Dos seus saltos
Como se tua fosse
a minha vida
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As pessoas passavam por ele chorando, gritando, dizendo que se arrependiam.
Ele conseguiu olhar de soslaio o digital na rua.
15:57. 3 minutos restavam.
Luz, gás, seguro do carro, a escola dos meninos, condomínio, tudo ali, cuidadosamente embrulhado no envelope de papel pardo.
Uma senhora caiu aos seus pés.
- Para onde vamos? Para onde vamos? – Ela gritava apavorada, olhos saltados, lagrimas borrando a maquiagem.
É. O fim do mundo não é mole não.
- Eu vou ao banco! - E desviou cuidadosamente da mulher que ficou ali caída. Contrita, orando, soluçando e chorando.
Ele virou a esquina e entrou na larga avenida. Viu de longe que os gafanhotos vinham aos montes, como chuva, castigo, punição!
Abriu o guarda-chuva. Os insetos caiam sobre ele como granizo fazendo um grande barulho e deixando as ruas de pedras portuguesas escorregadias e tingidas de verde.
Viu os raios que cortavam os céus e atingiam um sujeito aqui, uma madame ali. Tudo incinerado. Só conseguiu pensar numa coisa:
- O plano de saúde!
Parou de súbito e um raio caiu na sua frente. Ele olhou com cara de muxoxo para os céus.
Murmurou enquanto remexia o envelope.
- Era só o que me faltava!
A guia do plano tava ali. Que sorte. Se não pagar no banco, ir a loja do plano é um verdadeiro inferno...
Mal acabou seu pensamento e sob seus pés abriu uma fenda enorme, deu tempo apenas de pular de lado. Pessoas caiam lá dentro e as labaredas lambiam tudo. Ele se protegeu com o guarda-chuva que virou cinzas em segundos. Cheiro de churrasco no ar. Chegou a entrada do banco, empurrou e porta giratória e...
- Constatamos algum objeto de metal. Por favor, posicione-se atrás da faixa amarela. – Disse a voz eletrônica.
O segurança se aproximou com aquele ar despreocupado que lhe é peculiar.
- Celular? Guarda-chuva? Chaves? Moedas?
Esvaziou os bolsos sobre o olhar de suspeição do vigia. Uma moeda caiu ao chão e ele se curvou para pegá-la. Um pequeno meteorito passou por cima dele atingindo a frente do banco. A fachada, a logomarca, a porta giratória não existiam mais. Do segurança sobrou apenas o par de botas no mesmo lugar. Onde já estava há anos. Ele deu de ombros, juntou suas coisas e subiu as escadas apressado.
Não tinha filas. Nem na fila dos idosos. “Um dia de sorte” pensou com um sorriso nos lábios.
- Próximo!
Um branco enorme e uma assepsia de uma clareza de semi-nova.
Ele, o rato de laboratório, passava o bigode por dentro de sua gaiola, em todos os cantos, com aquela inquietação mesquinha dos roedores.
Para cá e para lá.
Os olhos, apenas órbitas pretas, pareciam flutuar, soltos em meio aos pelos de uma brancura inocente. Como os que têm as almas boas e puras. Ou os cínicos.
O outro, o rato de esgoto, apareceu de uma fenda, um buraco, um lapso fedorento daquela alvura toda. Um deslize em toda ordem lógica do lugar.
Tudo tem sua brecha. Todo mundo.
Surgiu do seu jeito encardido, seboso, viscoso, fedorento. De uma cor de terra suja, carregando suas doenças e rejeição. De iguais os ancestrais e a mesma mesquinhez de movimentos.
Roedores parecem àquelas pessoas que comem solitárias em bancos de praças.
Ou entalados nos banquinhos dos fast-foods.
Engoles em pequenas dentadas. Escondendo nas mãos seus alimentos, num misto de vergonha e egoísmo. Depois relegam as suas migalhas aos pombos amaldiçoando o mundo em que animais estúpidos podem voar.
Dois ratos, dois mundos. Que se encaram.
O rato laboratório queria aquela liberdade.
O rato de esgoto queria aquela comida fácil.
O primeiro queria ser marrom, cheirar o medo nas pessoas se deliciar com o horror.
E atacar depois.
O segundo queria ser branquinho, fofo, cheiroso, para poder ser aceito, carinhado.
E atacar depois.
Um e seus vírus de laboratório. Inoculado, testado, experimentado. Mas um na cadeia de produção, cobaia, número apenas um reflexo do que somos.
Outro orgulhoso de todas as pestes ancestrais. Largado, aviltado, desprezado, perseguido. Vivendo em meio ao lixo, restos, excrementos. Ninhada de semelhanças com aqueles que dormem em camas de asilos.
E os olhos brilhavam negros enquanto desejavam. A boca enchendo de água só de pensar na vida do outro. A baba pinga viscosa.
Os olhares se cruzavam, debatiam, confrontavam. Podiam ficar ali secando um ao outro para sempre, por mil anos.
Como a vida, o primeiro precisava ser o segundo. O segundo necessitava ser o primeiro.
Uma liberdade de esgoto? Ou um cárcere farto?
A dúvida é vizinha da inveja na rua das escolhas.
#
Foi a primeira a saber de tudo.
Por um segundo ficou sem fôlego.
Um terço nas mãos e uma oração dita aos céus.
No quarto coroas de flores, velas e as carpideiras.
O quinto dos infernos era onde ele devia estar.
O sexto sentido já tinha lhe avisado disso...
Do sétimo céu a queda nunca cessa.
Ou oito ou oitenta... A vida é assim. A morte mais simples.
A novena mastigada entre os dentes miúdos.
Era a última da mesa.
Os último serão sempre os primeiros.
A saber de tudo.
#
Ele se aproximou, ela levantou os olhos. Bonito ele. Do tipo inacessível.
- Denize?
- Não.
- Seu nome não é Denize?
- Não. – A pausa do charme e ela completa. - Meu nome é Denise com “s”.
Ele fez para ela um olhar de quem estranha. Estranhamente lindo era ele.
- E como pode saber se o Denise que falei é com Z ou com S?
Ela sorriu inteligente.
- Pelo jeito que falou...
- Que jeito?
- O jeito oras... As Denises com “S” são mais soltas, safas, sinceras... E não foi como falou.
- Solteira? - Ousado ele.
- Talvez. - Vermelha ela.
- E as com “z”?
Ela olhos fundo dentro dos olhos pretos dele. Sentiu que fosse cair ali dentro mas, apesar do medo da altura, respondeu com firmeza.
- Zombeteiras...
- “Zacanas”?- Ele murmurou. Ela fingiu não entender.
Ela voltou a arrumar livros. Estavam numa biblioteca.
Tinha anos que ela procurava o amor da sua vida. Mas como não achara, resolveu estudar biblioteconomia que acabou por ocupar seu coração.
Mas era uma mulher, portanto curiosa em sua essência.
- E porque procura a... Denize?
Ele começou a ajudá-la com os livros. Quase por extinto.
- A cartomante disse que é o amor da minha vida.
- Mas ela disse com “z”?
- Não... Jogou as cartas e murmurou... Deni... Ze ou Se.
Ela conhecia a cartomante. Havia passado por lá uma vez. Saiu com a certeza que um homem surgiria, o grande amor de sua vida. César.
- Cesár? – Ela murmurou... Os olhos deles se iluminaram num sorriso.
Os dois se beijaram e a sua volta tudo se tornou um musical.
Um chafariz surgiu no meio da sala, fichas coloridas saiam das gavetas e voavam, uma linda canção de amor, e muitos, mas muitos bailarinos iam e vinham entre as estantes. Os dois flutuavam em passos jamais vistos como Ginger e Fred, Fred e Ginger. Uma coisa linda de se ver.
Ao fim do número Denise encarou seu amor e perguntou.
- Cézar com “z” ou César com “s”?
Anos mais tarde eles aprenderam.
O amor se escreve com qualquer letra que se queira.
#Publicado originariamente no Blog www.zarayland.blogspot.com. Valeu Cezar pela inspiração :)