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sábado, outubro 19, 2019

EM TERRA DE SHAKA ZULU

Até agora posso gabar-me de conhecer Windhoek,  capital namibiana, cidade construída e a ser ampliada sobre colinas que, em vez de acabarem com o escasso verde natural, associa o betão crescente à arborização.

Joanesburgo e Pretória, cidades sul-africanas, fazem-me recordar Windhoek. Ruas largas, trânsito ordenado, não muito intenso, e um "sol" quente, seco e ofuscante a exigir filtros.

Naqueles tempos da minha meninice, na OPA, seria impensável cá vir parar, a contar pelas elevadíssimas doses de lavagem cerebral embutida em pesadas e medonhas expressões como:
- Regime segregacionista da Africa do sul; Regime de Pretória; Sul-africanos um dia pagarão; e outras loisas.

Oh! quanto eles evoluíram e continuam a evoluir comparados a nós que nos fizemos ficar pelo "sempre a subir, maior de África, povo especial, os melhores, e outros dislates!

Cidade calma, não com a agitação de Cape Town, nem com as "arruaças" de Joanesburgo, aqui estou eu em Pretória!
E, a propósito do lendário Shaka, brinquei que "eu era Zulu de Angola, descendente de Nkosi ya ma nkosi". A primeira pergunta que as senhoras da recepção me fizeram foi.
- How many wifes do you have (quantas mulheres tens)?
- Only one (apenas uma). - Respondi  no meu pobre inglês.
- Zulu must have more than three wifes (Zulu tem de ter mais do que três esposas)!
- Hum?!
Yes (sim)! - Retorquiram, acrescentando:
- If you are really zulu you must marry other wifes (se és realmente zulu, deves casar com outras mulheres).
As manas, bem dispostas num periódo de pouca agitação no hotel, não se ficaram por aí nas suas recomendações.
- If your first wife is from Angola, you must have another from Pretória and the 3rd from anywhere, but only zulu woman (se a tua primeira é  angolana, deves ter uma de Pretória e a terceira de um outro lugar, mas devendo ser mulher zulu).
Sem mais tempo, acalentei-as apenas com simples yes e parti reflectindo no que daria em Angola, se fôssemos maioritariamente zulu?

Pretória, 18 de Setembro 2019

terça-feira, outubro 15, 2019

A FÁBRICA DE NUMERAÇÃO DE CAMISOLAS

Em vida, o nome dele era Geraldo Domingos. Os estudantes do ITEL, aqueles aflitos com a cadeira de Geometria Descritiva de que ele era "barra", tratavam-no por o GD. No bairro, porém, umas tias, por dificuldades de articulação oral, tratavam-no por "Gerardo". Para mim eram mesmo "Geralgo". Explico porquê. 
Antes esmiúço a relação de parentesco entre o Geralgo e eu. O meu tio Ferreira Nganga, em cuja casa eu vivia, era esposo da tia dele Henriqueta Domingos. Por isso, tratávamo-nos por primos e ponto final (as afinidades ficavam omissas).

Conhecemo-nos em 1984. Eu vivia no bairro Kaputu e ele na Comissão do Rangel. O Gêdê era irrequieto e sempre a magicar alguma coisa "anormal" para os miúdos de nossa idade e possibilidades. Quando preparássemos jogadores para "boquique" (peças feitas com cápsulas de cerveja ou mecanismos pressorizadores de insecticida, servindo cada uma de jogador), era ele quem numerava e pintava as unidades a que chamávamos por camisolas. Eu era/sou do Petro e talvez ele tenha sido também adepto dessa equipa ou de uma outra que não rivalizava directamente com a minha. 
Com o andar do tempo, as nossas brincadeiras passaram a ser outras: carros de latas de que ele era exímio (re)produtor. O Geraldo era capaz de produzir uma réplica (miniatura) de Volkswagen ou Renault 4 com todas as suas curvaturas e apetrechos exteriores. Quem não  tivesse carro "duzido" pelo Geralgo podia ter "um brinquedo qualquer", mas carros (de lata) mesmo, só os feitos por ele. E não cobrava caro nem demorava muito tempo para executar a empreitada, apesar da sua grande aplicação na escola e na ajuda que dávamos aos pais nos trabalhos de casa como ir às compras em tudo que fosse loja, deposito de pão e até  à Praça  das Corridas que ficava à distância de um assobio. Como compensação, o Geraldo pedia apenas o dobro do material para que ele também ficasse com um carro-de-lata que vendia ou trocava por algo que maior falta lhe fizesse.

Quando chegou a moda de as equipas de futebol, fossem do bairro ou ligadas a uma empresa qualquer, usarem camisolas numeradas, o Geraldo foi dos primeiros, senão o  único na Comissão do Rangel, a "montar" uma "Fábrica de numeração de camisolas".
- Fábrica, Geralgo, não é um nome muito pesado? - Indaguei certa vez.
-Sim, fábrica mesmo.  Assim, as equipas de caçulinhas da Cuca,  da Combal, da  Refrinor, da Bolama, da Panga-Panga, etc. vêm aqui numerar o seu equipamento. O importante é numerar...

O Geraldo, que era bom em desenho, elaborava as placas numéricas em cartolina que sobrepunha, uma a uma, às peças a numerar. Depois, passava a tinta desejada (branca ou preta) e expunha os têxteis ao sol para secar. Parece simples, mas pensado e feito aos dez/doze anos parecia obra de gênio. 
E nos inventos, o Gêdê não se ficou por aqui. Já jovem, talvez a terminar o ITEL (instituto Médio de telecomunicações de que foi aluno da primeira safra), apercebendo-se que a cerveja a copo tinha ganho grande saída, em substituição da decadente kis(s)ara (kimbombo), transformou o seu quintal em bar. Tornou-se a casa mais frequentada da rua 23.

Quem me dera ter até hoje o Geralgo! Perdemo-lo cedo (entre finais dos anos 90 ou princípio do Sec. XX). Estava a entrar para a plenitude da mocidade e, se calhar, com muitas invenções por apresentar. 

Não me restam dúvidas que tão inteligente e inventivo quanto ele era, com o curso de telecomunicações que estava a terminar, teríamos hoje uma ou muitas invenções tecnológicas com a patente de Geraldo António Domingos!

quinta-feira, outubro 10, 2019

A CAMINHO DO CONSTRUCTO

Mangodinho e Man-Barras, amigos de há muito tempo, caminhavam em direcção ao Partido onde participariam de um encontro nacional. Falavam sobre o estado da nação e os desafios para melhorar o que desandou deste o "tunda mindele" aos dias de seus netos. Foi ao passar o prédio dos Assuntos Sociais que Mangodinho desatou uma conversa que há muito incomodavam a sua garganta.
- Oh, compadre Barras, lembras-te, com certeza, tu que és daqui da Ngimbi, naquele tempo, esses prédios eram limpos, passeios sem buracos e na cidade só viviam brancos e poucos pretos civilizados...
- Pois é, compadre. Sabes porque isso ficou assim ou não sabes?- Questionou Barras.
- Sei, pois. Apesar de ter mbora nascido nos mabululu sei um kabucado de Luanda. Víamos no cinema e nos rolos embutidos em binóculos. Bastou os mindele irem embora para militarizar até os pretos que estavam civilizados. Agora está um pouco custoso endireitar isso. Eu até só estou já a pensar nos nossos netos porque a nossa leva, tirado as ideias que estamos a concertar agora, me parece já não ter tempo nem fôlego para a empreitada.
Man-Barras ficou a ouvir na defensiva, ele que é um positivista convicto.
- Compadre, Godinho, encontras aqui um bom tema para reflectirmos no partido. Mas não fica tipo atiraste a toalha ao tapete. Não há nada tão mau que não possa melhorar. Pensa só na Europa que ficou duas vezes partida em vinte e cinco anos. cada um, independentemente da idade, da formação, do cargo e das possibilidades tem de ter ideias do tipo se eu for governante o quê que vou fazer para mudar o que não está bem no meu Sector. Tem de ter uma equipa imaginária para lhe rodearem, se subir, e fazerem boas obras. É preciso reconstruir.
- Sim, compadre Barras. É preciso reconstruir, mas a começar mesmo pelo partido. Já viste aonde é que estamos a ir?
- Mas oh compadre? Estamos a caminho do partido. É ou não é?
- Sim. Disseste bem. Partido. O que está partido não é o destruído que precisa ser reconstruído?. Eu a partir de hoje e com o optimismo que acabaste de me pregar com ele já não direi mais partido.
- Como assim. Então nós não somos membros do partido e estamos a caminho do partido para reunião nacional?
- Pois é. Aí está o problema. Fora queremos reconstruir e construir. Dentro só falámos partido aqui, partido acolá e etecetera? Por que não reapelidar de Reconstruído, Construindo ou Constructo? Eu agora já não pronunciarei o nome partido!
- Ai é? Isso são ideias reacionárias, oh compadre, e muita gente pode não te ver com bons olhos...
- Então tudo pode mudar de nome menos o partido não é? Se assim for, vamos continuar a viver no partido. Para mudarmos o estado da nação que você mesmo acha que não está bom, temos de começar pela reforma interna. Para mim, quem doravante me perguntar aonde vou e onde milito direi sempre que é no CONSTRUCTO. Temos de construir um novo pensamento, como o compadre bem elucidou que é preciso civilizar os militarizados e reconstruir o que ficou partido. É ou não é, compadre?
Man-Barras, vaidoso como ninguém, endireitou o boné e estacionou o pé em uma pedra para remover a poeira no sapato. Mangodinho aproveitou comprar duas garrafas de água e lá foram, sol ardente sobre eles, a caminho do Constructo.


Publicado no Nova Gazeta de 16.05.19 

domingo, outubro 06, 2019

GOSTILIDADES


- Epá! Sabes uma coisa? - Provocou Zeca ao amigo que se tinha baixado para manter o brilho dos sapatos.

 

- Não, Zeca. O que se passa?
- Estás a ver, ontem, na boda, nê? Não é que uma gaja estava a me morrer?
- Mas a te morrer, como assim? Quem foi que te disse? - Era a vez de Venâncio, expectante, a buscar aprofundar a conversa.
- Sim, Man Venas. Descobri, depois de um "podemos dançar"?
- Vindo dela ou de tua parte? - Indagou novamente Venâncio como quem procura a bola escondida num palheiro.
- Epá, dela. Da parte da mboa. Até levei um susto. O mambo era dum volume que jamais a imaginaria hospedada no meu monolugar.
- E foram dançar? Conta mais então, pá.
- Epá, estás a ver, né? Real e geralmente é nessas ocasiões em que "o que lhe morrem e a que lhe morre" se dão encontro corporal, sendo medidor das tendências a forma como ela entrega a carne ao assa+dor.
- Mas…, e então? Ela te abriu o jogo ou tu, te apercebendo do convite, disparaste primeiro a tua prosa?
- Compadre, naquele instante, na dança, nos encontros e reencontros corporais, algumas vezes com ousadia da contra-parte, fiquei momentaneamente contente. Eu era o wi. Só que, de repente, pensei na munzúbya do kubiku. Porra! Lhe avanço ou lhe ignoro? Vieram-me duas ideias: abro as hostilidades ou as gostilidades?
- E tu?
- Evitei as hostilidades em casa. Congelei as gostilidades que até podiam ser momentânea e ocasionalmente boas!


Publicado pelo Jornal de Angola de 18.08.19

terça-feira, outubro 01, 2019

O QUE O VENTO PÕE À MOSTRA

Moda é  moda e sempre houve em todos os tempos, levando-me a crer que venha a haver para todo o sempre. Especialistas na matéria apontam que ela se renova e recupera exemplares do passado a cada dez ou vinte anos, com alguns acréscimos e ou decréscimos.
Por outro lado, diferente dos animais irracionais que já nascem vestidos de abundantes pelos, escamas  ou penas, o homem veste-se para realização púdica e alimentação egoística. 
Quem se veste, qualquer que sejam os trajes, quer cobrir o corpo, para que "zonas proibidas" não  sejam vistas, mas quer também mostrar-se ou pôr à mostra o que adquiriu e está a usar, quanto pode e até onde chega o seu bolso. Por este facto, uns, os mais vaidosos, nem sequer se prestam a bisar roupas, gastando fortunas para alimentar esse ego. Alguns (como o autor dessa prosa) fica-se pelo cobrir o corpo  de forma decente e/ou combinar algumas cores, evitando um carnaval de duração anual.
Aos que conjugam o verbo ter, às roupas fazem acompanham uma série de adereços complementares (e pinturas noutros casos), colocando-nos, às vezes, mais próximos de "pessoas esculpidas/trabalhadas" do que de simples seres humanos (mortais) com corpos cobertos por têxteis.
Nos dias que correm, vejo frequentemente senhoras (de baixa, média e outras de alta idade) a usarem saias e vestidos curtos, apertados na zona da cintura (normalmente junto ao umbigo) mas excessivamente largos na zona baixa e propensos a ser levantados pelo vento. E, quando tal (o inesperado?) acontece, fica tudo à mostra.
Umas mais avisadas, embora vaidosas, usam uma "preservante" cinta ou minúsculos  colants para manter a guarda. Outras, mais ousadas, usam tais sainhas e vestidinhos como se estivessem a usar calças ou vestidos longos, numa espécie de "veja tudo" o que quiser. Há quem ainda use em adição blusinhas de alcinhas ou as do tipo "deixa cair".
E quando o vento sopra, cuecas (novas e rotas) é só ver. E os jovens da kangonya que até  pedem para que o vento não dê tréguas?! Bué de cinema sem bilhete!
Por que será?
Será intencional ou as modas são incontornáveis?
Publicado no jornal Nova Gazeta de 06.06.19 

domingo, setembro 29, 2019

E SE EU FOSSE APENAS PROFESSOR?

 Eventualmente, fosse chamado kunanga ou biscateiro.

Certa vez, apresentando-me a uma jovem aparentemente esbelta mas cujo cérebro, cheguei a avaliar, era de gafanhoto, que me perguntou "o que é que eu era" e tendo-lhe respondido 'professor", a "cientista da petulância" teve mesmo a coragem de perguntar:
- Só és professor e não fazes mais nada?!
Tal é a forma mesquinha como os professores são muitas vezes encarados pelos entes sociais. Vamos ao...

s poucos.
Quando era jornalista no activo e ministrava aulas à tarde, a pergunta que as pessoas me colocavam quando se apercebessem das minhas ocupações profissionais era:
- Ah, tu és jornalista e dás aulas à tarde, nê?!
Vejamos: ser jornalista, eventualmente, por ser profissão liberal "equivale", no conceito de alguns, a um "não trabalho", pois para essas mesmas pessoas o trabalho significa passar todo o dia no local da prestação de serviço como o "fazem" os funcionários públicos ou colaboradores de empresas transformadoras/fornecedoras de produtos e de serviços.
Para os tais, ser, por exemplo, estivador no porto, pedreiro algures, desentupidor de fossas (também socialmente úteis) é o que equivale a ser trabalho/trabalhador, sendo o uso da força o maior qualificador profissional.
Em conversa com dois meus antigos mestres, foram unânimes num pequeno detalhe. Diziam eles que "ser professor já foi tido como trabalho de muito respeito e consideração social. Agora, desde que os fugitivos à tropa e outros sem habilidades para coisas mais sérias inundaram a nobre profissão de formar e transformar a nova geração, ela, a profissão, se tornou aos olhos de muitos como uma 'simples ocupação', um biscate ou 'refúgio dos que têm tempo de sobra"', fim de citação.
Já tive um período de aproximadamente cinco anos em que o regime de trabalho, a inexistência de escolas particulares de nível médio e/ou superior com aulas nocturnas e a distância entre o local em que trabalhava/habitava e a cidade mais próxima (Saurimo) me inibiram de "dar aulas". Nessa situação, eu era para as pessoas que retrato um trabalhador. No entender deles, entregava-me cabalmente ao patrão, à semelhança do que dizem fazer os funcionários públicos, bancários e outros.
- O fulano trabalha no banco xis. O beltrano trabalha no Porto do Dande. A sicrana trabalha no Maria Pia (hospital). O André dá aulas.
- A Andreia o quê que faz?
- É jornalista!
Vejamos o que me dizem/perguntam, agora que sou funcionário público e professor.
- Ai é? Trabalhas o dia todo e dás aulas à noite?
Veja bem. No entender deles, enquanto funcionário do Estado (administração pública), trabalho. Já como professor, mesmo que fosse em escola pública, não trabalho. Apenas dou aulas!
Nem juntando ao ofício da educação o de jornalista sou trabalhador...
E se fosse simplesmente professor, ministrando aulas à noite, o que diriam de mim?

Publicado pelo Jornal de Angola de 12.05.19
     

domingo, setembro 22, 2019

EKEPA NÃO É INGLÊS

No centro de Angola, do litoral ao nascer do sol, há um aforismo bem conhecido por todos os falantes da língua predominante, incluindo crianças que já, por algum motivo, se terão atrasado em algum evento de onde teriam benefícios, que reza: "O atrasado come ossos".
Esperando pela veiculação de um anúncio televisivo, atrasei-me ao jantar colectivo. Embora o restaurante tivesse monitores de televisão, a distância entre o quarto e aquele recinto roubar-me-ia mais de um minuto, mesmo que fosse a bom passo e velocidade, correndo o risco de erder a visualização do mesmo, caso passasse naquele intervalo de tempo.
- O spot pode passar nesse instante, enquanto faço a travessia, e não terei como aplaudir ou reclamar. - Pensei, acabando por assistir ao telejornal da televisão pública no aposento. 
Tal, fez-me chegar ao restaurante naqueles momentos em que o funji, pirão por essas paragens, aguarda pelo atrasado sem o respectivo conduto. Nem cabidela de galinha gentia, nem losaka, nem ramas de batata, nem nada. Apenas uns nacos grelhados de "galinha com pai e mãe", umas batatas do reino enfatiadas e fritas e salada que se estendiam sem clientes. E eu que sou "funjívoro"?
- Mano, tem pirão mas o conduto já não. Acabou. Posso pedir jantar "a la carte"? - Indaguei solícito ao jovem que se apresentava de humor ainda aceitável no balcão de atendimento.
  
- Conduto acabou? Como assim? - Retorquiu.
- É verdade. Eu gosto mesmo é de comer pirão e, mesmo que aceitasse galinha do kaputu, que ainda tem grelhada, já não há molho. - Expus.
  
O jovem parou por alguns instantes a procurar por uma resposta.
- 'Stá bem. Vou à cozinha ver o que se pode fazer. 
Passaram-se trinta minutos sem resposta, até que o voltei a chamar.
- Então, o mano não me deu resposta...

- Sim mano, ainda me desculpa. É mesmo um bocado de atrapalhação. A sala encheu. Assim mesmo que não mais importunei o mano, é resposta afirmativa. Ainda aguarda só mais um bocado.

- Bocado vem da boca como punhado deriva de punho. Que de lá surja algo. - Falei com os botões.
 
Não tardou, chegou uma kafeko. Magra e linda, se não fosse aquele cabelo emprestado, seria mesmo uma "amigável" para filho ou sobrinho. Num prato três restos de frango e noutro beringela (losaka).
- Jovem, você é mesmo do Huambo?
  
- Sim, senhor, nasci mesmo aqui no Santo Rosa.
- Sabe o que é ekepa?
- Não senhor. Não falo inglês!
  
Até a vontade de reclamar dos ossos que se estendiam famintos no prato passou-me pala "culatra". Como alternativa ao desejável conduto ausente, tive de os mastigar e aproveitar o molho, também escasso, para empurrar o pirão garganta abaixo, afugentar o bicho e esperar pelo matabicho do dia seguinte.

Publicado pelo jornal Nova Gazeta de 09.05.19

domingo, setembro 15, 2019

O HOMEM DO CAMPO E A CATANA

Na cidade tornou-se raro ver um homem, mesmo idoso, sem o seu celular. Até a bíblia, inseparável dos homens de idade nos dias de culto e missa,  vai ficando para trás pois o pequeno e inteligente aparelho consegue incorporar o velho telefone de discagem, o rádio receptor, o leitor de música,  a bíblia, o hinário e a harpa, a máquina calculadora, o medidor de passos e da tensão ou ainda a bússola, o termómetro, a balança e o relógio. A máquina de escrever e as de fazer fotos e filmes também estão dentro do celular. E é isso que confere alegria ao homem da cidade que fica doente se, por distração alguma, se vir distante do seu brinquedo facilitador em quase tudo.

No campo é outra coisa. Os capinzais altos nos atalhos, as árvores derrubadas pelo vento e pela chuva, as cobras procurando sol nos descampados por onde o homem passa, as feras que procuram no homem o seu mata-fome,  o cultivo, a poda, a colheita, a auto-defesa e outras valias para a vida campestre remetem à catana a importância transcendental e inquestionável do dia-a-dia.

No campo, um homem sem catana não é Homem. É amador, desprevenido e vulnerável. Todo o perigo é com ele e de tudo quase se pavoneia.

Em mãos de homens do campo, encontramos catanas de diferentes figurinos: com extremidade dianteira curva (semelhante à usada no 4 de fevereiro/61 e por isso assim designada), a rectilíneas, umas mais largas do que outras diminuídas pelo afiar permanente da lima ou pedra, sendo transportadas na mão firme ou à cintura.

A catana para o homem campestre é como a tradicional caneta e bloco de notas no bolso do colete de um bom jornalista que, mesmo usando gravador de som, nunca põe de parte a memória cerebral (ouvir, interpretar e reter) e o seu bloco de notas, coisas que pouco se vão ensinando ou que a nova geração despreza, correndo, com isso, riscos desnecessários.

Publicado pelo jornal Nova Gazeta a 25.03.19

domingo, setembro 08, 2019

PERMISSÕES E PROIBIÇÕES DE KATUTURA

Se a Chicala, no istmo de Luanda, é conhecida e recomendada pelo sabor que as senhoras dão ao peixe que confeccionam, o Oshetu Community Market de Katutura é famoso, sobretudo entre angolanos, pelo sabor da carne fresca e tenrinha que por lá é assada com esmero e alguma magia. Quando descrevi os ningoçus na Chicala, averbei que se a venda de peixe era um negócio formal, já os serviços e produtos suplementares oferecidos à volta eram inform...ais, não pagando nenhuma taxa ao Estado/Administração Local.
Aqui, em Oshetu de Katutura, não!
Tudo é formal. Desde os fornecedores de lenha aos assadores de carne, da tia que vende pirão de massango/massambala (note-se que carne e pirão são vendidos à parte e por pessoas distintas, assim como o molho de tomate e cebola) ao jovem que faz molho para aligeirar a deglutição, a/o fornecedor de tomate e cebola, etc. E o administrador da legalidade foi mais longe. Separou os serviços em lados diferentes: electrodomésticos, alfaiataria, fotos e impressão, cereais, peixe miúdo das chanas, katatu e, como era de esperar, a fuba acomodada em bacias escondidas em sacos de plástico transparente. Até da gosto. É diferente da banda onde a poeira arrastada pelos ventos de todas as lixeiras se junta à fuba que enche o estômago na hora da janta. Aqui, há preocupação máxima com a saúde e com a urbanidade. Álcool, por exemplo, no entry.
Um jovem, primeira vez a se dirigir à Katutura, sabendo que encontraria bons nacos, decidiu levar as suas birritas frescas para enfrentar os 38° graus de temperatura e abafar a fome e a sede que estavam a braçadas.
- Álcool no entry. - Disseram-lhe os seguranças, à entrada.
- O quê? Achas mesmo que vou pitar sem xupar, com esse calor todo?
- You can go, but without alcool drink. - Retorquiu o segurança-chefe, sempre calmo e a contrastar com a agitação do neófito mwangolê que já se prestava a usar a razão da força em vez da força da razão.
Chegou outro mwangolê, já cacimbado em frequentar aquele recinto e conhecedor das leis namibianas. Abeirou-se dele e, como quem acalma um nenê enfurecido, pegou-lhe o ombro e disse-lhe:
_ Conterra, olha só para essa barba e esse cabelo branco. Quando vim para cá eles ainda não eram independentes. É o respeito das leis que me faz desconhecer a cadeia. Lê a placa e pede desculpas, antes que a polícia chegue e acabemos todos rotulados.
O jovem levantou os olhos e, minuto depois, baixou a crista.
- Sorry my brother. Não sabia. Vou pegar take away e beber noutro lugar!

Publicado pelo Jornal de angola, 17.02.19

domingo, setembro 01, 2019

À CAÇA DE LUZ E MAKEZU

Em 1978, "Ano da agricultura", já António  Fernando e Manuel Carlos "Xika Yangu ou Raimundo" (primo dele) haviam abandonado a região  de Kuteka, nas margens do Longa, para se fixarem na Fazenda Israel, próximo da Estrada Nacional Luanda-Huambo, gerida na altura por João dos Santos "João Kitumbulu" (tio de minha mãe).
O meu mano Arnaldo Carlos, filho de Xika Yangu, diz que "os dois papás desde a independência que juntavam ideias para se fixarem o mais próximo possível da estrada", sinónimo  de luz e avanço económico.
 
A rodovia asfaltada, concluímos hoje, permite proximidade com os grandes centros. Permite produção autossuficiente, com excedentes colocados à venda, renda, poupança e aquisição de bens industriais. Nesse quesito, o soba Xika Yangu já tinha bicicleta e o filho mais velho, Jorge Kakonda, uma mota Suzuki.
A aldeia de Mbangu-de-Kuteka (perto de 30 km de picada) ou a fazenda nas matas de  Kitumbulu, onde meu pai vivia junto do seu progenitor, nada davam senão a mesmice da mandioca e derivados, pesca e caça abundantes e o café que foi, aos poucos, perdendo peso e valor.
Instalados na fazenda Israel, António Fernando empregou-se como braçal, juntando-se aos contratados ovimbundu, e Xika Yangu tratorista, uma profissão respeitável no trabalho agrícola.
O passo seguinte, conta ainda o mano Arnaldo, seria abandonarem a fazenda e constituírem uma aldeola familiar, no Limbe, perto de quatro quilómetros da fazenda, onde reconstituiriam suas vidas. E assim fizeram em 1980.
A viver no acampamento, privei com outros meninos, filhos de ex-contratados ovimbundu, e com eles aprendi a língua e os hábitos de seus papás, pois em nossa pequena comunidade ambundu o Português era exigido a todo o tempo, já que estava à espreita a entrada para a pré-kabunga.
Assim, conheci a Pedra Escrita da Munenga (que nada tem a ver com a de Ndala Uzu que visitei uma década mais tarde) como suporte que continha/contém um anúncio publicitário da "Estalagem Boa Viagem", que fica no Lussusso, pertença  da família Olímpio, descendentes de Cabo Verde (conheci um dos donos em 1990, vivendo no Prenda, junto à Clinica/Hospital com o mesmo nome).
Certa vez, estávamos ainda no ano de 1979, "Ano da Formação de Quadros" (e eu ainda não frequentava a escola do povo), Arnaldo Carlos, Sabalo Kambota (primo Zito), Augusto João "Kapayu" mais tarde conhecido como "Gasolina" (filho do gerente da fazenda) e talvez o tio Beto Santos ou Zé Borracha (sobrinho da avó Emília, a mãe do tio Gasolina) decidiram ir à caça de "makezu" ou canta-pedras (uns animais roedores com três  dedos, do tamanho de um gato bem nutrido) no gigante paleolítico conhecido como pedra escrita. Era tempo de capim de altura intermédia,  Fevereiro talvez.
Munidos de cães de caça,  zagaias e flechas e outros utensílios para desalojar os animais de suas tocas, conseguiram uma boa caçada. Ao mais novo, no caso eu, cabia levar alguma das peças abatidas.
De regresso à casa (Fazenda Israel), perto de dois ou três quilómetros, o passo apressado e faminto de adolescentes descompassava com o lento, faminto, sedento e cansado do infante que, aos poucos, os foi perdendo de vista e na distância.
Como perigo não havia, pois sobre guerra nem na rádio ouvíamos ainda falar, eles foram na galhofa andando e pensando que o rapaz os seguia e cedo a eles se juntaria.
Postos no acampamento, Arnaldo e Sabalo (sobrinho da minha mãe), Kapayu e o primo Beto na casa particular de seu pai (havia a vivenda da fazenda que só se abria para trabalho) terão  notado a minha ausência prolongada.
Até hoje, nem o meu mano e amigo de todos os tempos Arnaldo, nem Kapayu que era um tio-amigo, nem o primo Zito (os dois últimos  já não vivem), ninguém me confidenciou se terão  levado alguma reprimenda dos mais velhos. Só sei que fizeram caminho inverso, procurando por mim, encontrando-me dormitando à sombra de um arbusto que crescera no então "campo aviação", meio-caminho entre a "pedra escrita" e a Fazenda Israel (rebaptizada no pós-independência por Fazenda Hoji-ya-Henda). A sede, a fome e o cansaço foram tão fortes que força não sobrara nas pernas e pés descalços sobre areia quente e movediça da tarde ensolarada.

Quanto à aldeia de Pedra Escrita, que hoje se mostra  junto ao gigante paleolítico, foi obra do comandante António Infeliz João (filho de João dos Santos ou João Kitumbulu) que perante a dispersão pelas lavras dos antigos trabalhadores das fazendas da região e face às incursões dos militares rebeldes (Unita) que entre os ovimbundu encontravam fonte de abastecimento logístico e informações sobre a movimentação das forças armadas angolanas (FAA), decidiu, à força, juntar todos os povos dispersos em um conglomerado no território da fazenda que mais tarde passou a ser sua. Assim nasceu, no início da década de noventa, séc XX, a aldeia que é das maiores da comuna da Munenga, juntando, para além de povos recuados há muito do Ki(s)songo, Kis(s)ala, Longolo e outras regiões distantes, aldeões de Kalombo, Tumba Grande, Kipela, Kototo e Kuteka.
 
Texto publicado pelo jornal Nova Gazeta de 11 Abril 2019
 e J.A de 28.04.19

quinta-feira, agosto 29, 2019

QUANDO ADMINISTRAR WHATSAPP É VANTAGEM

Nas grandes cidades, como Luanda e Sumbe, "mijam" os governadores nelas estão instalados, não sendo, contudo por todos conhecidos. Assim também é nas sedes municipais. Quem "mija grosso" é  o administra-a-dor.

Man-Barras, considerado "um organizador" da polícia de viação e trânsito atendendo aos novos ventos que nos sopram a partir da Colina de São José, em Luanda, foi transferido de uma cidade para outra com tal propósito de organizar e baixar os níveis de sacarose contidos na "gasosa". Tão  grande era a sua fama e o temor que os automobilistas sem carta ou com carros indocumentados tinham dele. Man-Barras, homem vertical, sempre cabeça rapada, uma Barrabás. Gasosa para ele era algo com "sal e veneno", daí que, a quem estivesse em falta, mais valias entregar-se, confessar e levar a multa ou ser encaminhado à cadeia, se fosse cado disso, do que procurar subornar o novo chefe da policia de transito do Lubolu que fazia questão de trabalhar diariamente duas a três horas no terreno e sempre em pontos distintos.

Mangodinho que vivia na aldeia de Pedra Escrita, embora mesma subscrição administrativa,  não conhecia ainda Man-Barras nem esse a Mangodinho. O calhambeque de Mangodinho, um "acaba de me matar" de cor azulada e matricula AMF, e ele mesmo estavam documentalmente em dia. Livrete, título de propriedade, piscas e faróis, stop e travões,  taxa de circulação e seguro contra terceiros, tudo. Mangodinho não gosta de kavwanza e prefere pagar muito mesmo que tenha de usufruir pouco.
- Mais velho não se pode mais meter em encrencas.- Costuma afirmar nas conversas com os  jovens da aldeia.
Estava tudo em dia, estava! Mas, ao sair apressado de casa, se tinha esquecido da pasta que continha os documentos todos.
Pelo caminho, tinha já deixado uns cinco postos policiais. No Lubolu é como no Longonjo. A polícia monta postos de fiscalização de cinco a cinco quilómetros. Felizmente,  sendo um mais velho e um carro conhecidos, não  foi parado para as devidas averiguações. Porém, a  entrar, quase-quase, em Kalulu, lembrou-se que ali "a coisa era mais diferente e custosa". Enfiou a mão no porta-luvas para confirmar se a pasta estava lá e a mão  voltou vazia.
Os documentos ficaram. Ficou com as ideias a gira-girar.
- Regresso? E se encontrar uma malandro que me mande parar? Avanço? E se me encontrar com o novo chefe da polícia de trânsito que dizem nem gasosa bebe?
Decidiu avançar e confiar no socorro intangível de seus ancestrais e nos apelos aos santos e arcanjos cristãos  que já ouvira falar.
- Vou só. Já andei 58 quilómetros e só me restam 2 km. - Decidiu e assim agiu.
Para a sua desventura, era Man-Barras quem estava no "controlo" de Kambuku.
Mangodinho atrapalhação entrou-lhe nas pernas e nos cérebro. Pior é quando você sabe que está  em falta.
Estacionou diligente o mais próximo da berma, sinalizando antes a operação,  mesmo não tendo veículo  nenhum à sua rectaguarda.
Quando o chefe Barras o ia abordar, eis que apareceu um sub-chefe de motorizada, de quem Mangodinho era amigo desde os tempos da escola  Kwame Nkrumah e com quem trocava mensagens regulares via grupo whatsapp.
- Então,  camarada administrador, Como está? - Saudou Velhinho Toneco, o sub-chefe da polícia.
- Bom dia camarada Velhinho.
- Como está  a nossa comuna da Munenga? - Indagou de novo o polícia, pronto a partir, deixando o seu superior fazer as averiguações a Mangodinho.
Nisso, Man-Barras julgando tratar-se do administrador comunal da Munenga, apenas se limitou a abrir a cancela e fazer a habitual vênia.
- Boa viagem e tenha boa reunião, Senhor Administrador!

terça-feira, agosto 27, 2019

EXPLORAÇÃO DE TRABALHO INFANTIL NA BAIXA DE LUANDA

Os rapazes e algumas raparigas que vendem água, refrigerantes e algumas bugigangas pelas ruas da cidade de Luanda nem todos e nem sempre o fazem para ajudar os pais, dada a precariedade financeira dos progenitores e/ou tutores. Entrevistei alguns, na Rua Direita de Luanda, e soube que "o negócio é do patrão" que paga ao fim-de-semana uma quantia módica.

Quanto à origem dos mesmos, é diversa: Namibe, Huila, Huambo, Benguela, Bié e até Kwandu-Kuvangu.
Uma boa perícia pode apurar quem são os que "abusam" estes memores, expondo-os a todos os sóis, sede, poeria e fome, bregando pela sobrevivência, num ambiente em que proliferam malfeitores.

Nesta, terça-feira, 27 de Agosto, um desses meninos, recém-chegado dos gambos, onde provávelmente seus pais terão perdido o gado que ele ajudava a pastorear, foi vítima de um futo. Um "diamporô" exibiu Kz 2000, pedindo 4 refrigerantes (ao preço de cada Kz 100) e o respectivo troco de 1600. Sem que tivesse entregue a cédula de kz 2mil, deu Kz 100 ao rapaz para que fosse comprar um saco para ele transportar as ditas gasosas. Desavisado, o rapaz foi à procura de saco e quando voltou ao local em que deixara o cliente e a mercadoria, "só encontrou vento". O aludido comprador, bandido de primeira hora, pôs-se ao fresco.

Se é preciso "caçar" os bandidos todos que inundam Luanda, é, de todo mister, que se chegue, de igual sorte, aos exploradores de trabalho infantil, que podem também ser raptores de menores para as usar como "mão-de-obra escrava".

quinta-feira, agosto 22, 2019

SONGO NA ESTRUTURA DA ALDEIA RURAL TRADICIONALISTA

  (tentativa de descrição da divisão político-administrativa da aldeia rural tradicionalista)
A vertente "positiva" da divisão político-administrativa do Estado angolano, apresenta-nos o país subdividido em regiões (norte, sul, centro e leste e costeira/oeste), províncias, municípios, comunas/distritos urbanos, cidades, sectores/zonas, quarteirões, aldeias, etc.
Olhando para a organização do que foi/é o potentado de Kuteka, nas margens do Longa, abrangendo territórios adstritos à comuna de Munenga (Libolo) e comuna de Dala Cachibo (Ndala-ya-Xipo, município da Quibala), noto que o soberano (designado rei) exerce poder sobre as aldeias de Hombo, Mbango, Kabombo, Kipela(?) e Mbanze (a capital), podendo cada aldeia ter outras aldeolas (unidades dependentes e de menor aglomeração populacional), podendo ainda subdividir-se em sectores residenciais ou zonas, também designadas (no caso de Mbango) por "songo" (comunidade afectiva).
Sendo "songo" a menor unidade de organização territorial nas comunidades rurais tradicionais, pode equivaler, quando comparada com a comunidade urbana, a bloco ou quarteirão.
Na antiga aldeia de Mbangu-yo-'Teka (Mbangu-de-Kuteka), Kinhendu, Kitinu, Kabota e Zawlena Kilombo, todos parentes próximos eram do "songo/quarteirão" de Ketele, enquanto outros aldeões como Kyuma Albano eram do Nguya.
O "songo" é/era fundado na base de um parentesco mais intrínseco (consanguinidade e/ou amizade pura), credo (religioso ou animístico), origem migratória, ocupação socio-profissional (pescador, caçador, etc.), entre outros quesitos, não estando dissociado de um todo que é a aldeia, unidade administrativa do potentado (reino).
Nessa reflexão/busca, trago à colação um extracto do cancioneiro popular que cita:
"Bu songo yeto twoso twatata, kabwete otuxitila, so tulizek'ayo" (no nosso sector/comunidade todos somos homens, não há quem moa fuba, por isso passaremos noite com fome).
Um exemplo da ex(pers)istência de "songo" é encontrado na aldeia de Pedra Escrita, no Libolo, que cresce por via da migração de povos de aldeias afastadas da via asfaltada para essa, com destaque para os povos de Kuteka que, regra geral, erguem as suas habitações ao lado dos primeiros emigrantes da mesma procedência. Assim, quem se dirige à Pedra Escrita e procure por alguém que tenha nome redundante é questionado sobre a origem do procurado.
Explicando, por exemplo, que "procura pelo domingos do Mbangu" torna-se fácil ao "cicerone" percorrer mental e visualmente o "mapa da aldeia e suas sub-unidades/comunidades" e passar uma informação assertiva.
Voltando ao "Estado" tradicional de Kuteka, verifica-se que o soberano (Kañane ou Phela) exerce poder sobre a população das aldeias acima citadas, e estas possuem jurisdição sobre as terras (cultiváveis e não agricultáveis, montanhas, florestas/muxitu), rios, coutadas para caça, etc. Os limotes do potentado são físicos (acidentes naturais) mas conhecidos por toda a comunidade, sendo sua invasão por estranhos (sobretudo em termos de caça) passível de multas.
O povo desse potentado internaliza aspectos comuns como língua, credos e um sistema de jurídico-administrativo próprio.
Importa aos historiadores contemporâneos resgatarem esses relatos histórico-sociais e político-administrativos das nossas comunidades para que se possa compreender a genesis da estrutura e organização das comunidades rurais tradicionalistas do nosso país.

Publicado no jornal Nova Gazeta a 30.05.19 

quinta-feira, agosto 15, 2019

O KASIMBU DA MINH'INFÂNCIA

Naquele tempo, Setembro era o mês do retorno à escola, depois de três meses de "licença". Por isso, Maio, mês do início do Kasimbu (cacimbo ou estação seca) que se estende até Agosto, era o mês das provas finais de conhecimento e exames. 

Chegado o mês das férias prolongadas, os que atingissem a idade da circuncisão (no Libolo, era normal dos cinco aos dez anos, podendo acontecer, excepcionalmente, antes ou depois desse intervalo) estariam a contar os dias (se cônscio disso) ou à espera de serem surpreendidos pela chegada do "mestre da faca afiada". Os mais crescidinhos, já talhados para a caça, começavam a preparar os instrumentos de caça (por queimada de capim), a alimentar os cães e a consertar as alparcatas. Nalgumas casas e famílias, kasimbu é período de conduto abundante, dado que os rapazes estão libertos da escola e empenhados em mostrar toda a sua mestria na fabricação e montagem de engenhos ardilosos para capturar tudo o que se mova e que os hábitos alimentícios admita à mesa: puku, ngwari, kandimba, hima, xiwe/kambwiji, ngwingi, hala, kezu, ngulungu, kyombo, moma e toda a sorte de viventes terrestres, aéreos e aquáticos.

Os que se tenham dado bem na escola, alguns eram presenteados com viagens a uma aldeia mais vistosa ou a uma capital qualquer: a sede comunal, a sede municipal, a capital provincial e, se os pais mais pudessem e quisessem, a capital do país. E quando voltassem à aldeia natal, era recorrente dos viajantes a expressão:

- Ewo, mu Luanda Uwabeee! (quão linda é Luanda!)

E contavam-se cenas de roer as unhas para quem nunca tinha deixado a aldeia nativa, umas verdadeiras e outras de enfeitar a línguas e os ouvidos da audiência. Faziam-se círculos, dias sim, dias sempre, para ouvir os aguçadores de curiosidades contarem estórias até que outras cenas ou motivos se sobrepusessem.

- Quão linda é a cidade!

Na estação seca, rios com menos água e menos alimentos para a vida aquática, mais faina nas nassas (muzwa) carregadas de dendém e outros restos que atraem os cardumes às armadilhas. Outras quantas vezes, rios barrados ou recortados pela escassez de pluviosidade, cestos preparados. Mulheres, crianças e adolescentes valentes. Os homens adultos têm a caça, numa comunidade com papéis socias bem distribuídos, como actividade distribuída. Cascas de árvores trituradas e ervas ou folhas entorpecentes como "twa" ou "kalembe". E o peixe em área delineada e circunscrita de um trecho de rio ou lagoa flutua ébrio para garfadas alegres, noite adentro e manhãs seguidas.

Com a realização das picadas à volta das fazendas e das lavras (para que fogo posto ou acidental não devore o fruto do trabalho árduo de todos os tempos) e depois das queimadas, iniciava-se a preparação do ano agrícola.
 Preparar o "kibembe" (terreno que esteve em sistema de pousio) para o milho, a batata-doce, o feijão e a jinguba. 

Ainda durante o kasimbu (cacimbo) os deltas dos rios e outras partes mais baixas (sem que haja rios) chamadas "kitaka ou naka" ganhavam o verde da rega. O cultivo de hortaliças acontece com maior intensidade no período de estiagem para os campos altos e rega nas zonas ribeirinhas. E o milho, a jinguba, a batata, o tomate, a cebola e alho, enfim... tudo volta, mesmo sem chuva!
 
Publicado no Jornal de Angola de 09.06.19

quinta-feira, agosto 08, 2019

A ORIANA DE ENTRECAMPOS

A Camponesa é uma "tasca de esquina" (Av. 5 de Outubro, 347, 1600-035, Lisboa), cuja sinalética aponta como sendo "Pastelaria, Cafetaria e Snack Bar". Localizada em Entre Campos, a casa está sempre apinhada, apesar de ter (diga-se) espaço de acolhimento interior minúsculo (para o número de frequentadores), mas sempre bem arrumado de forma a poderem nele caber mais pessoas sentadas.
À entrada, no largo passeio a olhar para a estação de comboios, um sombreiro acolhe os utentes que preenchem outras mesas com cadeiras. É, normalmente, aqui que se sentam os fumadores e aqueles que ficam por uma bica.
Mas quem faz "A Camponesa" encher o recinto e os bolsos?
Há uma jovem que trata todos os angolanos que adentram o espaço por tio. A jovem simpática que corre de um lado ao outro, conversando e atendendo com mestria, é Oriana e é angolana. Ela sabe quando intervir e quando deixar os clientes em paz. Conhece as dores e, às vezes, age como bálsamo.
Diz que "ganha pouco" mas a sua simpatia cativante, que faz o espaço encher, proporciona-lhe alguns cêntimos de euros que, ao longo do dia todo, podem pagar uma refeição.
Quando perguntada "se não se cansa e não tem tido dias tristes", Oriana apenas responde:
- Gosto do que faço e com o sorriso que vocês dizem que esboço encapuzo as minhas mágoas.
Essa jovem angolana, há mais de 15 anos em Lisboa, habituada a ter o cliente como a razão do seu trabalho e de seu sustento, bem podia ser modelo para muitos empregados em hotéis, restaurantes e similares em Angola, que fingem trabalhar ou que erradamente pensam que fazem favor ao utente/cliente. É uma pena que Lisboa "fica longe" e a Oriana uma apenas, embora se possam encontrar em Portugal outros bons profissionais do ramo da hotelaria, idos de Angola, dada a vocação turística do país.
Pessoas como a Oriana devem ser contratadas para formar (formal ou informalmente) angolanos que trabalhem no nosso país nesse segmento de negócio, de modo a conferir qualidade ao serviço que as nossas casas prestam. É que há muito a ciência empresarial comprovou que para ter uma boa clientela (grande e regular) não basta a qualidade inferida do produto. O serviço tem de ser de elevadíssima qualidade, sendo que esse desiderato é atingível apenas com pessoas que tenham vocação, formação, que gostem do que fazem e que estejam comprometidas com o trabalho.
A Oriana mostrou que um bom atendedor de cafés pode, ao fim da jornada, ganhar mais do que um Ministro ou Deputado à Assembleia do Povo!

Publicado no jornal Nova Gazeta de 25.04.19 e JA de 19.05.19

quinta-feira, agosto 01, 2019

UM BIENO NA EUROPA

Enquanto escrevo essa prova, estou a pensar num jovem do Bié ensinado e educado a cumprimentar tantos quantos encontre.
Wandalika está no aeroporto de Viena, à tarde um formigueiro, a cumprimentar tudo e todos quanto vê, até estátuas e manequins nas boutiques.
- Mboa tarde, mano!
- Mboa tarde, mana!
Não atentos e nem habituados a tal, todos quantos percorriam os terminais do aeroporto pareciam-lhe mal humorados e deseducados.
Wandalika não deixava, entretanto, de os saudar amistosamente, tão pouco de reclamar pelo silêncio que recebia em troca:
- Ainda aqui são assim mal 'indixipilinados' por cá-di-quiê? Pessoa 'combrimenda' com toda vontade e ninguém 'arresponde'? Kalye aniña, pa!