Meu primeiro post é justamente o meu conto finalista no concurso Contos do Rio de 2008 do jornal O Globo. Bem-vindos ao meu mundo. A Unidos dos Dois na Sala.
— Maria Amália, pelo amor de Deus, o que é isso?!
Ela sabia, há mais de 30 anos, que ele só a chamava pelo nome composto quando a coisa era grave. Ele só usava este tom pra ver se conseguia trazer a luz à cabeça da mulher, que às vezes era leonina ao extremo.
— Maria Amália?
Ela sabia que ele repetiria o nome como se fossem palavras de ordem. Ele sabia que tinha que repetir, era o jogo.
— Vai me ajudar ou vai ficar só olhando, Carlos Alberto!
Casados há mais de 40 anos, já foram amor, paixão, ternura, depois “pai” e “mãe” e hoje, sem os filhos por perto, quase não se chamam mais. Já tem todos os rituais, horários, lugares da casa decorados. Sabem com exatidão quando um entra, quando o outro sai, e assim, passaram a não precisar mais usar seus nomes. Ela surgiu da cozinha carregada de coisas.
— Sabe há quanto tempo eu peço para ir a um desfile de Escola de Samba, Carlos Alberto?
Duas vezes o nome composto usado por ela. A coisa era grave. Ele a ajudou a pousar os sacos pretos de lixo, repletos de bugigangas.
— Ano que vem, ano que vem, ano que vem... Cansei! O Sambódromo só conheço de passar ao lado quando íamos visitar sua mãe em Niterói! Hoje nem isso!
Era sagrado. Uma vez por mês, num domingo, a ida e volta dentro da Parati 99, Laranjeiras ao Barreto. Um dia ela morreu.
— Agora, sabe onde vai ser o desfile?
Ele apenas levantou as sobrancelhas.
— Aqui em casa!
As sobrancelhas agora pareciam querer voar da sua cara.
— Isso mesmo, Carlos Alberto, fiz uma fantasia para cada Escola de Samba. E como você nunca me levou ao desfile, vou desfilar em todas as Escolas. TO-DAS!
E deixou cair o último saco preto. Foi em direção à TV e ligou. Pela telinha os dois viram a animação da platéia, a repórter que perguntava à destaque sobre a emoção, e o comentarista errar uns três ou quatro nomes dos famosos que apareciam. Em cinco minutos começaria o desfile. Ele em pé, petrificado. Ora olhava para ela, ora para a televisão.
— A União Do Rio Bonito está quase na avenida e minha ela é a segunda!
Ela pegou um dos sacos e sumiu para o banheiro. O enredo era “As Maravilhas do Engenho e o doce sabor encantado do néctar do açúcar”. Logo surgiu na sala enrolada em dois bambus e com quilos de açúcar empilhados na cabeça. Tudo amarrado por uma touca transparente. Ela notou o que ele queria dizer pela expressão dele.
— É improviso Carlos Alberto! Improviso! Pesquisei e vi que o caminho era a ala da Cana de Açúcar.
— Mas, um bambu?
— Parecido Carlos Alberto, parecido...
A Escola entrou quase que imediatamente. E lá foi ela cantando o enredo e evoluindo pela sala. E lá foi ela sambando, cantando a plenos pulmões. Ao final dos 80 minutos desabou ao lado do marido, exausta. Ela sorria. Ele a abanava com a toalhinha da mesa de centro.
— Nossa, se eu soubesse que era assim, eu já tinha desfilado antes...
— Quer uma água? Um suco?
— Não posso, tenho que me trocar que a União de Santo Arcanjo já esta na concentração...
O enredo era “Da negritude ao encanto que sucumbe a nova raça digital.”. E surge com rosto pintado de preto. Um monitor de computador vazio fazia um capacete. o marido não conteve o riso.
— Pode rir, Carlos Alberto, mas este ano a gente ganha!
E o desfile teve início. A empolgação parecia maior. A tinta do rosto escorria manchando o vestido. Ao final ela parecia um mecânico no final de um dia. Ela arfava e ainda sorria.
— Tira a mesinha, tá atrapalhando... E água, preciso hidratar...
Ele correu para ajudar. Mesinha fora, água pra dentro. E mais uma troca de roupa. A Mocidade Velha Guarda já estava pra entrar para levar seu “Darth Vader versos o Dragão da Maldade em sonhos de celulóide”. Ela surge de gueixa e espada Jedi, que o neto emprestou. Sambou e pulou como se não houvesse amanhã. De gueixa virou Carlitos, bengala um toco de madeira. De Carlitos se torna Cleópatra, a cobra uma mangueira velha. Ele, tal qual um técnico de futebol, sem abandonar sua área, vez por outra oferece água ou alguma instrução. Após a penúltima escola ela desaba na poltrona.
— Já são mais de seis horas de desfile... Olha o coração, amorzinho...
Neste momento os olhos dela brilharam. Os dois haviam recuperado por um momento uma cumplicidade que ela já não via há muitos carnavais. Ela lembrou por um momento do rapaz que havia lhe abordado no baile pré-carnavalesco do Fluminense. Ele estava ali, em algum lugar daquele rosto enrugado que a olhava com preocupação.
— Só falta uma, meu amor... São seis por dia...
Ela levantou com certo esforço e caminhou até o banheiro arrastando atrás de si o último saco preto. De lá saiu como baiana improvisada, uma bola de futebol na cabeça.
— Baiana, Maria Amália?!
— Baiana é mais fácil. Só fica evoluindo quietinha...
O locutor anuncia a Porto do Império, com “Dois pés do craque surge as maravilhas de um chão de estrelas”. Ela começa a evoluir e tonteia. Ele a segura. Ela o empurra com delicadeza. Evolui mais uma vez e mais uma cambaleada. Ela desaba aos prantos no sofá.
— Me ajuda Bebetinho... Me ajuda... Bebetinho.
Aquele nome o fez remoçar uns 30 anos. Talvez mais. Sem pestanejar, ele despiu a mulher cuidadosamente. E sempre de olho na TV, até para não perder os pontos e atrapalhar a escola, surgiu Carlos Alberto vestido de baiana. Ele começou a evoluir um tanto ou quanto travado. Mas, em segundos, era uma alegria só na avenida. Ele ainda olhou para o sofá e a viu dormindo, sono solto, seios à mostra. Mesmo assim não parou. Cumprimentou os jurados, acenou para o Sambódromo lotado e fez o que tinha que ser feito. Sua única certeza era de que tinha que estar preparado.
Afinal, no dia seguinte teria que enfrentar mais oito horas de avenida