Depois de terem "varrido" literalmente o Kisongo, Kisala e cercanias, roubando o gado que puderam levar, devastado lavras, raptado jovens para ingressar suas fileiras, violado e esposado forçosamente raparigas, deixando as aldeias despovoadas, pois o povo começou a recuar, em finais de 1983 chegou a desgraça às aldeias da comuna libolense da Munenga.
Depois do ataque a viaturas junto à fazenda Kangulu, e accionamento de mina por parte de um tractor a serviço da Estalagem Boa Viagem-Lususu, procedente do Alto Dondo, levando à morte o nosso benquisto Santos Kajamba, começamos a recuar. Inicialmente para Fuke, junto à fazenda e Motel do alemão Walter Kruk (raptado após ataque à Munenga), onde permanecemos uma semana. O trajecto de aproximadamente 20 quilómetros era feito a pé, pés descalços, em atalhos abertos na densa vegetação ou sob o sol escaldante que derretia o alcatrão na rodovia asfaltada.
Chegou o mês de Fevereiro de 1984. Saídos do Limbe, próximo da actual aldeia de Pedra Escrita, estávamos "RECUADOS" (deslocados) uma semana nas lavras de Katoto, margens do rio Ryaha, antes de emprestar as suas águas ao Sangisa.
O percurso fora feito a pé, seguindo o leito caudaloso do rio Ryaha para não deixar trilho que desse pistas a quem fugíamos (UNITA). Eramos seis ou sete famílias mal acampadas. Uma semana depois, os víveres foram escasseando e a paciência dos que nos acolhiam (da parte de uma nora) se ia esgotando. Não havia como tal não acontecer.
Os mais velhos (papá Xika Yangu à cabeça) iam fazendo uns raids ao Limbe em busca de comida. Outros iam à caça. Porém, António Neto, o seu irmão mais novo Sabalu e um primo foram raptados e, tempos depois nas bases da UNITA, apenas o Sabalu regressou. O irmão mais velho e o primo foram mortos por alegada tentativa de fuga.
Sem comida de origem vegetal e sem que os mais velhos pudessem ir à caça, os cabeça-de-família resolveram que deveríamos "recuar" um pouco mais, desta vez para a sede comunal da Munenga. A comitiva fugitiva abrigar-se-ia em casa de Manuel Albano, um parente que se achava em condições mínimas de nos receber e suportar por algum tempo, até que a situação na procedência normalizasse.
No dia da chegada, Manuel Albano havia conseguido apanhar nas suas armadilhas um veado macho. Ao jantar, saboreámos a jinginga (miudeza) e a carne ficou em defumação para que não se estragasse. Seria consumida nos dias vindouros. Para além da carne, havia na cozinha, onde o mano Sabalu-a-Soba e eu dormitamos, óleo de palma e outros mantimentos trazidos e encontrados. Calculo que kapuka também.
Na mesma tarde, um sanitário da Swapo que ajudavam na guarnição do vilarejo fez-me curativo a uma ferida na perna que já ia deitando odor estranho. De recúo em recúo não havia atenção para pequenos detalhes e até a saúde ficava em plano secundário. Tive um tratamento único: desinfecção com álcool, mercurocromo, antibiótico e um penso. A ferida secaria dias depois.
Naquela dia em que aportámos à Munenga nada fazia adivinhar um ataque rebelde. Vivia-se em paz, apesar dos zum-zum. A guerra dos nossos ouvidos e conhecimento era no Kisongo, Kisala e Kariangu. Pensava-se que a presença dos rebeldes nas cercanias de Lususu era por causa do gado trazido pelos recuas das aldeias já devastadas. Na Munenga, as pessoas andavam e conversavam sem grandes receios. Pelo menos as crianças estavam inocentes.
Na noite que antecedeu os acontecimentos, as luzes no comissariado estavam acesas. À madrugada, o tiroteio começou pelos lados do comissariado. Tiros de pistola, inicialmente. Depois, armas ligeiras de maior calibre. rajadas de cortar a respiração. Depois obuses fazendo soltar mijo aos medrosos. As FAPLA e SWAPO resistiram até onde puderam. Os rebeldes tinham chegado em maioria de homens e força. Havia mulheres que batucavam enquanto os homens faziam rajadas contra tudo. A guarnição do comissariado recuou. Seguiu-se fogo e fumo. Todas as casas foram, depois, passadas "à revista". Mortes, raptos e choros tomaram conta do ambiente. O ataque estava consumado. Os que sobraram vivos fizeram dois caminhos. Munenga ficou evacuada para o Dondo e Samba Karinje (a caminho de Kalulu) onde ficamos recuados mais um mês, tendo o pão como principal alimento, até que a farinha de trigo se esgotou.
As mamãs e papás, havia pouco tempo abastados, viram-se forçados a trabalhar por comida em lavras de aldeões locais.
Luanda seria o próximo recúo. temerosos, voltámos ao Limbe para reunir apressadamente as condições mínimas de viagem. Chegou Maio de 1984 deixei o Limbe, Munenga e Libolo, depois de termos ido a Kalulu pedir guias de marcha para a capital do país...