque, se tomarmos a continência como exemplo, veremos que grupos não apenas militares a utilizam, mas os paramilitares ou, em suma, qualquer organização. O uso da continência está relacionado, assim, à identificação de membros do mesmo grupo. Se a saudação tem a ver com a identificação de pessoas que se reúnem para um mesmo propósito, de defender o território, neste sentido, o grupo de mulheres do videoclipe pode estar se colocando como um grupo organizado disposto a defender o “estado” das mulheres, mas que ao se dirigir para o outro, homens, reconhece-os como parte deste estado, no entanto essa aproximação não é sem tensão haja vista as referências no video ao carceramento e ao sofrimento das mulheres, evocados na modelo que está dentro de uma jaula e na outra que está amarrada em posição de crucufixão. A liberdade,  a incontinência do prazer, expressa nas roupas das dançarinas, podem sugerir uma crítica ao olhar fetichizado sobre a mulher-objeto, e que elas utilizam agora como forma de empoderar-se. Mas ainda fica vaga a ideia de como se dá esse empoderamento, na medida em que ao se colocar nessa condição na vida real, elas são violentadas ou mortas, já que passam a controlar o desejo masculino.

Existem recursos simbólicos que envolvem cores, gestos, mas também animais, a exemplo do cavalo, hiena, búfalo, leão, espécies de origem africana e americana, podendo ser entendida como uma referência a cultura afro-americana.  Os animais estão associados ao poder, à altivez, à força.

Segue abaixo a letra da música traduzida

Garotas, a gente manda nesta m*.


Garotas, a gente manda nesta m*!
Garotas, a gente manda nesta m*!
Garotas, a gente manda nesta m*!
Garotas!
Quem manda no mundo?
Garotas!
Quem manda no mundo?
Garotas!
Quem manda no mundo?
Garotas!
Quem manda no mundo?
Garotas!


Quem manda nesta merda?
Garotas!
Quem manda nesta merda?
Garotas!
Quem manda nesta merda?
Garotas!
Quem manda nesta merda?
Garotas!


Alguns daqueles homens pensam que detonam isso
Como nós
Mas não, eles não detonam
Vão conferir, cheguem em seus pescoços
Nos desrespeitar?
Não, eles não irão

Garoto, nem tente tocar nisso
Garoto, essa batida é louca
Foi assim que eles me criaram
Em Houston, Texas querido

Essa vai para todas as minhas garotas
Que estão no clube curtindo a última novidade
Que compram para si mesmas
E ganham mais dinheiro depois


Eu acho que preciso de uma folga
Nenhuma desses manos podem me ocultar
Eu sou tão boa nisso
Vou te lembrar, eu conheço bem isso


Garoto, estou apenas brincando
Venha aqui, querido
Espero que você ainda goste de mim
F*, me pague


Minha persuasão
Pode construir uma nação
Poder infinito
Com o nosso amor, a gente pode devorar


Você vai fazer qualquer coisa para mim

Refrão

Está quente aqui em cima DJ
Não tenha medo de tocar essa, tocar essa de volta
Estou falando em nome das garotas
Que já dominaram o mundo

Deixe-me fazer um brinde
Para as universitárias graduadas

Amigo, uma rodada e
Eu te deixo saber que horas são, veja
Você não pode me deter
Eu me arrebento o dia todo, melhor ir pegar meu cheque


Essa vai para todas as mulheres
Que estão conseguindo
Alcançando seus objetivos
Para todos os homens que respeitam
O que eu faço
Por favor, aceite meu brilho


Garoto você sabe que adora
Como somos espertas o bastante para ganhar milhões
Forte o suficiente para lidar com as crianças
E depois voltar aos negócios

Veja, é melhor não brincar comigo
Oh, venha aqui querido
Espero que você ainda goste de mim
F*, me pague


Minha persuasão
Pode construir uma nação
Poder infinito
A gente pode devorar o amor

Você vai fazer qualquer coisa para mim

Refrão

Podemos ver o videoclipe como um encenação do que seria aparentemente uma guerra dos sexos, desta vez protagonizados por mulheres negras urbanas que performatizam as disputas pelos espaços de poder entre mulheres e homens. No final do videoclipe, quando ocorre a continência, dá a entender que as mulheres formam um grupo tão organizado quando o dos homens e que, pela altivez, representada pelo corpo esguio e cabeça suspensa, a ideia é fazer com que eles as respeitem também.