quarta-feira, dezembro 17, 2003

Tragédia e Negócio: o Ouro do HMS «Sussex»

O HMS «Sussex», navio de linha de 80 canhões com 47 metros de comprimento comandado pelo Almirante Sir Francis Wheeler, liderava uma enorme esquadra inglesa composta por mais de 100 navios dirigida ao Mediterrâneo para uma ofensiva contra França quando se afundou no meio de uma violenta tempestade transportando 500 homens a bordo.
Segundo certas investigações, o navio de guerra transportaria nos seus porões cerca de 9 toneladas de moedas de ouro destinadas a comprar a lealdade de um potencial aliado no Sudeste de França, o Duque de Sabóia.

Recentemente, depois de aturadas investigações no mar e avultadas negociações em terra, a companhia norte-americana Odyssey Marine Exploration Inc. irá recuperar a carga de um navio de guerra inglês naufragado em 1694. Está aberto o mais recente capítulo da caça aos tesouros afundados.
A companhia irá utilizar um ROV ("Remotely Operated Vehicle", veículo robotizado telecomandado) de 7 toneladas denominado «Zeus», para explorar destroços encontrados ao largo de Espanha, em busca do alegado tesouro. O «Zeus» é dotado da última tecnologia, sendo capaz de mergulhar a 2.500 metros e possui braços manipuláveis extremamente precisos capazes de efectuar recuperações de pequenos objectos.

O Tesouro e a Caça
Em caso de confirmação positiva dos destroços descobertos no fundo do mar ao largo de Gibraltar com o «Sussex», estima-se que o pequeno robot possa recuperar uma quantia avaliada entre os 500 milhões a 4 bilhões de dólares.
De acordo com a legislação internacional, naufrágios deste tipo mantêm-se propriedade do governo sob os quais operavam durante a sua vida activa, neste caso pertencendo ainda ao governo britânico.

No entanto, foi alcançado um acordo exclusivo para uma intervenção de estudo e recuperação no início deste ano entre o governo de Sua Magestade com a companhia privada norte-americana (consulte-se o relatório do Ministério da Defesa, a página 7).

A Odyssey Marine Exploration assume a despesa inicial da campanha, o que poderá ascender a perto de 5 milhões de dólares, mas o contrato concede à companhia uns generosos 80 por cento dos primeiros 45 milhões de dólares obtidos pela venda das moedas recolhidas. Quaisquer receitas até 500 milhões de dólares serão divididas em partes iguais entre a companhia e o Governo britânico, o qual receberá 60 por cento de qualquer receita adicional.
Um acordo que, diga-se, suscitou polémica no meio da Arqueologia inglesa, prendendo-se com o tipo de trabalho pretendido, que na verdade envolve extracção de peças de interesse arqueológico e a consequente venda de parte desse património, contrários aos princípois básicos da política patrimonial britânica e mesmo de convenções internacionais a que o Reino Unido aderiu. Um acto previsivelmente condenável, pois não estão assegurados o devido acompanhamento e metodologia científica da Arqueologia Subaquática indispensáveis para assegurar a integridade do conhecimento a obter a partir do naufrágio.

Os Caçadores Subaquáticos do Séc. XXI
Trata-se da mesma companhia que descobriu e explora o rico naufrágio do SS «Republic», um navio a vapor movido a rodas de pás afundado em 1865 na costa Leste dos Estados Unidos, ao largo do Estado da Georgia, arrastando para o fundo cerca de 400.000 dólares em moedas de ouro de 20 dólares, carga que transportava entre Nova Iorque e Nova Orleães para financiar a reconstrução do Sul dos Estados Unidos após o fim da Guerra Civil.
Em resultado da primeira exploração, foi recuperado o sino de bordo, cujas inscrições permitiram a identificação do navio.
A descoberta desta carga está avaliada em cerca de 120 milhões de dólares actuais. Boas notícias para os accionistas da Odyssey Marine Exploration, líder no campo de recuperação de naufrágios em águas profundas, pois está cotada na Bolsa norte-americana.

À Conquista das Fortunas Afundadas
A Odyssey Marine Exploration possui actualmente vários projectos de exploração de naufrágios em várias fases de desenvolvimento nos mares do mundo inteiro, incluindo agora o «Sussex». O navio-base da companhia, «Odyssey Explorer», encontra-se estacionado sobre o sítio de naufrágio do SS «Republic» desde início do Outubro. As operações no «Sussex» terão início logo após a campanha de exploração do SS «Republic».

domingo, dezembro 14, 2003

Ainda a propósito de "Master and Commander: the Far Side of the World"...

Para quem gostou de ver e ouvir o capitão Aubrey ao largo da costa do Brasil bordo do HMS «Surprise» fazer-se entender em português aceitável... numa adaptação genuinamente bem conseguida de um famoso clássico literário inglês e reconstituição fascinante da guerra naval na época napoleónica, visitem-se algumas curiosidades históricas.

Relíquias da Vitória
Comece-se, por exemplo, por uma relíquia naval, a única vela de navio original sobrevivente da batalha de Trafalgar (1805). Medindo 25 por 16,5 metros, trata-se, mais precisamente, da vela de gávea do mastro traquete do HMS «Victory», navio de linha que liderou o ataque inglês (a bordo do qual o Almirante Lord Nelson sofreu o ferimento fatal que o vitimou), actualmente submetida a rigoroso tratamento de conservação por peritos em têxteis do Centro de Conservação Têxtil da Universidade de Southampton em conjunto com o "Mary Rose Archaeological Services Limited", processo dificultado pelos 90 buracos e rasgões sofridos no violento combate naval. Espera-se a sua completa reabilitação para exposição na comemoração do bicentenário da batalha em 2005.
Notícia da BBC.

Testemunhos das Expedições Científicas
Após traçarem rumo às paradisíacas ilhas Galápagos em busca do terrível «Acheron», o Dr. Stephen Maturin (Paul Bettany) não esconde a sua ânsia de registar todas as maravilhas naturais por descobrir naquele destino exótico. Uma piscadela de olhos ao feito realizado por Charles Darwin cerca de 30 anos mais tarde. Para quem reparou na óbvia fonte de inspiração, foram as viagens científicas de Darwin a bordo do «Beagle» e a sua passagem nas Galápagos que resultaram numa importante revisão científica sobre a evolução natural das espécies animais. à disposição dos leitores de hoje, os escritos de Darwin estão disponíveis aqui.

Curiosamente, o sítio de naufrágio do «Beagle» terá sido descoberto precisamente este ano no Condado de Essex, em Inglaterra, segundo certas notícias. O navio, um pequeno brigue de 235 toneladas lançado à água em 1820, tornou-se célebre quando acolheu o cientista inglês na sua viagem à volta do Mundo entre 1831 e 1836. Perdeu-se o rasto do navio em 1870, quando, já velho, foi leiloado aparentemente para ser desmantelado. Crê-se agora que parte substancial do casco do navio tenha sido abandonado nas margens alagadiças do rio Tamisa que mantiveram a sua conservação até aos dias de hoje.

A «Royal Navy» à escala
No passado mês de Novembro, a conhecida casa de leilões Christie’s vendeu uma miniatura de navio de guerra inglês de 40 canhões (escala 1:48, medindo 89 por 20 cm) do início do séc. XVIII, extremamente bem conservado, por 663.750 libras. Uma peça rara, proveniente de uma tradição naval inglesa que pressupunha a construção destes modelos não só para estudo da construção pelo Almirantado, como para uso decorativo dos altos oficiais da «Royal Navy», sendo montados nos mesmos estaleiros onde se construíam os autênticos navios de guerra de Sua Magestade Britânica.

sábado, dezembro 13, 2003

Expansão e Fábulas Marinhas

"Há também homens marinhos, que já foram vistos sair fora d’água após os índios, e nela hão morto alguns, que andavam pescando, mas não lhes comem mais que os olhos e nariz, por onde se conhece, que não foram tubarões, porque também há muitos neste mar, que comem pernas e braços, e toda a carne.
Na capitania de S. Vicente, na era de 1564, saiu uma noite um monstro marinho à praia, o qual visto de um mancebo chamado Baltazar Ferreira, filho do capitão, se foi a ele com uma espada, e levantando-se o peixe direito como um homem sobre as barbatanas do rabo lhe deu o mancebo uma estocada pela barriga, com que o derrubou, e tornando-se a levantar com a boca aberta par o tragar lhe deu um altabaixo na cabeça, com que o atordoou, e logo acudiram alguns escravos seus, que o acabaram de matar, ficando também o mancebo desmaiado, e quase morto, depois de haver tido tanto ânimo. Era este monstruoso peixe de 15 palmos de comprido, não tinha escama senão pêlo".
Assim escrevia na Bahia, Fr. Vicente do Salvador na sua História do Brasil (1627), Livro Primeiro, Cap. Décimo.

Podemos encontrar alguns escritos adicionais sobre os ipupiaras (ou ipupyaras). Encontramos, por exemplo, um outro registo sobre homens marinhos, dado pelo jesuíta Fernão Cardim na sua narrativa Tratados da Terra e Gente do Brasil (escrita entre 1583 e 1590, mas só publicado depois de muitas aventuras na Inglaterra em 1625 na compilação marítima publicada por Samuel Purchas):

"Estes homens marinhos chamam se na língua Igpupiara; têm-lhe os naturais tão grande medo que só de cuidarem nele morrem muitos, e nenhum que o vê escapa; alguns morreram já e perguntando-lhes a causa, diziam que tinham visto este monstro; parecem-se com homens propriamente de boa estatura, mas têm os olhos muito encovados. As fêmeas parecem mulheres, têm cabelos compridos, e são formosas; acham-se estes monstros nas barras dos rios doces. Em Jagoarigipe sete ou oito léguas da Bahia se têm achado muito; no ano de oitenta e dois indo um Índio pescar, foi perseguido de um, e acolhendo-se em sua jangada o contou ao senhor; o senhor para animar o Índio quer ir ver o monstro, e estando descuidado com uma mão fora da canoa, pegou
dele, e o levou sem mais parecer, e no mesmo ano morreu outro Índio de Francisco Lourenço Caiero. Em Porto Seguro se vêem alguns, e já têm morto alguns Índios. O modo que têm para matar é: abraçam-se com a pessoa tão fortemente beijando-a e apertando-a consigo que a deixam feita toda em pedaços, ficando inteira, e como a sentem morta, dão alguns gemidos como de sentimento e, largando-a, fogem; e se levam alguns comem-lhe somente os olhos, narizes e a ponta dos dedos dos pés e das mãos e os genitais, e assim os acham de ordinário pelas praias com estas coisas menos."

Novas Terras, Novos Mares, Novas Criaturas
O Novo Mundo em nada ficava a dever ao idealizado Éden bíblico, possuía luz natural gloriosa, matas exuberantes, águas abundantes e, principalmente, uma excitante população nativa, "de corpos grandes e robustos, bem dispostos e proporcionados" (Américo Vespúcio). O fascínio provocado pelas terras americanas e pelos índios que aqui habitavam se alastrou pela Europa rapidamente, com o auxílio nada desprezível da imprensa, criada por Gutemberg em 1454. A carta Mundus Novus , de Vespúcio, conheceu, só entre 1503 e 1512 (ano da morte do autor), 13 edições latinas, dez alemãs e inúmeras outras na Itália, França e Holanda. O homem cujo nome foi dado a todo um continente (América), não poupou a propaganda: "Todas as árvores são odoríferas e produzem gomas ou óleos (...) cujas propriedades todas, se fossem conhecidas, não duvido que andaríamos todos sãos. E por certo que se o paraíso terreno existe em alguma parte da terra, creio que não deve ser longe destes países".

Logo se difundiram inúmeras fantasias. Uma das mais comuns falava da longevidade dos índios, que viveriam até 150 anos. Outra dava conta de gigantes com 16 palmos de altura e selvagens com "duas ordens de dentes em cima e em baixo" ou "pés às avessas". Os viajantes, como os franceses André Thevet (Singularidades da França Antárctica, 1558) e Jean de Léry (Viagem à Terra do Brasil, 1578), eram criativos: segundo eles, bichos que se alimentavam de ar, homens marinhos e com cabeça de cão também vagueavam pelas novas terras. As suas descrições provocaram tal polémica que a Igreja enviou um grupo de teólogos examinar a questão, como nos informam as Notícias antecedentes, curiosas e necessárias das cousas do Brasil, do padre Simão de Vasconcelos, reitor dos colégios jesuíticos da Bahia e do Rio de Janeiro (Vasconcelos publicou o seu livro em 1663, mas sem o capítulo que detalha essa investigação, que a censura eclesiástica considerou excessivo).
O Brasil, como as outras terras do maravilhoso Mundus Novus, era uma tela onde se projectava a imaginação do Velho Mundo, ainda contaminada pelos bestiários medievais.

O Regresso dos Homens Marinhos?
Já no séc. XIX, Inácio Vilhena Barbosa, no 3.º volume de As Cidades e Villas da Monarchia Portugueza que teem Brasão d'Armas (Lisboa, 1862) descreve sucintamente uma "fábula popular de antiga origem, e que tres escriptores do seculo passado ainda repetiram cheios de infantil credulidade, conta que junto áquelle penedo appareciam ás vezes homens marinhos, que viviam como peixes no seio do oceano. Um d'estes escriptores refere o caso, não só como tradição, mas tambem pelo testemunho ocular de um frade, seu conhecido, que lhe assegurou ter visto ali um d'esses monstros «com meio corpo fora d'agua, da feição de um homem muito branco, e bem figurado, o qual, olhando para todas as partes, e sacoudindo a cabeça, que tinha povoada de grandes cabellos de uma côr verde mar, se sumiu outra vez nas ondas, mergulhando-se n'ellas como o costumam fazer os nadadores".

sexta-feira, dezembro 12, 2003

Naufrágio & Criaturas Marinhas

"Trabalhou-se todo o dia e deixando vigias, descansámos e na manhã seguinte, que se contavam sete de Agosto, ainda mal se divisava a luz quando vimos sair das águas uma mulher marinha e com tanta ligeireza entrou na terra e subiu ao monte que não tiveram todos os companheiros o gosto de a verem. Tinha todas as perfeições até à cinta que se discorrem na mais formosa e somente a desfeavam as grandes orelhas que tinha, pois lhe subiam à distância de mais de meio palmo por cima da cabeça. Da cinta para baixo toda estava coberta de escamas e os pés eram do feitio de cabra, com barbatanas pelas pernas. Tanto que se viu no monte, pressentindo ser vista, deu tais berros que estremecia a Ilha pelo retombo dos ecos e saíram tantos animais e de tão diversas castas que nos causou muito medo. Arrojou-se finalmente ao mar pela outra parte com tal ímpeto que sentimos nas águas a sua veemência. Todos se assustaram menos eu, pois já tinha visto outra no Cabo de Gué e tinha perdido o medo com outras semelhantes aparições; e me lembro que junto a Tenerife vi um homem marinho de tão horrendo feitio que parecia o mesmo Demónio. Tinha somente a aparência de homem na cara; na cabeça não tinha cabelos mas uma armação, como de carneiro, revirada com duas voltas; as orelhas eram maiores que as de um burro; a cor era parda, o nariz com quatro ventas, um só olho no meio da testa, a boca rasgada de orelha a orelha e duas ordens de dentes; as mãos como de bugio, os pés como de boi e o corpo coberto de escamas mais duras que conchas. Uma tempestade o lançou em terra e tais bramidos deu que entre eles expirou e para memória se mandou copiar a sua forma e se conserva na Casa da Cidade daquela Ilha".

Um Português, uma ilha imaginária, um naufrágio, uma visão (nada mais natural...)
O episódio, decorrido numa ilha imaginária localizada algures entre o arquipélago de Cabo Verde e a Costa da Guiné, permaneceu escondido entre os milhares de páginas dedicados à história trágico-marítima lusitana, terá sido redigido entre 1693 e 1699 pelo Mestre do navio, Francisco Corrêa, que intitulou o seu texto de Relação do Sucesso que teve o Patacho chamado Nossa Senhora da Candelária, da Ilha da Madeira, o qual vindo da Costa da Guiné, no ano de 1693, uma rigorosa tempestade o fez varar na Ilha incógnita, s.d.

quinta-feira, dezembro 11, 2003

Upupiara: "o que vive no fundo das águas"

"Não há dúvida senão que se encontram na Baía e nos recôncavos dela muitos homens marinhos a que os índios chamam pela sua língua «upupiara», os quais andam pelo rio da água doce pelo tempo do Verão onde fazem muito dano aos índios pescadores e mariscadores que andam em jangadas onde os tomam e aos que andam pela borda da água metidos nela, a uns e outros apanham e metem-nos debaixo de água onde os afogam, os quais saem à terra com a maré vazia afogados e mordidos na boca, narizes e na sua natura e dizem outros índios pescadores que viram tomar a estes mortos, que viram sobre água uma cabeça de homem lançar um braço fora dela e levar o morto e os que isto viram se acolheram fugindo à terra assombrados, do que ficaram tão atemorizados que não quiseram tornar a pescar senão daí a muitos dias, o que também aconteceu a muitos pretos de Guiné;
os quais fantasmas ou homens marinhos mataram por vezes cinco homens índios e já aconteceu tomar um monstro destes dois índios pescadores de uma jangada e levar um e salvar-se o outro tão assombrado, que esteve para morrer e alguns morrem disto; e um mestre do açúcar do meu engenho afirmou que olhando da janela do engenho que está sobre o rio e de que gritavam umas negras uma noite que estavam lavando umas formas de açúcar e que viu um vulto maior que um homem à borda da água que se lançou logo nela, ao qual mestre de açúcar as negras disseram que aquele fantasma vinha para pegar nelas e que aquele era o homem marinho, as quais estiveram assombradas muitos dias; e destes acontecimentos acontecem muitos no Verão, que no Inverno não falta negro algum".

Homens Marinhos em Terras do Brasil
O texto pertence à obra "Notícias do Brasil: Descrição Verdadeira da Costa Daquele Estado que Pertence à Coroa do Reino de Portugal, Sítio da Baía de Todos-os-Santos" , escrita na década de 1580 por Gabriel Soares de Sousa (1540?-1591), senhor de engenho de açúcar na Baía explorador do sertão baiano, e foi por este apresentada a Filipe I de Portugal (Filipe II de Espanha). Trata-se do Capítulo CXXVII, "Que trata dos homens marinhos".

Este é o mais completo texto descritivo da fauna e flora da área do actual Estado da Baía, assim como dos usos e costumes das inúmeras populações indígenas que aí habitavam. A curiosidade do autor levou-o a registar estes rumores sobre os «upupiara», perigosas criaturas marinhas semi-humanas. Sousa chama-lhes "fantasmas" e relata vários casos de raptos por eles cometidos e o pasmo que ficava em quem os «vira», bem como o medo que se apossava de todos quando de tais seres imaginários se falava.

É certo, porém, que Gabriel Soares de Sousa não é o primeiro autor a prestar atenção aos «upupiara»: num capítulo da sua História da Província de Santa Cruz , publicada em 1576, o cronista Pêro de Magalhães Gândavo ocupa-se do «monstro marinho que se matou na capitania de São Vicente, ano 1564», que aliás chegou a ser representado em desenho.

quarta-feira, dezembro 10, 2003

Actualizações históricas e arqueológicas

Depois de um longo e delicioso fim-de-semana na histórica vila de Melgaço, o Marítimo regressa à sua faina virtual.

Ficam os leitores a saber de uma conferência intitulada "As Origens de Setúbal".
Tendo como ponto de partida a história da freguesia de Santa Maria da Graça, o núcleo mais antigo da cidade de Setúbal, a conferência será proferida pelo Arqueólogo Carlos Tavares da Silva, na próxima sexta-feira, dia 12 de Novembro, pelas 21,30 horas, no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS).
Embora o Museu ainda não disponha de um "site", podem consultar-se aqui informações sobre o património arqueológico local.
O conferencista abordará as origens de Setúbal, que remontam ao século VIII antes de Cristo, período em que a foz do Sado se envolveu no comércio com o mundo fenício, e apresentará as grandes etapas da evolução do povoamento do que é hoje o Centro Histórico de Setúbal.
Esta conferência, na qual todos os interessados estão convidados a participar, integra-se nas Comemorações dos 755 anos da freguesia de Santa Maria da Graça.

Aqui ficam os contactos, para mais informações:
MAEDS – Av. Luisa Todi, 162, 2900-451 SETÚBAL
Telfs. 265239365 / 265534029, Fax 265527678

sexta-feira, dezembro 05, 2003

Possível navio de Colombo descoberto no Panamá

No passado mês de Novembro, surgiram notícias sobre um naufrágio no Panamá que alguns investigadores identificam como sendo «La Vizcaina», um dos navios abandonados por Cristóvão Colombo na sua quarta e derradeira viagem ao Novo Mundo, em 1503-1504.

Segundo Carlos Fitzgerald, Director Nacional do Património Cultural do Instituto Nacional de Cultura do Panamá (INAC), aguarda-se em breve um acordo de cooperação para investigação futura, celebrado entre o Instituto de Arqueologia Náutica (INA) da Universidade do Texas A&M e o Marine Investigations of the Isthmus (IMDI), grupo privado que recolheu os primeiros artefactos do naufrágio em 2001. Este acordo possibilitará o início de investigação arqueológica para analisar aquele que é um dos mais antigos naufrágios descobertos no Novo mundo.

História rocambolesca
O naufrágio, descoberto em 1998 em Playa Damas, próximo de Nombre de Dios, ao largo da costa caribenha do Panamá em apenas 6 metros de profundidade pelo mergulhador e historiador amador norte-americano Warren White, tem suscitado o interesse de vários grupos. Um dos primeiros foi o IMDI, uma companhia de caça ao tesouro dirigida pelo próprio Warren White, Nilda Vázquez e um grupo de investidores e técnicos.

Desde então, White afastou-se do IMDI e tem denunciado a ameaça que pende sobre o naufrágio devido à intenção do grupo para retirar mais artefactos deste navio. Sabendo que a própria Nilda Vázquez admite a falta de conhecimento e metedologia arqueólogica do IMDI, de maneira a proceder a uma escavação em regra, foi chamado a intervir o INA, instituto reputado mundialmente possuidor das credenciais arqueológicas necessárias e negociou-se apoio financeiro para as campanhas científicas, prestado pela grupo de "media" alemão Der Spiegel.

Um Português no Panamá
As negociações com o INAC sobre a escavação integral do sítio de naufrágio estão agora na sua fase final. Embora o director Nacional do Património tenha informado que o IMDI não possui direitos legais para exploração do naufrágio ou remoção de mais arfactos, o português Filipe Castro (dirigiu as escavações da nau da Índia «Nossa Senhora dos Mártires» na barra do Tejo entre 1996 e 2000), professor assistente no INA e director de projecto do naufrágio de Playa Damas apresentou recentemente uma proposta formal para colaboração com o director do IMDI Ernesto Cordovez (filho de Nilda Vázquez), para rápida resolução da questão. O acordo final evitará o confronto legal entre a Direcção do Centro Nacional de Cultura e o grupo IMDI, que ameaçou levar o caso a tribunal, caso não lhe seja permitido prosseguir a sua actividade no naufrágio.

Um naufrágio importante a estudar
Provas factuais, incluindo datações por Carbono 14 e dendrocronologia (análise dos aneis de crescimento nas peças de madeira) realizadas pela Academia das Ciências de Heidelberg sugerem uma concordância cronológica entre a época em que o navio foi construído e a sua possível utilização na quarta armada de Colombo. De qualquer modo, sendo comprovadamente contemporâneo da «Vizcaina» de Colombo, trata-se sem dúvida de um navio de finais do séc. XV a inícios do séc. XVI, tornando-se por isso um raro exemplar para o estudo directo dos navios da Expansão e Descobrimentos ibéricos. O Dr. Donald Keith, director do grupo de arqueologia náutica "Ships of Discovery", após uma inspecção preliminar da artilharia, cerâmica e madeiras recuperadas do naufrágio, pensa não se tratar do próprio Vizcaína, mas concorda com a importância da pesquisa a efectuar.

O naufrágio de Playa Damas foi já declarado Património Nacional pelo Governo do Panamá, de acordo, com a legislação aprovada em Agosto deste ano, baseada na Convenção da UNESCO para o Património Submerso, em que se declaram todos os sítios de naufrágios históricos como Património Nacional.

A recuperação de artefactos pelo grupo privado IMDI iniciou-se em 2001e e foi documentada em video (disponível no "site" do "Archaeology Channel"). No entanto, Fitzgerald declarou que o Governo do Panamá nunca concedeu permissão escrita ao grupo IMDI para proceder a escavações ou recuperações no sítio do naufrágio, tendo apenas acordado a remoção de uma série específica de objectos mais valiosos que poderiam vir a ser alvo de roubo. Este alegado mal-entendido relativamente ao acordo entre as duas partes chegou a estar na origem de um diferendo entre o grupo IMDI e o Instituto Nacional de Cultura do Panamá, instituição governamental responsável pelo património histórico e arqueológico.

Espera-se que o acordo para o estudo científico do naufrágio de Playa Damas estabeleça um precedente na gestão do património cultural do Panamá, de modo a beneficiar a história local e enriquecer o nosso conhecimento sobre uma das fases pioneiras da colonização do Novo Mundo, evitando a sua destruição às mãos de empresas de caça ao tesouro cuja única finalidade se reduz a produzir lucro para um punhado de investidores.

As Naus voltam a Portugal
Aproveitamos esta ocasião para informar que o Dr. Filipe Vieira de Castro estará este mês em Lisboa para o lançamento do seu livro A Nau de Portugal: Os Navios da Conquista do Império do Oriente, 1489-1650 , publicado pela Editora Prefácio no próximo dia 18 de Dezembro, às 18:00 horas, no Clube Militar Naval, em Lisboa (Av. Defensores de Chaves, n.º 44).
Estão convidados todos os marítimos com gosto pela história e pelos mares de outrora.

quarta-feira, dezembro 03, 2003

Glória e Tragédia do «Hunley»

Em 1863, juntos na sua velha oficina de Nova Orleães (no Alabama), dois sócios habilidosos, James McClintock e Baxter Watson, financiados por um advogado do Louisana, Horace Lawson Hunley, finalizaram a terceira e última versão de um submarino de guerra encomendado pela Marinha da Confederação em plena Guerra Civil norte-americana.

Afundamento de um submarino de guerra pioneiro
Na noite de 17 de Fevereiro de 1864, o pequeno submarino Confederado «Hunley» , de 12 metros de comprimento e 7,5 toneladas, parte em missão furtiva destinada a romper o bloqueio naval da União ao porto de Charleston (Carolina do Sul). Num esporão à proa, transporta uma carga explosiva de 61 quilos de pólvora pronta a cravar no casco inimigo.
O ataque decorre como previsto. Esventrada pela explosão, a chalupa de guerra USS «Housatonic» afunda-se em apenas 5 minutos.
O «Hunley», embora tenha sido avistado pelas sentinelas no navio inimigo, pouco ou nada sofreu com os tiros de espingarda. No seu regresso, ainda teve tempo de fazer o sinal combinado para comunicar o sucesso e o retorno do submarino com uma lâmpada de magnésio numa das torretas, mas pouco depois mergulhou para não mais ser encontrado.
Com esta missão, o pequeno submarino entrou para a História.

O Submarino vindo das trevas
Passados 131 anos, em Maio de 1995, uma expedição financiada pelo famoso escritor norte-americano Clive Cussler através da sua Fundação NUMA (National Underwater and Marine Agency) encontrou a estrutura preservada no leito lodoso do porto de Charleston.

Cussler, autor de mais de 20 novelas marítimas baseadas em naufrágios, navegações e afundamentos, como "Deep Six" (1984), "Raise the Titanic!" (1976) e "The Sea Hunters" (1996 e 2002), entre outros, é igualmente conhecido pela sua actividade na descoberta de naufrágios célebres.
Um dos mais célebres navios malditos, o «Mary Celeste» foi encontrado à deriva ao largo dos Açores em 1872, sem vestígios da tripulação, tendo sido deixado no mar. Em Agosto de 2001, a equipa de Cussler anunciou a descoberta dos restos do «Mary Celeste» num recife próximo da ilha de Haiti, nas Caraíbas. O veleiro ainda navegou durante mais doze anos sob diferentes proprietários, até ser deliberadamente encalhada em 1885 por um capitão menos escrupuloso, decidido a ganhar fraudulentamente o dinheiro do seu seguro. No entanto, os restos do navio ficaram à vista e os peritos da companhia seguradora depressa descobriram. O capitão e o mestre foram devidamente condenados.
Curiosamente, a história misteriosa deste navio inspirou Sir Arthur Conan Doyle, o qual utilizou em "J. Habakuk Jephson's Statement" (1883) um veleiro imaginário com o nome afrancesado de «Marie Celeste»

8 esqueletos e 3000 artefactos...
...foi o resultado da investigação arqueológica no interior da estrutura ferrugenta do primeiro submarino de guerra da História.
Uma tripulação particularmente corajosa se tivermos em conta que o «Hunley» já se tinha afundado previamente, em Agosto de 1863, tendo perdido a vida 5 dos 8 tripulantes.

O Tenente George E. Dixon, comandante do «Hunley» na altura do desastre, foi identificado não só pela posição que ocupava no interior do submarino, como sobretudo por alguns objectos pessoais: um relógio de bolso em ouro e uma moeda de 20 dólares também em ouro, amolgada, relíquia que o salvou de um tiro de espingarda na batalha de Shiloh, na qual gravou a frase "My Life Preserver"

Mas a verdadeira causa do afundamento do «Hunley» permanece ainda hoje desconhecida.

A sua redescoberta em 1995 deu início a um moroso processo de 5 anos para estudo científico por parte do Instituto Smithsonian e da Universidade do Tennessee e também a sua recuperação, realizada em 2000, tendo em vista a sua exposição ao público. No entanto, a simples previsão orçamental para o futuro Museu Marítimo da Guerra Civil, avaliada em 40 milhões de dólares tem sido o principal obstáculo à conclusão do projecto.
Cuidadosamente trazido à superfície e transferido com sucesso para a unidade improvisada de conservação na Base Naval de Charleston, aguarda agora mecenas e contribuintes interessados na recuperação da relíquia naval.

Descanso Eterno
Finalmente, quase 140 anos após a conclusão da Guerra Civil, a tripulação do pequeno submersível encontrará o seu repouso final em terra numa cerimónia prevista para o mês de Abril de 2004, naquele que será o último enterramento Confederado na História dos Estados Unidos.

P.S.
Por indicação do Luís Falcão, tenho a acrescentar que existe um filme sobre este episódio marítimo, intitulado simplesmente "The Hunley". As críticas não são muito más e ao que parece a reconstituição histórica foi muito bem conseguida. Aqui fica a sugestão para as tardes de Inverno que se aproximam.