A Pessoa É Para O Que Nasce...

Tem dias que não escrevo.
Nada.
Nem um roteiro, um xiste, uma mentira, um causo.
Tenho andado cheio de idéias para contos, poemas, crônicas, mas elas não fecham, não acabam, não tem fim.
Um pouco como esta história do Gênio, que parece uma auto-referência (não no que se trata de gênio, mas na parte do ombudsman).
A gente escreve e se torna mais crítico. Mais cítrico. Mais ácido.
E tô com a tela do computador lotado de bloco de notas, com rascunhos, linhas e idéias soltas.
Lembrei então das minhas últimas viagens, que resolvi registrar em vídeo cada nova cidade que conhecesse.
Pois bem.
Ficaram aqueles avis, ali soltos no hd, sem pai nem mãe, tadinhos, sem sequencia, roteiro ou história que os amarre, que os faça ter sentido que não em minha cabeça.
Sou um cineasta. E não me dei este título, nem banco de escola me forjou, nem tampouco experimentações... Fui sendo aos poucos, ainda garoto. E quando me vi numa profissão que não me pertencia, fui aos poucos colocado as coisas no lugar.

Quase que voltando as raízes, editei os tal filminhos e vou publicá-los aqui aos cacos.
É mais um crônica, que de uma jeito muito peculiar, vai fazer sentido para cada um de uma forma.




A ficha técnica é curtinha: edição, roteiro, câmera = eu.
Atores: eu, Ceinha e a Cidade de Colônia.
Auxílio Luxuoso: Jorge Drexler e suas "Salvapantallas".

É só clicar e boa viagem!
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O Gênio Ombudsman

O Gênio ombudsman


E o sujeito esfregou a lâmpada.
E de lá de dentro, num show pirotécnico de cores e explosões surgiu o Gênio.
- Meu amo e senhor, seu pedido é uma ordem... Mas olha lá o que vai pedir pra não se arrepender depois, porque não tô aqui pra isso! -
Sim, era um entidade geniosa, sem trocadilhos.
Na verdade já estava meio de saco cheio daquela profissão.
Afinal, há milhares de anos pediam a ele fama, fortuna, poder, a mulher do outro e ele acabou desenvolvendo um senso crítico aguçado do seu próprio trabalho.
Podemos dizer que era um gênio mais para exigente que para zangado.
Começou a ser irônico em resposta a pedidos mais comuns.
- Quero viver cercado de mulheres! – Pediu um, certa vez, antes de virar um escravo eunuco.
- Quero ser a imagem de um homem poderoso e temido! – e o cara virou um sósia de Bin Laden numa caverna no Afeganistão.
- Quer pedir? Pede direito! – Repetia genial em seu charmoso mau-humor.
- Ué? Mas não eram três pedidos? – perguntou um amo certa vez.
- É a crise! A globalização, a Internet, novos tempos... E vamos com isso!
O cmarada ainda estava intrigado com a saída do gênio da lâmpada. Guardava uma expressão de Monalisa fitando a aparição.
O Gênio fechou a cara.
- “Bora” rapaz! Desembucha!
O novo amo coçou a cabeça depois deu de ombros.
- Eu não quero é nada... – Virou de costas, jogou a lâmpada por cima do ombro e saiu caminhando.
O queixo do Gênio pendeu na vertical.
- Pêra lá rapá que isso não é assim não! – Deu uma voadinha rápida, deixando um rastro de fumaça mágica atrás de si, e ficou frente a frente com o sujeito mais uma vez.
- Que foi? – perguntou o amo ingrato sem paciência.
- Eu que pergunto o que foi... Você pode ter o que quiser e não quer nada?
- Ah, sei lá cara... Não sei o que pedir...
- Mulheres?
- Putz! Já tive cinco casamentos fora as amantes... Não, tô legal de mulher!
- Dinheiro?!
- As mulheres levaram o pouco que eu tinha... Se eu tiver mais, elas voltam e levam tudo... Não, tô fora.
- Poder? Todo mundo quer poder!
- Eu nãoooo! Alguém sempre quer matar o poderoso, fora o olho grande, os falsos amigos... Passo!
O sujeito saiu caminhando e o Gênio foi atrás.
- Ma-ma-mas...
- Não tem mas nem meio mas! Não quero, não posso, não devo...
- Não faz isso comigo.
E assim se passaram dias. Como dever do ofício o Gênio ficava ali, de cima para abaixo acompanhando o cara.
No banho, nas compras, na pelada de quinta, um problemão para entrar em bancos. Geralmente ele entrava e o Gênio ficava ali, preso na porta giratória e se estressando com o segurança.
- Já te disse que não tenho celular amigo! - argumentava.
- Tem que voltar atrás da linha amarela cidadão... - respondia o falso autoridade.
Vez por outra o gênio puxava assunto e o amo ignorava. Como se ele não existisse ou fosse só fruto da sua imaginação.
Aos comentários dos amigos sobre aquela alegoria flutuante a seu lado ele fazia graça:
- É só um encosto, um exú brabo que uma ex-mulher mandou grudar em mim... Apenas, ignore!
Hoje os dois podem ser visto em várias lugares diferentes da cidade.
Você mesmo já deve ter visto várias vezes.
Ou vai dizer que você nunca viu um gênio sem amo atrás de um homem sem desejos?
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Vida


Ele parou atrás dela. Ficou por um minuto olhando para sua nuca, o desenho do ombro, os cabelos curtinhos.

Ela se virou e o encarou. Ele desviou os olhos. Ela se voltou para frente.

A fila cresceu e se perdeu virando a esquina. Ele tomou coragem:

- Não anda, né?

- O que?

- A fila...

- É.

Pronto. Ele já tinha dado o primeiro passo. Agora só se ela...

- Mas deve andar. Tô aqui faz tempo...

Ele sorriu confiante. Agora era a vez dele.

- A vida é uma fila...

- Como?

- Minha avó dizia isso.

- Humm...

- Nunca entendi muito isso...

- Ah, deve ser no sentido da espera, das buscas, oportunidades...

Ele ficou confuso. Ela orgulhosa com a própria inteligência.

O silêncio não durou quinze minutos.

- Você segura meu lugar aqui um instante? Já volto.

Ela fez que sim com a cabeça e ele dobrou a esquina acompanhando a fila. Voltou carregando laranjas.

- Espero que goste... Trouxe pra gente.

Ela sorriu agradecida. Logo só havia bagaços dentro do saco plástico.

- Agora é sua vez. Já volto...

E ela sumiu acompanhando a fila. Logo voltou com duas garrafinha de água.

- Uma é pra você... – Ele sorriu agradecido. Ela bebeu em goles miúdos.

- Será que pega mal se sentarmos?

- Onde?

- Aqui mesmo... No chão...

Ele titubeou e ela se jogou ao chão como um desagravo. Puxou ele pelo braço que sentou meio sem jeito. Ficaram ali olhando a fila. Trocaram idéias, charmes e por fim beijos. Doces como são os primeiros. Intensos como se fossem os últimos.

A noite chegou e os dois dormiram ali juntinhos. Aos poucos não era mais uma fila, era um mundo deles, rodando numa órbita particular.

Na manhã seguinte a fome chegou e ele saiu e voltou com frutas. Ele teve sede e ela voltou com mais água. Nem falavam com as outras pessoas na fila e apenas desobedeciam a ordem, às vezes mudando de lugar, às vezes ficando lado a lado.

Dias e noites se passaram e a fila se tornou um lar, um abrigo, um refúgio.

- Estou grávida.

Ele sorriu. Era com certeza o segundo melhor dia da vida dele.

Depois tiveram mais três filhos. Logo cresceram, e algumas pessoas reclamaram na fila. Não era normal de uma hora para outra, aqueles furas filas.

E as crianças cresceram e se foram.

- Vou compra água...

- Tem água aqui...

- Você sempre faz isso.

- O que?

- Nunca quer me dar um espaço só meu.

- Quer passar a frente?

- Não, só quero espaço.

Ficaram em silêncio quase dez dias.

Apenas comentários sobre o tempo, uma carta de um dos filhos e sobre a fila.

Um dia ele dormiu. Ao acordar onde ela deveria estar apenas um bilhete, escrito:“Sua avó tinha razão. Só que a fila anda.”
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Vingança na carne

Não gostava de ir a supermercados. Nunca gostou.
Mas todo sábado estava lá pontualmente no zig e zag entre gôndulas, produtos e ofertas.
Começou contrariado, mas mesmo mudando duas vezes de casamento, não mudava os hábitos.
A única diferença, vez por outra, eram os estabelecimentos.
Aos poucos, aquilo acabou se tornando uma distração.
A nova mulher havia anotado tudo, somado tudo, e hoje era o dia de inauguração de um novo super, com muitas ofertas.
“A Festa de Inauguração é nossa, mas quem ganha o presente é você!”
O locutor berrava pelos alto-falantes como se estes não existissem.
O local estava cheio, vez por outra, no momento de uma das ofertas da hora, ficava intransitável.
“Arroz Agulhinha Sensação, de cinco e noventa baixou para quatro e trinta. Pacotão de cinco quilos.” E o corredor do arroz virava um formigueiro, que consumia os pacotes em segundos.
A nova mulher se atirava no meio da multidão, engolida pela horda.
Ele ficava observando alerta. Mas toda vez era o mesmo.
Ela surgia do meio do mar de gente, como uma sereia, sacudindo o saco de arroz como se fosse um troféu.
E seguiam.
Ele aproveitava para colocar os pensamentos em dia.
E foi em meio à fila da carne que aconteceu.
O locutor tinha acabado de anunciar que filé mignon havia descido a preços de fácil digestão.
Combinaram. Ele enfrentava a fila enquanto a nova mulher comprava os artigos de limpeza. Uma das únicas seções que não o seduziam muito. Não conseguia entender aquela obsessão feminina pelo limpo.
Mas também, os pratos que colocava na pia sujos, sempre encontrava limpos depois. Ou seja: a ele aquilo não atingia.
A fila cresceu rapidamente. Ele pensava em sua sorte de estar perto da seção exatamente na hora do anúncio. Era, no máximo, um dos dez primeiros.
- Mourão? – Engraçado, já havia ouvido aquele nome antes. Mas ali, dentro de seus pensamentos estava, ali permaneceu...
- Ô Mourão! – Viajou para Londrina, o colégio de Padres, mais de 30 anos. Era com ele. Virou e encarou a fila. Um sujeito rotundo e espaçoso acenava pra ele.
- Porra, eu sabia que era você camarada! – Mais de 20 carrinhos separavam os dois na fila. Porém, sem a menor cerimônia o gordo se aproximou dele.
- Não lembra mais do amigo Periquito? – Veio como um estalo. Periquito o bom de bola, de zona, de droga, de mulher... Periquito um mito. Mas, não cabia aquele corpanzil que terminava numa cabeça careca e de gorda papada na imagem que ele guardava na memória.
- Porra Mourão, nem faz esta cara que me arrasa... Mudei muito foi?
Não. Toda mudança pressupõe algum resquício, algo quase como uma referência, mas ali naquele rosto não havia nada. Era outra pessoa estranha a ele. Sorriu apenas.
Se bem que nunca foram conhecidos. Periquito da turma do fundão da sala de aula. Ele sentava nas primeiras fileiras. Um misto de bom-mocismo com a miopia que demorou a descobrir.
E no fundo no fundo, Periquito sempre guardou distância dele, sacaneando-o por tudo e na frente de todos. A cada pergunta, a cada dúvida, a cada resposta.
Na verdade mesmo, Periquito sempre tripudiou dele. Ou era uma moca, um “barata voa” com os livros, um futebol com a mochila nova. Periquito não prestava.
Fechou a cara e o sorriso. Olhou Periquito no fundo dos olhos.
- Amigão, deve ter me confundido. – E aproveitando que a fila andava se afastou um pouco. Periquito veio atrás.
- Que isso Mourão, que papo é esse... – Algumas pessoas na fila protestaram.
“O cara não te conhece!” “Olha a fila!” “Só no Brasil mesmo...”
Ele olhava para frente e nem encarava mais Periquito.
- Acho melhor voltar para seu lugar...
Periquito olhou o final da fila. Depois olhou para o filé mignon que a cada novo pedido sumia dos ganchos na geladeira. Periquito lançou um olhar de súplica para ele e sussurrou.
- Mourão meu velho, se eu não chegar com esta carninha em casa, minha mulher me mata...
O mito caiu. De um filé mignon dependia a sobrevivência do mais valente da sua juventude. Ele estufou o peito e encarou Periquito. Tinha um "foda-se" na ponta da lingua. Mas antes de falar ouviu o açougueiro gritar: “Próximo!”.
Deu de ombros e empurrou o carrinho na direção do balcão.
- O senhor me dá dez quilos por favor! – Disse alto bastante para ter certeza de ser ouvido. – Tudo em bife! - Nem em 6 meses comeria tanta carne. Mas era o suficiente para que a carne não desse para todos na fila. No máximo mais 10 carrinhos.
Pelo reflexo do vidro ainda viu Periquito se afastar cabisbaixo. Nem para a fila ele voltou, sumindo entre a massa de consumidores que brigavam na promoção do óleo de soja.
E enquanto pegava os vários embrulhos de carne pensava em como era a vingança. Que às vezes se realiza na fila da carne.
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Existe Vida após a Morte.

Eu na Praça Mauá, Dia de Finados, por volta de 3 e pouca da manhã. O que Eu fazia por lá? Não vem ao caso. Só sei o que o relato que você vai ler, espero, agora aconteceu de fato. A Boite estava vazia. Algumas prostitutas dançavam como zumbis na pista, em meio as luzinhas que refletiam do globo de prata pendurado no teto. Zumbi´s in The Sky of diamonds, escreveria Lennon. Enquanto via o rebolado de uma velha gorda de short de lycra ínfimo, pensava na morte da bezerra bebericando um autêntico 12 anos falsificado. Eu e meu fígado havíamos brigado faz tempo.

(MORTE)
- Pediu um doze anos aqui? De matar, hein?

E lá estava ela na minha frente, manta preta, capuz, foice e sem um rosto definido. A morte em carne e osso. Não tive nem como encará-la. Fiquei pensando “Chegou minha hora.” E esperando aquele filminho com toda nossa vida passar em minha frente, ou uma luz brilhante, ou ver São Pedro me perguntando o nome. Nada.

(MORTE)
- Não, não é sua hora. Fica tranqüilo...

“Será que ela consegue ler pensamentos?” – Pensei.

(MORTE)
- Sim, consigo.

(EU)
- Nossa, isso é tão invasivo!

(MORTE)
- Ok, ok, eu paro.

“Será que devo acreditar na morte?” Me indaguei.

(MORTE)
- Claro amigo. É a única certeza da vida...

(EU)
- Porra! Você falou que ia parar!

(MORTE)
- Juro que parei! – Disse gargalhando. – Se eu não parar quero que um raio caia na minha cabeça e me... Mate! – Riu até ficar vermelha. Não sei como sei, mas ela ficou vermelha.

(EU)
- Se você não veio me buscar, o que é isso? Quer me matar de susto?!

(MORTE)
- Não, ainda não. E nem é de susto que você vai morrer.

Apesar de seu rosto não ter olhos nem boca, ela me olhou de canto de olho, com um sorriso maroto.

Mesmo curioso, nem quis saber do dia, hora e local. Afinal, quem morre são os outros. E a gente só fica sabendo das notícias.

A Morte pediu um Campari e uma porção de queijo provolone.

(GARÇOM)
- Não tem, só tem queijo prato!

(MORTE)
- Traz prato mesmo... Não, faz o seguinte: manda ver nos acepipes! Um monte que a fome é negra!

Antes do garçom ir embora não resisti.

(EU)
- Amigo, você não fica impressionado de ver a Morte assim na sua frente?

(GARÇOM)
- A gente vê de tudo aqui na Praça Mauá... Fico mais impressionado de você conseguir tomar esse 12 anos. Mais alguma coisa?

Abanei a cabeça negativamente enquanto empurrava meu copo para longe de mim.

Resolvi acompanhar a Morte nos Camparis. Quatro doses e petiscos depois, a morte já sacudia o esqueleto pelo salão, bolinando as putas e fazendo o lugar mais animado. Ela me olhou da pista de dança e veio em minha direção rodopiando a foice.

(MORTE)
- Que cara mais desanimada é essa amigão, alguém... morreu?

Ela ficou me encarando por um segundo e depois caiu na gargalhada. Tive que rir junto.

(EU)
- Realmente não sei como consegue.

(MORTE)
- Consigo o que? – Ela não parava de dançar. Os ossos rangiam alto.

(EU)
- Com este seu carma, função... Sei lá, trabalho... Era pra você ser um pouco mais... Digamos... Reservada? Talvez?

(MORTE)
- Tem que pensar assim rapaz: a vida é curta! – Mais uma gargalhada. Eu tomei mais um gole daquele Campari sinistro pensando: "O que não nos mata..."

(MORTE)
- Nos fortalece! Este é o clima! Este é o clima!

Foi quando começou a tocar o Zeca:

“Deixa a vida me levar...”

(MORTE)
- Vida leva eu! Adoro esta música! – Completou a Morte me puxando pelo braço para pista de dança. E lá fui eu, sambando com a Morte, afinal, sua euforia, sua felicidade e sua vontade de viver eram contagiantes. Logo uma meia dúzia de putas velhas balançavam pelo salão com a gente. Cada um de nós tirava uma das moças pelos braços e bailávamos como se não houvesse amanhã. Depois veio a Macarena, o Créu e por último algumas canções do Waldick. De repente alguém sugeriu um Karaokê, e todos tiveram sua vez ao microfone. Eu cantei alguma coisa do Raul, enquanto a Morte fazia air guitar com sua foice. Mas a última coisa que me lembro é daquela figura de preto, com o olhar perdido no horizonte, cantando É Doce Morrer no Mar, imitando o Caymi a perfeição. Tenho que confessar que me levou as lágrimas.

A Morte me abraçou carinhosamente.

(MORTE)
- Ô rapaz, que isso?! A vida é bela!

(EU)
- É que esta música me mata...

(MORTE)
- Não é disso que você vai não meu filho... Pode ficar despreocupado.

Ela então sorriu, ou acho que sorriu, ou acho que a vi sorrindo. Tudo então é confuso.

Lembro do apito do Navio, do Cais do porto, do banco de praça e das pessoas chegando para trabalhar na Praça Mauá. Acordei.

Da Morte, apenas um bilhete em meu bolso:

“Quando você menos esperar, a gente se esbarra!”. Não agüentei e tive que rir.

No final das contas é o de sempre. A morte é muito engraçada.
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Do Frio e Branco Azulejo


Sentiu seu corpo rodopiar. Bateu uma, duas, talvez três vezes contra a parede molhada. Sua perna assumiu uma posição incompatível com o corpo. Ouviu o barulho claro de osso quebrando. Nunca havia quebrado nada na vida, mas sabia que não podia ser outro ruído. Caiu.

- Ai! – Um grito curto, abafado, pra ninguém. Se ela estivesse distraída, como a pouco pelo sabonete, nem ela mesma teria escutado.

Um filete de sangue corria para o ralo levado pela água morna que vinha do chuveiro.

Ela gritou. Muito. Várias vezes. Nada.

O registro do chuveiro começava a sumir em meio ao vapor da água. Ela esticou a mão como se tentasse alcançar dali debaixo. Nada.

Via apenas suas mãos em meio a nuvem morna. Reparou nas pintas, nas rugas, que surgiam aos montes, misturando-se com as rugas que agora por causa da água e enrugavam também a palma da mão.

Ficou parada por um momento reparando o próprio corpo, os seios flácidos, a barriga branca, os pelos pubianos fartos e agora brancos, quase que totalmente.

A dor já se afastava dela e ela só se sentia dormente. Cada vez mais.

Ela tentou se virar para abrir a porta de alumínio, mas seu próprio corpo inerte impedia.

Por um instante se lembrou da sua pequena banheirinha, da mãe, dos objetos inalcançáveis e da segurança daqueles banhos à tarde.

Era como se de um momento para o outro sua mãe fosse surgir em meio ao vapor, para enrolá-la na toalha cheirando a talco e alfazema.

Até a velha canção da hora do banho veio à tona.

- Os olhos da minha filhinha, são pretos que nem carvão... – ela se pegou cantando. Sua voz era tão parecida com de sua mãe, e agora sua filha tinha o mesmo tom.

Olhou para cima encarando as gotas que caiam em sua direção e pensou em chuva. Sempre adorou chuva. Com o passar do tempo, e das neuras do marido, passou a temê-la. Nunca soube ao certo porquê. Apareciam algumas nuvens no horizonte e eles se apressavam a fechar portas, janelas e aguardar como sentinelas.

Lembrou da chuva que a pegou desprevenida no Passeio, em frente à Mesbla, do beijo roubado subindo a Rua das Marrecas, do hotel com cheiro de água sanitária, da gravidez inesperada. Talvez tudo tenha sido tão rápido porque ele também usava Alfazema.

O marido nunca desconfiou de nada, mas nunca tratou a filha mais nova como tratava os meninos mais velhos. Ela se fez acreditar que era por ser mulher e o marido sempre quis ter filhos, machos, varões.

Estes se perderam no mundo mas a filha ficou a seu lado.

Insistia em que ela não estava mais na idade de morar sozinha. Filhos não sabem das coisas.

Ela podia sentir ali, em meio ao vapor o cheiro, o gosto e a vontade do beijo.

Algo invadiu suas narinas, suor e Alfazema tomavam o Box. O odor veio forte, denso, quente.

Sentiu no corpo algo que não sentia há anos e ficou mais confortável. A dor ia longe.

Antes de fechar seus olhos e se preparar para sumir na escuridão, ainda conseguiu ouvir ao longe.

- Mãe?

Não sabia se era sua filha, sua mãe ou se ela mesmo se confortando.

Mas sentiu-se protegida. Mesmo ali, no frio e úmido azulejo.
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A Fábula do Pé Sujo.


Este conto foi escrito em Dezembro de 1999, para meu amigo Ricardo Siciliano como um presente para sua filhinha Carol. Como sou pscicótico, fiz uns ajustes finos e aí está. :)


Madrugada de Natal, entre 03:15 e 05:17 da manhã. As ruas desertas e ninguém, além deste que escreve e aquela figura, sentados num bar fedorento da Rua Prado Júnior. Ninguém mais acreditaria. Nem eu mesmo acreditaria em mim.
Uma garoa fina pairava no ar deixando no chão aquelas poças e o aspecto reluzente de algo que acabou de ser limpo. Mas para limpar aquele ambiente, teria que ser muito mais que água benta.
Putas, gigolôs, pequenos meliantes, bêbados, iam e vinham sem parecer notar aquele coelho sentado a minha frente. Ou não acreditavam em seus olhos ou não queriam mais acreditar em coelhinhos... Ele cantarolava baixinho “coelhinho se eu fosse como tú...” Sorriu. Depois o orelhudo sorveu o seu copo de chope de uma golada só.
(Eu)
- Vai com calma cara...
Tinha encontrado com o Coelhinho da Páscoa numa das boates de strip da própria Prado Júnior. O que eu fazia lá em plena noite de Natal não vem ao caso. Mas o fato era que alguns seguranças queriam enchê-lo de porrada por causa de uma conta que ele se recusava a pagar. Tentei interferir. Apanhamos os dois. Ainda me doía a nuca e um lado das costas. Os três chopes fizeram a dor ir embora rapidamente.
(Coelhinho)
- Calma é o caralho!
(Eu)
- Sem Stress...
(Coelhinho)
- Tá pensando que é fácil? Tens filhos? Uma trepadinha só e vem eles aos montes! Um saco...
(Eu)
- Ei, o que que há velhinho? – Falei imitando um coelho famoso.
(Coelhinho)
– E não vem me falar neste outro “filhodasputa” que faz sucesso e depois esquece da família. Ta lá nos States, com a bunda cheia de... Carrots!
Ele se aproxima de mim e abaixa aquela longa orelha encardida como se tentasse não ser ouvido pelas outras mesas.
(Coelhinho)
– Minha ex mulher me deixou por causa dele... Um dia peguei os dois na cama. Depois ela veio me dizer “agora sei porque chamam seu primo de Pernalonga...” Mulher é tudo galinha! Cachorra! Vaca!
(Eu)
- Coelha!
Um vulto rotundo se aproxima da mesa. Sua roupa vermelha tem rasgos e esta suja de fuligem. A barba, outrora branca, agora está cinza e macilenta. Ele bate na própria roupa, o pó sobe. O bom velhinho puxa uma cadeira e se joga pesadamente sobre ela. Faz sinal para o garçom.
(Papai Noel)
– Um chope e um Dreyer...
(Coelhinho)
– Fala Santa!
(Papai Noel)
– Me respeita rapaz! Olha minhas barbas brancas!
(Eu)
– Cinzas...
(Coelhinho)
– Porra, Santa Klaus é teu nome!
(Papai Noel)
– Desculpa! É que depois de aturar tantas crianças malas, fico até sem rumo.
(Eu)
- Crianças malas? Vocês dois são inacreditáveis...
(Coelhinho)
– Todo mundo diz isso...
(Eu)
– Não é isso! Vocês estão muito... Muito... Amargurados. Calma lá, vocês são ícones... – Disse com a voz pastosa. Papai Noel me olhou atravessado.
(Papai Noel)
– Meu filho – Coloca a mão gorda sobre mim – És fresco?
O Coelhinho solta uma gargalhada segurando o saco. Na verdade um saquinho. Ele engasga. Seus olhos vermelhos ficam injetados por um momento. Fica sem ar e seu pelo branco começa a ficar vermelho. O bom velhinho dá-lhe um tapa nas costas. Um naco de cenoura aperitivo voa e cai melado sobre o meu colo.
(Eu)
– Eca...
(Coelhinho)
– Foi mal aê... – diz sorrindo meio sem graça.
Papai Noel me encara de novo.
(Papai Noel)
– Vai vir com aquele papo de “espírito de natal”, “nascimento do menino jesus”, “paz na terra”... O caralho! Tudo é grana!
O garçom serve o Dreyer e ele toma de um gole só. Um fio marrom da bebida escorre pela sua barba. Ele limpa a boca com as costas da mão. O bom velhinho aperta os olhos e me encara com um olhar maroto. Vê claramente que não estou convencido. Ele se aproxima de mim, rosto bem próximo, sinto o cheiro de fuligem, roupa velha, suor e Dreyer, tudo junto.
(Papai Noel)
– Ou o que você acha que a criançada falaria de mim se eu não entregasse um presente este Natal? Filho da Puta seria pouco!
O coelho concordava com a cabeça.
(Eu)
– Então qual a recompensa final? O que vocês ganham com tudo isso?
(Coelhinho)
– Você não gostaria de saber.
(Eu)
– Diz... Pode dizer.
(Coelhinho)
– Você não agüentaria a verdade... – Disse ele imitando Jack Nicholson.
Minha vontade foi dar um tapão no pé da orelha do roedor. As chances de errar eram mínimas. Mantive o fair play.
(Eu)
– Diz logo cacete!
Papai Noel ficou de pé. Segurou sua blusa com as duas mãos e como um tarado exibicionista abriu suas vestes, mostrando a tatuagem enrugada entre as banhas brancas. E eu vi. Tudo tinha ficado claro. Isso explicava tanta coisa. Papai Noel balbuciou.
(Papai Noel)
– Merchadising...
Lá estava ele. O símbolo da Nike. Distorcido pelas banhas do velhinho bebum.
(Papai Noel)
– Muito antes do Ronaldinho eles me procuraram. E não é só... Mostra a ele.
O Coelhinho ficou meio constrangido e se pôs de pé também. Ele virou de costas pra mim abanando o rabinho em forma de pompom.
(Eu)
– Qualé mermão... Acho que ainda não bebi bastante para tal aventura...
(Coelhinho)
– Calma rapaz... Relaxa e olha firme... Que só vou mostrar uma vez.
E levantando o pompom, eu vi outra vez. Ali perto da cloaca um “m”. O McDonald’s havia passado por ali.
(Eu)
– Jesus!
(Coelhinho)
– Ele tem contrato com a Microsoft...
(Papai Noel)
– Está é a verdade meu filho. – Disse colocando as mãos nos meus ombros. Tomei o Chope num gole só. Tudo rodava ao meu redor. O coelhinho e o velhinho voltaram a se sentar. Papai Noel fechava seu roupão e o Coelhinho me olhava sacana.
(Coelhinho)
– Acho que você esta precisando de algo forte. Ô amigão! - O coelhinho acenou para o garçom. – Traz um doze anos!
A primeira garrafa sumiu tão rápido quanto a segunda. De futebol, falamos de mulher e na terceira rodada resolvíamos os problemas do mundo. Eles riam das minhas tiradas e davam tapinhas nas minhas costas repetindo: Cara, você não existe! Logo eu? Logo quem diz isso?
Acordei com a água suja que lavava o chão do bar lambendo os meus pés. O sol de Copacabana espantava as putas, os gigolôs, os mendigos e vampiros. Olhei em volta e meus companheiros de noitada haviam sumido na madrugada do Rio. Teria sido um delírio, uma alucinação, um delirium tremis?
Não. Havia uma prova irrefutável. As duas lendas haviam deixado para traz uma senhora conta. Uma fábula!
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A Lápide

Elias surgia na sala um pouco depois do jantar. Marlene assistia TV.
- Marlene, veja se está bem assim...
- Humhum...
- Tá prestando atenção Marlene?
- Humhum...
- Aqui jaz um homem que teve sonhos e em sua vida fez de tudo para realizá-los. – Falou em tom solene. Ficou por uns segundos aguardando resposta. Como nada veio.
- E então?
- Como?
- Eu bem que perguntei se você estava prestando atenção. Vou repetir...
- Não... Não precisa. Eu entendi. Queria ver se era isso mesmo... Posso voltar para minha novela?
- Ah, sim.

Ele sumiu para o quarto do casal. Da sala ela ouvia ele repetir em voz alta a frase algumas vezes em tons diferentes. Ela sabia que aquele diálogo não havia terminado. Elias não largava as idéias de forma fácil.
Até hoje tinham um aparelho de fazer abdominais por conta disso. As facas Ginsu, o medidor de pressão, o Abflex. E o terreno em Inhoaíba, hoje tomado por posseiros?
- Isso aqui vai crescer e faremos fortuna. – Disse Elias a época.

Sempre tinha em mãos um negócio de ocasião... Mas logo hoje?
Era o último capítulo de Vidas em Chamas. Em breve perderia as melhores companhias dos últimos anos. Mais dois blocos e ela seria abandonada para sempre pelo mocinho, pela mocinha, pela vilã...
- Sempre desconfiei dela. – Pensou.
E as cenas do casamento? Ela já havia visto muitas das fotos nas revistas e nos jornais. Como ela ia fazer a partir de segunda? Quem ela iria ter que encontrar e conviver.
- Novela sempre começa sem graça – Disse sua melhor amiga no salão.

Marlene já conhecia a rotina. Identificar suas novas companhias, de quem iria gostar, quem não iria com a cara, quando rir, quando chorar, quando se emocionar. Tudo mastigadinho, sem muito esforço. Ela sabia no fundo até que depois de um tempo esqueceria estes e sua vida se tornaria a vida daqueles outros.
Mas, fazer o que? Pra ela aquelas despedidas eram sempre muito difíceis.
- Olha só, mudei um pouco.
- Elias... Querido... Não pode esperar o intervalo?
- É rapidinho amor.
- O Inspetor Paulo já descobriu que a Fatinha é a assassina...
- Coisa rápida, um minuto...
- Estão em cima da ponte... Ela tá cercada...
- “Dorme aqui um homem que teve sonhos e em sua vida fez de tudo para realizá-los.” – Elias vaticinou com voz impostada.
- Ta ótimo. Só isso? Dá licença que você está na frente da TV...

Ele fechou a cara. Começou a gesticular e caminhar de um lado para o outro.
- Poxa Marlene, depois você reclama, que faço as coisas sem você, que você não participa dos meus projetos, que por isso não dão certo... To aqui escrevendo o que pode ser minha lápide, o registro da minha existência na terra e você nem tchuns. – E foi blá, blá, blá de encher a sala.

A vilã já havia despencado da ponte. Numa morte digna das vilãs. E merecida isso sim. E ela perdeu, numa das idas e vindas de Elias. 200 capítulos, todos assistidos, lidos antes através de resumo, esperados como uma missa. E agora? Como se concentrar no casamento com aquela falação toda. Logo, logo os noivos iriam se despedir dela, numa alegre morte via satélite. E voltariam a ser de carne osso, na sua fria e imprevisível vida real.
Marlene repentinamente se sentiu possuída de uma raiva histérica, que foi crescendo, crescendo, até se tornar uma calma inabalável.
Marlene sorriu para Elias e olhou dentro dos seus olhos de um jeito incomum.
Falou num tom frio, árido e desconhecido até então por ele.
- E por que não: aqui jaz Elias, o homem que fez a mulher perder o último capítulo da sua novela?

Elias sentiu um arrepio percorrer seu corpo.
- E deste projeto querido, vou participar com prazer...
Elias instintivamente deu um passo e saiu da frente da TV. Marlene foi rapidamente capturada pelo brilho telinha. Hipnotizada pelo casório voltou a seu rosto de sempre.
Ele entendeu o quanto a novela era importante para a vida mulher. E não era ele, logo ele, que queria apressar as coisas.
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A Virada do Ano

E lá ia o Almeida caminhando de um lado para o outro.
A taça de champanhe tremia em suas mãos e ele via tudo através de uma neblina fina.
A batida de amendoim havia descido melhor que aquela Espumante. O que tinha demais a velha Cidra? A mulher dizia que não. Na posição em que eles estavam uma Cereser pegava mal.
Quantos anos-novos foram regados a Cereser? Quantos? Uns 30.
Depois veio a vendinha, que virou padaria, uma filial, duas, três. E Copacabana, Prado Júnior, cobertura e todos novos amigos que alguns trocados trazem.
Não foi assim tão rápido, mas pra ele foi.
A cabeça girava. Almeida olhou para a varanda e não teve coragem de se aproximar. Afinal, metade das pessoas que se acotovelavam para ver o mar e os fogos, ele não conhecia dos tempos da Cereser. Era gente que veio junto com a Espumante, com a Prado Júnior, com a cobertura. Agora, apinhada. Copacabana se arreganhava como as moças que lá ganham a vida, mais bela e branca do que nunca. Queria ver amanhã, só os bêbados, flores e promessas espalhadas pela areias.
Já ia dar meia-noite e a euforia tomava conta de todos.
A Espumante não conseguia tirar o cheiro da batida de amendoim dos bigodes de Almeida. Mais um gole longo, outro, outro. Não era só virada de ano, era virada de século. O bug do milênio, o fim dos tempos, Nostradamus, uma odisséia no espaço.
Almeida encarou o seu relógio de pulso e viu os últimos 5 segundos do ano passarem a ponteiradas.
5.
Adeus ano velho...
4.
Feliz ano novo...
3
Que tudo se realize...
2
No ano que vai nascer...
1
Muito dinheiro no bolso...
0
- EU SOU GAY!

Os fogos explodiam lá fora em meio ao silêncio absoluto na varanda do apartamento. Todos em uma coreografia olharam para Almeida. Mulher, filhos, netos, amigos Cereser e Amigos Espumantes olharam para Almeida.
- Rei de que Almeida? Rei de que? – disse um.
- Não é Rei, é gay! – Outra voz.
- Gay é você! – Um terceiro.
- Não, gay é o Almeida. – Sempre tem um espirituoso.

Sem notar Almeida empunhava o microfone do Karaokê.
Nem Almeida acreditou no que havia dito.
Quer dizer, acreditar ele acreditava, pois sabia disso fazia tempo, mas não acreditava que havia dito. E compelido de uma força maior que ele repetiu.
- Eu sou gay!

O cunhado se aproximou.
- Porra Almeida! Falei pra não abusar da batida... – O Cunhado tenta tirar o microfone das mãos de Almeida.

Ele puxa com força. Todos fazem um “óHHHHHH”.
- Gaaaaaay! – Repete Almeida colado a boca de ferro, com direito a delay.
O cunhado se atraca com Almeida tentando pegar o microfone.

Vez por outra Almeida aproxima o microfone da boca e afirma: GAY! Os fogos ainda pipocam no ar como uma celebração a revelação de Almeida.
Todos correm para apartar. Raimundo, um padeiro novato, nos seus 30 anos, entra na briga aos berros.
- Solta ele Pão-doce! Solta ele!

Todos se afastam intrigados. Raimundo pega Almeida gentilmente em seu colo e o coloca de pé. Ajeita sua roupa carinhosamente, dando tapinhas pelo seu corpo.

- Pão doce? – disse um.
- O que doce? – Outra voz.
- Tampa os ouvidos da criança! – Uma terceira, maldosa.

Almeida encarou a todos, mulher, filhos, parentes, cereseres, espumantes... Olhou Raimundo nos olhos e um contraluz dourado surgiu, vindo de um dos fogos da praia, emoldurando o rosto de seu parceiro. Raimundo sorriu cúmplice para seu Pão Doce.
- Te amo Rosquinha! – Murmurou Almeida.

Os dois se entrelaçaram e em meio aos fogos e as gritarias vindas da praia, deram um longo, apaixonado e molhado beijo.
E ninguém se atreveu a perguntar porque Rosquinha.
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A primeira vez ninguém esquece...

Meu primeiro post é justamente o meu conto finalista no concurso Contos do Rio de 2008 do jornal O Globo. Bem-vindos ao meu mundo.


A Unidos dos Dois na Sala.


— Maria Amália, pelo amor de Deus, o que é isso?!
Ela sabia, há mais de 30 anos, que ele só a chamava pelo nome composto quando a coisa era grave. Ele só usava este tom pra ver se conseguia trazer a luz à cabeça da mulher, que às vezes era leonina ao extremo.
— Maria Amália?
Ela sabia que ele repetiria o nome como se fossem palavras de ordem. Ele sabia que tinha que repetir, era o jogo.

— Vai me ajudar ou vai ficar só olhando, Carlos Alberto!
Casados há mais de 40 anos, já foram amor, paixão, ternura, depois “pai” e “mãe” e hoje, sem os filhos por perto, quase não se chamam mais. Já tem todos os rituais, horários, lugares da casa decorados. Sabem com exatidão quando um entra, quando o outro sai, e assim, passaram a não precisar mais usar seus nomes. Ela surgiu da cozinha carregada de coisas.

— Sabe há quanto tempo eu peço para ir a um desfile de Escola de Samba, Carlos Alberto?
Duas vezes o nome composto usado por ela. A coisa era grave. Ele a ajudou a pousar os sacos pretos de lixo, repletos de bugigangas.

— Ano que vem, ano que vem, ano que vem... Cansei! O Sambódromo só conheço de passar ao lado quando íamos visitar sua mãe em Niterói! Hoje nem isso!
Era sagrado. Uma vez por mês, num domingo, a ida e volta dentro da Parati 99, Laranjeiras ao Barreto. Um dia ela morreu.

— Agora, sabe onde vai ser o desfile?
Ele apenas levantou as sobrancelhas.

— Aqui em casa!
As sobrancelhas agora pareciam querer voar da sua cara.

— Isso mesmo, Carlos Alberto, fiz uma fantasia para cada Escola de Samba. E como você nunca me levou ao desfile, vou desfilar em todas as Escolas. TO-DAS!
E deixou cair o último saco preto. Foi em direção à TV e ligou. Pela telinha os dois viram a animação da platéia, a repórter que perguntava à destaque sobre a emoção, e o comentarista errar uns três ou quatro nomes dos famosos que apareciam. Em cinco minutos começaria o desfile. Ele em pé, petrificado. Ora olhava para ela, ora para a televisão.

— A União Do Rio Bonito está quase na avenida e minha ela é a segunda!
Ela pegou um dos sacos e sumiu para o banheiro. O enredo era “As Maravilhas do Engenho e o doce sabor encantado do néctar do açúcar”. Logo surgiu na sala enrolada em dois bambus e com quilos de açúcar empilhados na cabeça. Tudo amarrado por uma touca transparente. Ela notou o que ele queria dizer pela expressão dele.

— É improviso Carlos Alberto! Improviso! Pesquisei e vi que o caminho era a ala da Cana de Açúcar.

— Mas, um bambu?
— Parecido Carlos Alberto, parecido...
A Escola entrou quase que imediatamente. E lá foi ela cantando o enredo e evoluindo pela sala. E lá foi ela sambando, cantando a plenos pulmões. Ao final dos 80 minutos desabou ao lado do marido, exausta. Ela sorria. Ele a abanava com a toalhinha da mesa de centro.

— Nossa, se eu soubesse que era assim, eu já tinha desfilado antes...

— Quer uma água? Um suco?

— Não posso, tenho que me trocar que a União de Santo Arcanjo já esta na concentração...
O enredo era “Da negritude ao encanto que sucumbe a nova raça digital.”. E surge com rosto pintado de preto. Um monitor de computador vazio fazia um capacete. o marido não conteve o riso.

— Pode rir, Carlos Alberto, mas este ano a gente ganha!
E o desfile teve início. A empolgação parecia maior. A tinta do rosto escorria manchando o vestido. Ao final ela parecia um mecânico no final de um dia. Ela arfava e ainda sorria.

— Tira a mesinha, tá atrapalhando... E água, preciso hidratar...
Ele correu para ajudar. Mesinha fora, água pra dentro. E mais uma troca de roupa. A Mocidade Velha Guarda já estava pra entrar para levar seu “Darth Vader versos o Dragão da Maldade em sonhos de celulóide”. Ela surge de gueixa e espada Jedi, que o neto emprestou. Sambou e pulou como se não houvesse amanhã. De gueixa virou Carlitos, bengala um toco de madeira. De Carlitos se torna Cleópatra, a cobra uma mangueira velha. Ele, tal qual um técnico de futebol, sem abandonar sua área, vez por outra oferece água ou alguma instrução. Após a penúltima escola ela desaba na poltrona.

— Já são mais de seis horas de desfile... Olha o coração, amorzinho...
Neste momento os olhos dela brilharam. Os dois haviam recuperado por um momento uma cumplicidade que ela já não via há muitos carnavais. Ela lembrou por um momento do rapaz que havia lhe abordado no baile pré-carnavalesco do Fluminense. Ele estava ali, em algum lugar daquele rosto enrugado que a olhava com preocupação.

— Só falta uma, meu amor... São seis por dia...
Ela levantou com certo esforço e caminhou até o banheiro arrastando atrás de si o último saco preto. De lá saiu como baiana improvisada, uma bola de futebol na cabeça.

— Baiana, Maria Amália?!

— Baiana é mais fácil. Só fica evoluindo quietinha...

O locutor anuncia a Porto do Império, com “Dois pés do craque surge as maravilhas de um chão de estrelas”. Ela começa a evoluir e tonteia. Ele a segura. Ela o empurra com delicadeza. Evolui mais uma vez e mais uma cambaleada. Ela desaba aos prantos no sofá.

— Me ajuda Bebetinho... Me ajuda... Bebetinho.
Aquele nome o fez remoçar uns 30 anos. Talvez mais. Sem pestanejar, ele despiu a mulher cuidadosamente. E sempre de olho na TV, até para não perder os pontos e atrapalhar a escola, surgiu Carlos Alberto vestido de baiana. Ele começou a evoluir um tanto ou quanto travado. Mas, em segundos, era uma alegria só na avenida. Ele ainda olhou para o sofá e a viu dormindo, sono solto, seios à mostra. Mesmo assim não parou. Cumprimentou os jurados, acenou para o Sambódromo lotado e fez o que tinha que ser feito. Sua única certeza era de que tinha que estar preparado.

Afinal, no dia seguinte teria que enfrentar mais oito horas de avenida
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