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Campanha do Agasalho 2009

Sunday, September 03, 2006

O meu Exame da Quarta Classe


Chegou o tão ansiado dia. Eu ia efectuar o meu exame da quarta classe! Na noite anterior quase não dormira nada motivado pelo nervosismo que ele me causava. Fora uma total noite branca! Metido no meu fato azul com um laço em tons alegres, mas primando pela discrição, revia os rios e as linhas de caminho de ferro. Treinava a dicção também, lendo aqui e ali um livro para a minha idade que folheava tentando concentrar-me. Tudo à última hora! Os problemas de matemática provocavam-me respeito, mas não receio. Eu sabia a tabuada e a sua cantilena, importante auxiliar, de trás para a frente e de frente para trás.
Demorara tempo a preparar-me, é certo, mas tinha o meu orgulho e ia mesmo para brilhar! A minha mente fervilhava de entusiasmo, mas de prudência também, acalentando o desejo de encontrar Professores compreensivos, não demasiado exigentes, que me pudessem complicar a vida. Não que lhes tivesse medo ou pensasse no fracasso. Não! Eu não ia fracassar! Estava confiante e, aos olhos dos meus pais, um belo rapaz. Tudo estava preparado para que a minha prestação corresse com um retumbante e estrondoso sucesso. Eu tinha-me preparado para que isso acontecesse, tinha-me preparado para que se tornasse uma evidência flagrante e, até, aplaudida por todos, mesmo aqueles que não davam nada por mim. Mesmo esses, desconhecedores de alguns aspectos muito aguerridos e determinados do que eu era! Sim, falo também desses! Principalmente desses! Eles iriam ver com os olhos que a terra haveria de tragar um dia! Não lhes tinha rancor, desejava só que se pusessem a pau comigo! Eu não estava ali para brincar, compenetrado da enorme importância daquela prestação e do que dela poderia resultar. Em suma, as minhas expectativas eram imensas!
Tinha chegado a hora. Olhei-me ao espelho uma última vez e, embora, contente com a minha aparência de homenzinho, pensei que o traje que estava a observar era destinado mais ao meu casamento. Eu, que pensava nunca casar! Mas, tudo bem. Lá fui.
Cheguei muito cedo à escola. Penso que naquele dia fui o primeiro. Passados longos instantes, que me pareceram séculos, chegaram mais alunos todos abonecados com o melhor que tinham para vestir. A porta foi aberta. O exame decorreria numa escola, mesmo em frente ao Seminário Episcopal da minha querida cidade onde nasci.
A escola encontrava-se em estado decrépito e, através dos inúmeros corredores já gastos, pressentiam-se as paredes em mau estado, prestes a desmoronarem-se. Seguimos o funcionário da escola, compenetrados no nosso papel de Finalistas. A partir dali tudo seria diferente. Era a derradeira prova para todos nós, homenzinhos em corpo de crianças. Homenzinhos sonhadores. Homenzinhos puros e ternos. Homenzinhos não de corpo, mas de alma preparada para vencer. Homenzinhos desconhecedores do mundo, da vida agreste lá fora, mas cientes de que era relevante triunfar em todos as circunstâncias da vida, por vezes, amarga e difícil que era! Enfim, rapazes de fibra, sabedores, lutadores por uma existência melhor, menos sofrida e sentida, às vezes, mesmo dura e inapelável. Sim! Lutadores por uma vida menos impiedosa, onde a felicidade era inexistente, mas que os fazia determinados, aguerridos, vestindo uma capa de persistência e de querer sobre-humanas que mereciam tudo o que lhes pudessem oferecer, sem pedir nada em troca. Era assim que eu via alguns deles e admirava-os! Admirava-os intensamente, apesar de não passar de uma criança como eles!
Sentamo-nos nas carteiras. Por entre risos e uma conversa animada e descontraída, entraram os Professores, percorrendo-nos com um olhar perscrutador e atento, quando em conjunto nos levantamos. A um sinal deles, regressamos às nossas carteiras.
Quando as observei mais atentamente, tremi. Duas das Professoras eram minhas conhecidas e amigas dos meus pais: a D. Gertrudes, minha vizinha do lado e a D.Fagundes, mãe do meu melhor amigo, o Alfredo. Torci o nariz! Elas poderiam estragar o meu bom nome. Poderiam deitar tudo a perder, sendo conhecidas. E se me quisessem cumprimentar com um beijo?- pensei, aflito. Seria o desmoronar de tudo. Seria como se pusessem ali uma bomba-relógio e que rebentasse naquele instante. Oh! Que mal fizera eu a Deus? A D. Gertrudes e a D. Fagundes ali! Pensei em fugir. Desistir de tudo! Pensei até no suicídio ou antes, numa forte dor de barriga, uma vez que ainda era muito novo para morrer!- pensei nisto tudo em catadupa, numa avalanche de ideias más e num pânico desmedido sentidos existentes em mim.
Em tumulto interior, assisti aos dois primeiros exames que correram bem. A seguir era eu. Reconheceram-me! Estou tramado!- pensei para comigo, numa sinceridade de desilusão.
Sentei-me. Eu tinha razão em tudo o que pensara ali, breves instantes antes.
Faziam as perguntas e respondiam elas. Faziam a leitura elas, quando eu gostava tanto de ler. Faziam as contas, quando eu adorava contar. Localizavam os rios e as linhas de caminho de ferro, quando eu sabia-as indicar na ponta da língua.
O meu exame durou menos de cinco minutos, enquanto os outros duraram uma hora de sofrimento e aflição.
Sinceramente. Fiquei ofendido! Fiquei desiludido! Senti uma frustação enorme, indescritível! Quase desatei num pranto enorme de revolta do tamanho do mundo!
E que dizer da classificação final: Aprovado com distinção!
Cheguei a casa num farrapo! Tratei mal toda a gente, eles que não tinham culpa! Jurei que não fizera exame nenhum. Finalmente, meti-me no quarto e chorei. Chorei sem parar! Chorei pelo que me tinham feito e por fazerem o meu exame da quarta classe, que era meu, a elas próprias. Chorei de revolta e de indignação! Senti-me inútil e a morrer de desilusão. Num pranto de lágrimas, adormeci, ansiando por não acordar mais.
Quando a minha mãe chegou, expliquei-lhe o que se tinha passado. Sorriu para mim e agradeceu a Deus o filho que tinha! Reconfortou-me e, quando me perguntou, se ao menos lhes tinha dado um beijo, suspirei de alívio e não respondi.
Ao menos não me haviam pedido um beijo!- pensei, convencido de que não conseguiram que eu passasse por aquela vergonha, passasse por aquela afronta e o descrédito perante todos, o que seria o término da minha existência para sempre!
Foi então que sorri, agradecendo ao destino e a Deus, por aquilo não ter acontecido comigo em plena sala de alunos da minha idade, no meu exame da quarta classe!

Poliedro.


Saturday, September 02, 2006

Contos de Família


O meu Avô Augusto

Parece que o estou a ver, o meu avô. Chamava-se Augusto Prieto. Movimentava-se pela casa como uma sombra importante, imprescindível. Era respeitado por todos, familiares e amigos. Professor idolatrado, competente e atento à plena educação e formação dos seus alunos, nunca agia manifestando as suas mais íntimas efusões de afecto, mas elas estavam lá, sempre presentes. Mostrava autoritarismo, segurança nos seus gestos, mas era doce e terno, camuflando uma imensa simpatia e preocupação nas emoções e nos sentimentos para com todos. Era raro vê-lo rir porque sorria. Evitava situações de grande tumulto ou hilariante, comedido e sério que era. Abraçara o seu mister de professor para se dedicar inteiramente a ele, de alma e coração.
Relembro-o agora, fugazmente. Prendera-se a sua fugidia imagem a mim, com contornos de perpétua adoração e veneração. Vejo-o sempre de cigarro na boca, expelindo densas fumaças com regozijo e satisfação. O seu cinzeiro de prata, que era só seu, repleto de beatas apagadas e, que agora, eu guardo carinhosamente comigo por oferta da minha doce mãe. Tinha dignidade, o meu avô, evidenciada nos actos que tomava, agindo todo o tempo de forma sensata e sóbria. A sua dignidade era respeitada porque respeitava a dignidade dos outros. Vivia preso à família e, ainda hoje, parece-me vê-lo esboçando um ténue sorriso de carinho só para mim e ouvir, pelas mais diversas vozes de outros, louvá-lo e enaltecê-lo pela sua conduta intocável e bela em todos os rostos conhecidos e desconhecidos, na cidade que era sua e que eu habito. Meu avô conquistara os corações das pessoas e defendera valores relevantes ao seu bem-estar e à sua vida intensa em felicidade que jamais poderei ignorar ou esquecer. O meu avô Augusto, para os outros, o Professor Prieto, eternizara a sua obra de amor, dedicação e solidariedade que jamais poderão ser ignorados, imortalizados que serão pelo tempo fora, sem desgaste pela inércia avassaladora de ideologias de vanguarda das novas gerações. Disso, eu tenho a certeza inequívoca, sentida e verdadeira. Meu avô Augusto tinha sempre crianças por perto, mas nunca ria, sorria, amava-as com a sua sinceridade, seriedade, com o seu carácter de figura de bem. Amava-as tão intensamente que se esquecia de si próprio ou do riso que guardava e transparecia dentro de si, só para elas. O meu avô abraçava uma capa transparente e pura, dotada de um fulgor amistoso e afável que todos admiravam, mas eu não sei se compreendiam. Eu compreendia. Eu vivia. Eu vivia nessa capa como todas as crianças que o rodeavam, viviam. Era só para elas e, isso, bastava. As pessoas, as outras pessoas perguntavam e intrigavam-se, quando perguntavam onde estava o riso do meu avô. Ele que só sorria. Eu sorria e ele mostrava-se sério, parecendo indiferente e esboçando um sorriso terno e agradecido pela minha cumplicidade. Um sorriso mais sentido no seu interior, no meu interior. Mas, o sorriso estava ali e eu via-o com uma nitidez e uma alegria imensas. É assim que o revejo. É assim que sinto o meu avô. Guardarei sempre com respeito e amor a imagem do meu avô Augusto, para os outros, Professor Prieto.

Não esqueci as suas sestas. Dava-me cinco tostões e as suas sestas eram as minhas sestas. Só conseguia adormecer com os netos no seu coração. Quando me parecia que ele adormecia saia furtivamente da cama sem fazer ruído, agarrando com muita força os cinco tostões na minha mão, pequena ainda, ao mesmo tempo que escondia a minha recompensa e o meu tesouro, amplamente merecidos. Ele sentia-me abandoná-lo e, então, sorria e adormecia feliz, enternecido pela companhia valiosa que lhe fizera.

O meu avô intrigava-me porque nunca entrava na cozinha. Compreendi só mais tarde a razão: Não queria atrapalhar! Respeitava as empregadas profundamente e elas respeitavam-no também, com alguns indícios de temor associado pelo rosto austero, imponente, exigente, mas respeitador quando se lhes dirigia, o que era raro. Sentiam, então, uma ligeira tremura que passava rapidamente. Conheciam-lhe o bom coração oculto e tinham-no em consideração. Ele parecia ignorá-las, o que não correspondia à realidade.

Ao jantar, quando se sentava à mesa no lugar do topo, mandava acender todas as luzes, exclamando com convicção:

- Acendam todas as luzes, enquanto eu for vivo! Quando morrer, para mim, já não fazem falta! Enquanto estiver aqui quero tudo aceso!

E a claridade das luzes propagava-se por todos os cantos da mesa e ele parecia satisfeito, feliz. Já quando dormia no quarto ou descansava nele a obscuridade total enchia-o plenamente. Queria a penumbra completa, se calhar para lhe facilitar o descanso ou para ter paz absoluta para consigo próprio naquele recanto íntimo, só dele.

Quando o meu avô morreu apagou-se uma chama no meu olhar e no meu coração. Não compreendi bem, mas senti que uma parte dele encarnou em mim. Alguma coisa ficou dele em mim. Não tive um desgosto, mas senti um orgulho desmedido em tê-lo conhecido e ter partilhado do seu afecto, do seu amor e do seu forte carácter que impunha em tudo o que fazia. Amá-lo-ei sempre, nem que seja em sonhos, o meu avô Augusto, para os outros, Senhor Professor Prieto! A sua sombra baila-me cá dentro, no pensamento mais escondido do meu ser, com pena de ele não ser eterno, pois, há certas pessoas que deviam ser eternas, sempre presentes em nós pelos actos nobres, pelo temperamento, pela entrega aos outros. E ele era uma delas! Se ao menos lá no alto Deus ouvisse e concedesse essa dádiva.

Só me apetece dizer ternamente:

- Até sempre, querido Avô!

Poliedro

(O nomes das pessoas foi alterado por razões que facilmente se compreenderão)