Conheceram-se no tempo da guerra fria, na República da Kamunda, quando Kapesi se dirigia ao serviço e Boana para a escola. Ao primeiro olhar, parecia visgo, os vulcões até então adormecidos derreteram montanhas, soltaram lavas e perfumes, aproximaram-se e como pessoas que se faziam ideia beijaram-se perdidamente.
- Não precisas de dizer-me agora para aonde vais. Levo-te a qualquer sítio, pois minh'alma diz que és tu o meu destino. - Atirou Kapesi, possuído de romantismo.
As palavras caiam-lhe como chuva de Abril e ela com o ouvido apurado, um planeta de receptividade e atractividade. E foram, caminho fora, falando cada um de si e do tilintar dos seus corações.
- Jovem, preciso de saber se cruzaste a minha vida para um propósito ou apenas para teres mais uma vítima? - Questionou Boana, certa vez, já amarrada às algemas românticas.
Como já disse, decorria a guerra fria daquele tempo que não era um conflito declarado entre as duas principais tribos da República da Kamunda, os vakwombwelo e os vakwonano, que até viviam em paz quase perpétua, interrompida apenas, de forma esparsa, em momentos de cruzamento matrimonial entre os vakwanano, povos do norte da Republica da Kamunda e os vakwombwelo, mais ao centro da Kamunda.
Em questões casamenteiras, os primeiros preferiam o cumprimento de suas tradições em detrimento dos procedimentos moderno-ocidentais ou, na melhor das hipóteses, combinavam a tradição bantu e as inovações alheias trazidas casa adentro pela luz da televisão. Os vakwambwelo habitavam um território plano e alto, irrigado pela natureza, onde abundava gado, cereais e batata do reino de sua Majestade D. Afonso Henriques. Eram também muito apegados à sua cultura e tradições, algo distinta no rigor da aplicação, dos seus vizinhos vakwonano. Os vakwombwelo eram povos muito viajados pelo antigo Reino da Kamunda, queridos por todos os empregadores, devido à sua entrega, elevado grau de comprometimento e alguma mansidão derivado do apego à sacra-palavra. Eram também muito escolarizados pelas missões evangélicas, fazendo-os intermédios entre o conservadorismo e o assimilacionismo a que a sua estrutura organizacional estava exposta. O conservadorismo de ambas tribos que faziam história na República fez com que o namoro de Kapesi e Boana fosse visto com algumas reticências de ambos os lados.
- Mas esse moço que até o irmão kasule já lhe coou com dois filhos, achas mesmo que será bom genro? - Perguntou certa vez o avô Menso Mankala, para acrescentar: Boana, continuadora da minha tribo, alguma vez já ouviste o acusarem de paternidade em algum lugar? Alguma vez já ouviste um zum-zum sobre amigamento dele ou coisa parecida? Desconfia, neta. Homem com estudo, casa própria e boa família, como me contas, não sobra como o jovem de que me falas. - Desconfiou prevencionista Menso Mankala a quem estava confiada a educação de Boana.
- Pai, menos dia menos noite, vou partir. A minha doença é irreversível. Cuida da sua neta até "lhe" entregar "no" marido, assim como cuidará das minhas irmãs. - As palavras de Franque ecoam ainda frescas e de forma insistente nos ouvidos de Menso Mankala, sempre que o assunto é namoro e constituição de lar por parte da neta.
- O que meu filho me pediu tem de se cumprir, custe o que custar. - Dizia para si mesmo, custando-lhe já o epiteto de "O Dificultador".
Do outro lado, as desconfianças e incertezas também faziam morada. Os vakwombwelo encaravam a questão "trabalho e sorriso" por parte de uma nora como primordiais.
- Mulher tem de rir. Tem de conversar. Nora que te mostra dentes é mais do que uma tristonha que te ofereça um banquete. - Costumava desabafar Kasova, a tia mais velha de Kapesi. E, era exactamente, esse sorriso escondido de Boana, embora não ausente, que fazia os da tribo vakwombwelo se posicionarem no NIM no dia em que o jovem reuniu a família para anunciar:
- Pais, mães, manos e manas, já passei a linha dos trinta. Já tive algumas experiências e tentativas de vos apresentar uma nora e cunhada. Acho que com a formação que consegui, casa própria no Kipedro e emprego que já tenho, é chegada a hora de atar o nó.
Ao inaudito discurso de Kapesi seguiram-se assobios, mais dos sobrinhos e cunhados do que da velha guarda que esperava ver para comemorar.
Os "acorrentados e cercados pelas lavas do vulcão amoroso" tinham combinado abrir o jogo às famílias no mesmo dia.
Boana fez o mesmo com os avós. Menso Mankala não conteve a indignação e teve mesmo um pequeno deslize que só não desembocou em incidente diplomático-familiar porque o amor que juntava Kapesi e Boana não era amarrado com corda. Era mesmo com laço de aço.
Kasova, a tia de Kapesi, e os seus também se interrogaram vezes tantas sobre aquela escolha, exactamente na tribo que se dizia "mandavam a noiva calçar salto alto e juntavam quatro filas de grades até ao tecto da casa".
- É só mesmo já nessa tribo que pedem gerador e terreno com pedreiro chinês que encontraste mulher para casar? Por que não vais ainda lá na embala do avô Kacyopololo ver se sobrou lá uma kafeko da nossa tribo ou de tribo com costumes aparentados? - Questionou Kasova a matriarca da família Kapesi.
No dia A, ou seja, no dia da apresentação, desfilaram adágios de parte a parte.
- A nossa filha está preparada para ser boa esposa e tem de sair daqui só quando eu quiser e com pedido bantu, casamento na igreja e conservatória. - Atirou um dos tios de Boana.
- O Kapessi é um homem preparado e sabemos que cumprirá as suas obrigações para honrar a sua cultura, seus sogros e sua família. - Ripostou JoSa, cunhado mais velho que na ocasião representava o sogro.
O bairro Kipedro, onde viviam Boana e Kapesi, era uma espécie de bairro franco. Lá estavam uns poucos conservadores que se tinham rendido à vida na verticalidade e uns tantos jovens que tinham abdicado da vida quintaleira das aldeias tradicionais da Kamunda. Naquele dia da confirmação do namoro de Boana e Kapesi, Kipedro estava agitada, só faltou o quintal para juntar as famílias vakwonano e vakwombwelo que desfilavam, através de representantes legais dos dois lados, bíblias de adágios e citações.
- Vamos fazer o pedido com os requintes que quiserem mas o casamento só quando o sol mostrar os primeiros raios. - Atirou um dos primos de Kapesi que ignorava o tratamento diplomático em conversas matriciais.
- Raiar do sol? Se vosso filho tentar vai dar multa que vocês não imaginam. - Defendeu-se Menso Mancala.
Com sabedoria, a diplomacia se sobrepôs aos argumentos apenas orgulhosos e despidos de razão. A tarde terminou em festa que adivinhava outra maior no dia P, ou seja, dia do pedido.
Com uma lista recheada aos olhos dos vakwambwelo mas simplificada no dizer dos vakwanano, as partes marcaram a data para o encontro do pedido de noivado que juntaria outros rostos e outro desfilar de rosários.
- Confiamos nas vossas palavras e esperamos que a nossa tradição seja cumprida geometricamente. - Recomendou Menso Mancala à família de Kapesi, ao que JoSa respondeu apenas com um aceno de cabeça, carregando a lista que lhe pesava como pedra.
Chegados à casa, os vakwombwelo, entre a aceitação e a reclamação, começaram por esboçar o plano de resposta.
- Vamos cumprir, mas também queremos ver o sol a raiar antes de nos metermos à estrada. - Aconselhou Phande, outro dos cunhados de Kapesi, ao mesmo tempo que distribuía incumbências para aliviar o peso pecuniário que recaía sobre seu cunhado de eleição. "Eu responsabilizo-me por isso e o fulano por aquilo", continuou Phande, perante a aceitação da família centrista.
O tempo foi juiz e advogado. A lista de incumbências para o pedido tradicional estava fechada. Os fatos, as grades, os vinhos, bijuterias e outros adereços desconhecidos dos infantes desse tempo aguardavam apenas pelo dia P que coincidiria com o casamento civil. À data, o sol já raiava, mas escondido ainda. Era apenas um laranja solar no fundo do ventre. O debate, à distância, via recados levados e trazidos pelos noivos, passou a ser “casar-se-ia antes no civil e depois no tradicional” ou o inverso?
Pela primeira vez, os vakwombwelo ganharam o desafio que os levaria a esquivar possíveis multas pelo alvitre de "ter entrado pela janela".
- Quando chagarmos ao pedido, ela já será tua esposa e nenhum outro pedido de multa terá força ao pé da lei ordinária. Será essa a nossa posição e é consabido que, podíamos até ir de mãos a abanar, sempre nos receberiam e te consagrariam como genro. - O discurso de Phande teve a concordância de JoSa e demais familiares de Kapesi que se manteve obediente às instruções e pouco interventivo.
No dia P, Kapesi que vivia em Kipedro, nova cidade da capital da Kamunda, pegou na sua teó (trotinete rudimentar) e foi ao encontro dos padrinhos que se encontravam na conservatória do registo civil, onde aguardaria pela sua dama. Recebeu aplausos pela inovação e, por fim, Boana como sua prometida Eva. Fizeram juras e trocaram o primeiro beijo público e oficial.
- Juro ter-te na saúde, na doença e na dibinza por todos os dias da minha vida. - Prometeram.
Seguiu-se o preceito tradicional vakwonanwense já sem o peso simbólico doutros eventos. Aqui o ocidente se tinha antecipado, embora tudo quanto tivessem solicitado em carta estivesse literalmente satisfeito. Ao pedido tradicional, Kapesi foi ao lado da mulher, seguindo-se, num mar de alegria contagiante, a cerimónia religiosa de onde Kapesi sairia ao volante do Ferrari decorado ao engodo de Boana.
E cantava-se "kyese vo kakyese ko (alegria ou não)?
- Kyese! - Respondia-se com euforia. E fez-se nova festa!
As mesas estavam caprichosamente marcadas com nomes de aldeias e embalas vakwanano e Vakwombwelo para a alegria dos mais conservadores e petizes que aproveitaram saciar suas sedes com bebidas diversas e geografia de origem.
Fronteira, Kimbele, Damba, Negaji, Zenze, Sasa, Sanza, Kibokolu, Makela, entre outros topónimos nomeavam as mesas que acolheram a familia de Boana. Do outro lado, idosos e infantes viajaram no tempo e na geografia para relerem Kambweyo, Yeyele, Njimba Silili, Ndulu, Katrayo, Kantifla, Cingwali e outros.
E voltou a cantar-se, lado a lado, ensanju e kyese!
NOTA: Publicado pelo Semanário Angolense de 05.09.2015