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terça-feira, 16 de abril de 2019

Oração a Nossa Senhora de Paris .... rogai por mim, rogai por nós , que rogue por ti


ORAÇÃO A NOSSA SENHORA DE PARIS

Rio de Janeiro, Poesia completa e prosa: volume único, 2019

Notre Dame de Paris, Notre Dame de Partout, rogai por mim, rogai por nós, os malferidos de amor, os feridos do doce langor, os que uivam à lua nas praias desertas do mundo, os que buscam um vagabundo num bar para falar da bem-amada, para não dizer nada só que ela é bonita, os que saem andando em campos de estrelas e de repente é uma rua deserta com um apartamento aceso que fica olhando o deambulante, o amante perdido, sem rumo e sem prumo, barco sozinho no meio do oceano lunar, é só olhar, lá está ela, a bem-amada dormindo no céu com os braços para cima, linda axila, macio feno, suave veneno de paixão, ó não, Nossa Senhora de Paris, Nossa Senhorazinha de Paris, rogai por mim porque a coisa está ruim, ela está longe eu sigo nessa névoa de luminosos astros e choro ao ver um rio que corre, uma estrela que morre, um mendigo que dorme, um cão que faz amor com uma cadela de olhos úmidos, túmidos seios, negro vórtex, meu amor, Notre Dame de Paris, Notre Dame de Partout, aqui estou eu, lembrai-vos, diante de vossa portada maior, o santo de cabeça cortada me espiando sofrer a angústia da espera vem não vem o homem me oferece cartões-postais de mulher nua pensa que eu sou americano eu sou é brasileiro do Rio de janeiro onde mora a minha amada numa colmeia a beira-parque fazendo há dois mil anos mel de amor com que adoçar todas as minhas mágoas, ó águas do Sena revoltas, minha amada está serena porque nós viemos de muito, muito, muito longe para nos encontrar, atravessamos os lagos da infância, cruzamos os desertos da adolescência, galgamos as montanhas da mocidade e aqui nesta cidade nos encontramos uma só vez, o mês era março, e nos reencontramos em abril novecentos e sessenta luas depois na rue Pierre Charon e ela entrou pelos meus olhos, banhou-se no meu cristalino, acendeu-me a íris e postou-se como santa Luzia no nicho de minhas pupilas oferecendo-me os próprios olhos numa salva de prata e pôs-se a comer devagarinho minha cabeça enquanto eu não sabia o que lhe dissesse só pedia vem comigo vem comigo mas ela não podia porque não era o dia mas lá vem ela de táxi entrou na Île de Ia Cité, rodeou a praça, que graça é ela, vai saltar, não eu que vou com ela, adeus Notre Dame de Paris, Notre Dame de l'Amour, iluminai vossos vitrais, levantai âncora ó galera gótica dos meus martírios vossos santos aos remos o Corcunda no mais alto mastro Jesus na torre de comando e buscai serenamente o grande caudal no qual me abandono náufrago coberto de flores em demanda do abismo claro e indevassável da morte, Saravá!

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O tempo diz adeus ao tempo ... Um outro tempo está a chegar . Um ano de 2019 bem sucedido

O Tempo
“Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um individuo genial.
Industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar
e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação
e tudo começa outra vez, com outro número
e outra vontade de acreditar
que daqui para diante tudo vai ser diferente.
Para você, desejo o sonho realizado,
o amor esperado,
a esperança renovada.
Para você, desejo todas as cores desta vida,
todas as alegrias que puder sorrir,
todas as músicas que puder emocionar.
Para você, neste novo ano,
desejo que os amigos sejam mais cúmplices,
que sua família seja mais unida,
que sua vida seja mais bem vivida.
Gostaria de lhe desejar tantas coisas…
Mas nada seria suficiente…
Então desejo apenas que você tenha muitos desejos,
desejos grandes.
E que eles possam mover você a cada minuto
ao rumo da sua felicidade.”
(Carlos Drummond de Andrade)

terça-feira, 14 de agosto de 2018

"A Sésta", agora e sempre que posso...


A Sésta

Pierrot escondido por entre o amarello dos gyrassois espreita em cautela o somno d'ella dormindo na sombra da tangerineira. E ella não dorme, espreita tambem de olhos descidos, mentindo o sôno, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silencios por entre o amarelo dos gyrassois. E porque Elle se vem chegando perto, Ella mente ainda mais o sôno a mal-resonar. 

Junto d'Ella, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos e lizos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ella acordou cançada de tanto sôno fingir. 

E Elle ameaça fugida, e Ella furta-lhe a fuga nos braços nús estendidos. 

E Ella, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ella dormisse outra vez. 

Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1'

Desenho "A Sésta", de Almada Negreiros, 1941, Museu de Arte Contemporânea do Chiado

domingo, 24 de junho de 2018

Os Santos Populares - S. João à moda de Pessoa.

São João

....

Mas, desçamos à terra,
Que, por enquanto, o ceu aterra, 
Porque antes d 'isso mette a morte.
Ha muita coisa desconhecida
Na tua vida.
Tens muita sorte
Em ninguem saber da partida
Que em mil setecentos e dezassete
Tu fizeste à Egreja constituida

Estás, eu bem sei, cansado
com o que a Egreja se intromette
Com tua vida e o teu divino fado.


(e) foi então que, para te vingar
E à maneira de santo, os arreliar
Desceste mansamente à terra
Perfeitamente disfarçado
E fizeste entre os homens da razão
Um milagre assignado,
Mas cuja assinatura se erra
Quando em teu dia, S. João do Verão,
Fundaste a Grande Loja de Inglaterra.
Isto agora é que é bom,
Se bem que vagamente rocambolico

Eu a julgar-te até catholico,
E tu sahes-me maçon.
Bem, ahi é que há espaço para tudo,
Para o bem temporal do mundo vario.
Que o teu sorriso doure quanto estudo
E o teu Cordeiro
Me faça sempre justo e verdadeiro,
Prompto a fazer fallar o coração
Alto e bom som
Contra todas as fórmulas do mal,
Contra tudo  que torna o homem precario.
Se és maçon - eu sou templario.


Esquece-te santo
Deslembro o teu indefinido encanto.

Meu irmão, dou-te o abraço fraternal.


(excerto integro e ortográfico de um poema de Fernando Pessoa, do livro acima mostrado e escrito em 12-0-1919 )

"A Criança Eterna acompanha-me sempre"

(Alberto Caeiro)

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Não olhes....



Não olhes o meu rosto devastado pela idade
a vida para mim é como se chovesse
mas se viesses seria como se me acontecesse
cantar contigo a perene mocidade

Ruy Belo
Volume of Light, um projeto criativo do fotógrafo Thomas Brown

sábado, 21 de outubro de 2017

Várias engenhocas que o não engenheiro deixou nas mão da rapariga...

POEMA

SE...


Se é possível conservar a juventude
respitando abraçado a um marco do correio;
Se a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora
e a mordeu deixando-a em estado grave;
Se ao descer do avião a Duquesa do Quente
pôs marfim a sorrir;
Se Baú-Cheio tem acções nas minas de esterco;
Se na América um jovem de cem anos
veio de longe ver o Presidente
a cavalo na mãe;
Se um bode recebe o próprio peso em aspirina
e a oferece aos hospitais do seu país;
Se o engenheiro sempre não era engenheiro
e a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;
Se, reentrante, protuberante, perturbante,
Lola domina ainda os portugueses;
Se o Jorge (o «ponto do Jorge!) tentou beber naquela noite
o presunto de Chaves por uma palhinha
e o Eduardo não lhe ficou atrás
ao sair com a lagosta pela trela;
Se «ninguém me ama porque tenho mau hálito
e reviro os olhos como uma parva»;
Se a Mimi Travessuras já não vem a Lisboa
cantar com o Alberto...

... Acaso o nosso destino, tac!, vai mudar?


Alexandre O'Neill

sábado, 10 de junho de 2017

Um dia que não podia passar em branco, querida Língua Materna

*
PORTUGUÊS

Se a língua ganha
a dimensão da escrita
e a escrita toma
a dimensão do mundo
*
Descer é preciso até ao fundo
na busca das raízes da saliva
que na boca vão misturar tudo
*
Mas há ainda a pressa do papel
que no tacto navega a brusca seda
Se a sede se disfarça sob a pele
descendo pela escrita essa vereda
*
E já se inventa
enlaça
ou se insinua
*
Se entrelaça a roca e o bordado
que as palavras tecendo
lado a lado
querem do país a alma nua
*
Aí podes parar
e retornar à boca
esse espaço de beijo e de cinzel
*
Onde a fala retoma a língua solta
trocando a ternura
pelo fel
*
Um lado após o outro
a dimensão está dita
O tempo a confundir qualquer abraço
entre o visto e o escrito
*
Espelho e aço
*
Nesta fundura boa
e mar profundo
*
Para depois sibir a pulso
o mundo

*

("Inquietude" - 2006)

Camões, de Júlio Pomar, 1986

Poema de Maria Teresa Horta , retirado do FB, neste dia 10, Dia de Camões e da Língua

terça-feira, 9 de maio de 2017

Os amigos de Baptista Bastos falam mais alto ... (1934-2017)

POEMA PARA OS MEUS AMIGOS
Virar a cabeça
não é resguardar
*
(amigos)
*
nem ver as pessoas
é vistoriar
*
Sedenta é aquela
que olha uma montra
no fundo dos olhos
reparem
está morta
*
os outros passeiam
com ar de enganados
*
Verdade é aquele
com a fome
no fato
*
Virar a cabeça
não é reparar
*
(amigos)
*
nem ver as pessoas
é vistoriar
*
O chão tem os
anos
e a área dos meses
*
e a morte é um fruto
com raiva nos dentes
*
Reparem
no choro que nos deram
no berço
*
verdade é a Hístória
com arado
e semente
*
Virar a cabeça
não é confrontar
*
(amigos)
*
nem ver as pessoas
é vistoriar
*
Tem o povo as mãos
pregadas na terra
*
Se um dia as recolhe
são armas de guerra
*
que o pão
 é feitio que o corpo
ai toma
*
e verdade é no peito
uma bala sem lógica
*
Virar a cabeça
não é perguntar
*
(amigos)
*
nem ver as pessoas
è vistoriar
*
Dobrada lava a mulher
o chão
de toda uma casa
*
que os braços
não lavram milho
com as espingar quebradas
*
questão de vício
ou vencer
*
questão de força
*
Reparem
*
há um clima
de raiva
com armas que não disparam
*
Virar a cabeça
não é transformar
*
(amigos)
*
nem ver as pessoas
é vistoriar
*
("Cronista não á Recado" - 1967)

Fotografia de Alfredo Cunha 
Poema de Teresa Horta  ( poema dedicado aos amigos e um dos preferidos de BB ), em FB

domingo, 30 de abril de 2017

Uma forma adocicada de ir aparecendo ... By, by, April

(Come chocolates, pequena; 
Come chocolates! 
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. 
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. 
Come, pequena suja, come! 
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! 
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, 
Deito tudo para o chão, como deitei a vida fora .


Álvaro de Campos, em Tabacaria

quinta-feira, 20 de abril de 2017

«LIBERDADE» (1 poema de Paul Éluard)


LIBERDADE

Nos meus cadernos de escola
Na minha carteira e nas árvores
Nos areais e na neve
Escrevo o teu nome

Em todas as páginas lidas
Em todas as páginas brancas
Pedra sangue papel cinza
Escrevo o teu nome

Sobre as imagens douradas
Nos estandartes guerreiros
Tal como na coroa dos reis
Escrevo o teu nome

Nas selvas e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No eco da minha infância
Escrevo o teu nome

Nas maravilhas das noites
No pão branco dos dias
Nas estações enlaçadas
Escrevo o teu nome

Nos meus farrapos de azul
No pântano sol alterado
No lago luar vivente
Escrevo o teu nome

Nos campos do horizonte
Sobre umas asas de pássaro
Sobre o moinho das sombras
Escrevo o teu nome

Em cada sopro de aurora
Na água do mar e nos barcos
Na serrania demente
Escrevo o teu nome

Na clara espuma das nuvens
Nos suores da tempestade
Na chuva insípida e espessa
Escrevo o teu nome

Nas formas resplandecentes
Nos sinos de muitas cores
Sobre a verdade da física
Escrevo o teu nome

Nas veredas bem despertas
Nos caminhos descerrados
Nas praças que se extravasam
Escrevo o teu nome

Na lâmpada que se acende
Na lâmpada que se apaga
Nas minhas casas unidas
Escrevo o teu nome

No fruto partido em dois
do meu espelho e do meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo o teu nome

No meu cão guloso e meigo
Nas suas orelhas erguidas
Na sua pata sem jeito
Escrevo o teu nome

Na soleira desta porta
Nos objectos familiares
Na língua de puro fogo
Escrevo o teu nome

Em toda a carne que tive
Na fronte dos meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo o teu nome

Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Muito acima do silêncio
Escrevo o teu nome

Nos meus refúgios desfeitos
Nos meus faróis aluídos
Nas paredes do meu tédio
Escrevo o teu nome

Na ausência sem desejo
Na solidão despojada
Na escadaria da morte
Escrevo o teu nome

Sobre a saúde refeita
Sobre o perigo dissipado
Sobre a esperança esquecida
Escrevo o teu nome

E pelo poder da palavra
Recomeço a minha vida
Nasci para te conhecer
Nasci para te nomear


Giestas brancas, as minhas fotos.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

E porque o caminho se faz caminhando, calorosamente, fui lanchar à Versailles...


As minhas fotografias (exposição de rua, Av. Duque d' Avila )


MEDITAÇÃO NA PASTELARIA
Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.
Nunca se sabe quando começa a insolência!
Que tempo este, meu Deus, uma senhora
Está sempre em perigo e o perigo
Em cada rua, em cada olhar,
Em cada sorriso ou gesto
De boa-educação!
A inspecção irónica das pernas,
Eis o que os homens sabem oferecer-nos,
Inspecção demorada e ascendente,
Acompanhada de assobios
E de sorrisos que se abrem e se fecham
Procurando uma fresta, uma fraqueza
Qualquer da nossa parte...
Mas uma senhora é uma senhora.
Só vê a malícia quem a tem.
Uma senhora passa
E ladrar é o seu dever – se tanto for preciso!
Alexandre O´Neill

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Oceanófrago, Mário Ruivo, 1927-2017


Se um dia olhar para o céu e não te ver, é que sou a onda do mar e não consigo te esquecer, sou feliz do teu lado sem do seu lado estar, pois você é isolado no meu modo de pensar, quando estou triste e não tem solução, lembro que você existe e mora no meu coração!
Carlos Drumond de Andrade
mais AQUI

sábado, 14 de janeiro de 2017

Muros e para além deles . Hoje, dou-te um poema .

Cerca de Grandes Muros Quem te Sonhas

Cerca de grandes muros quem te sonhas. 
Depois, onde é visível o jardim 
Através do portão de grade dada, 
Põe quantas flores são as mais risonhas, 
Para que te conheçam só assim. 
Onde ninguém o vir não ponhas nada. 

Faze canteiros como os que outros têm, 
Onde os olhares possam entrever 
O teu jardim com lho vais mostrar. 
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém, 
Deixa as flores que vêm do chão crescer 
E deixa as ervas naturais medrar. 

Faze de ti um duplo ser guardado; 
E que ninguém, que veja e fite, possa 
Saber mais que um jardim de quem tu és - 
Um jardim ostensivo e reservado, 
Por trás do qual a flor nativa roça 
A erva tão pobre que nem tu a vês... 

Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro' 

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Poema de Ano Novo para quem passa.



Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento
Fernando Pessoa
Por motivos "gripais" não tenho coragem de visitar os amigos. Ainda por aqui estou...

domingo, 20 de novembro de 2016

Olhar o tempo...

Eu não Quero o Presente, Quero a Realidade

Vive, dizes, no presente, 
Vive só no presente. 

Mas eu não quero o presente, quero a realidade; 
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede. 

O que é o presente? 
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro. 
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem. 
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente. 

Não quero incluir o tempo no meu esquema. 
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas 
                         como cousas. 

Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes. 

Eu nem por reais as devia tratar. 
Eu não as devia tratar por nada. 

Eu devia vê-las, apenas vê-las; 
Vê-las até não poder pensar nelas, 
Vê-las sem tempo, nem espaço, 
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. 
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma. 

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
 
Fotografia de Mário Branquinho, via FB

terça-feira, 31 de maio de 2016

"para atravessar contigo o deserto do mundo"



Para Atravessar Contigo o Deserto do Mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo 
Para enfrentarmos juntos o terror da morte 
Para ver a verdade para perder o medo 
Ao lado dos teus passos caminhei 

Por ti deixei meu reino meu segredo 
Minha rápida noite meu silêncio 
Minha pérola redonda e seu oriente 
Meu espelho minha vida minha imagem 
E abandonei os jardins do paraíso 

Cá fora à luz sem véu do dia duro 
Sem os espelhos vi que estava nua 
E ao descampado se chamava tempo 

Por isso com teus gestos me vestiste 
E aprendi a viver em pleno vento 

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto' 

domingo, 22 de maio de 2016

há quem viva de abraços, quem dê os laços e caia no nó....

 O LAÇO E O ABRAÇO 

Meu Deus! Como é engraçado! 
Eu nunca tinha reparado como é curioso um laço... uma fita dando
voltas. Enrosca-se, mas não se embola, vira, revira, circula e
pronto: está dado o laço. É assim que é o abraço: coração com
coração, tudo isso cercado de braço. É assim que é o laço: um
abraço no presente, no cabelo, no vestido, em qualquer coisa onde o
faço. 
E quando puxo uma ponta, o que é que acontece? Vai escorregando...
devagarzinho, desmancha, desfaz o abraço. 
Solta o presente, o cabelo, fica solto no vestido. 
E, na fita, que curioso, não faltou nem um pedaço. 
Ah! Então, é assim o amor, a amizade. 
Tudo que é sentimento. Como um pedaço de fita. Enrosca, segura um
pouquinho, mas pode se desfazer a qualquer hora, deixando livre as
duas bandas do laço. Por isso é que se diz: laço afetivo, laço de
amizade. 
E quando alguém briga, então se diz: romperam-se os laços. E saem
as duas partes, igual meus pedaços de fita, sem perder nenhum
pedaço. Então o amor e a amizade são isso... 
Não prendem, não escravizam, não apertam, não sufocam. 
Porque quando vira nó, já deixou de ser um laço!

Mário Quintana
Obra "Abraço" de Eliane Roedel
Da série Paisagem na Cidade

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

porque há dias assim... (poema completo)

NOS DIAS TRISTES NÃO SE FALA DE AVES

Nos dias tristes não se fala de aves.
Liga-se aos amigos e eles não estão
e depois pede-se lume na rua
como quem pede um coração
novinho em folha.

Nos dias tristes é Inverno
e anda-se ao frio de cigarro na mão
a queimar o vento e diz-se
- bom dia!
às pessoas que passam
depois de já terem passado
e de não termos reparado nisso.

Nos dias tristes fala-se sozinho
e há sempre uma ave que pousa
no cimo das coisas
em vez de nos pousar no coração
e não fala connosco.
Filipa Leal

( as minhas fotos, os meus olhares...)

domingo, 31 de janeiro de 2016

O SONO DE....


O SONO DE JORGE LUIS BORGES
Impõe-nos sempre a noite a sua mágica
tarefa. Destrinçar o universo,
as infinitas ramificações
de efeitos e de causas, que se perdem
na vertigem sem fundo que é o tempo.
A noite quer que esqueças esta noite
teu nome, teus avós, teu sangue,
cada palavra humana e cada lágrima,
o que a vigília já pôde ensinar-te,
o ilusório ponto dos geómetras,
a linha, o plano, o cubo ou a pirâmide,
o cilindro ou a esfera, o mar, as ondas,
teu rosto na almofada, essa frescura
dos lençóis ainda novos, os jardins,
os impérios, os césares e Shakespeare
e o que é mais difícil, o que amas.
Curiosamente, um comprimido pode
extinguir o cosmos e erguer o caos.


Jorge Luis Borges, em A Cifra, antepenúltimo livro de poesia do escritor e poeta argentino, reunindo quarenta e cinco poemas escritos entre 1978 e 1981.
(da revista online ISLEEP, dedicada ao sono)