28/06/2010

PSSST!


Sem empates
Esta é a coluna número 100. Ou a centésima coluna. Se eu quisesse dizer que esta era a cem coluna (sem coluna talvez fique um dia destes, se me falharem as ideias), já estaria a começar mal…
Ao longo de mais de 2 anos estive aqui afincadamente a escrevinhar sobre dislates, erros, enganos e desenganos da língua portuguesa. Que a culpa não é só dos falantes, a própria língua é dada a equívocos. Faz parte da sua (dela) riqueza.
Voltando ao 100. Não faço ideia se tenho razões para celebrar, os leitores decidirão. Há um endereço electrónico à vossa disposição. Podem eleger a coluna da vossa predilecção, podem eleger outros temas a abordar, podem até eleger a legibilidade do que escrevo, não podem é confundir uma coisa com a outra. Principalmente se se trabalhar na comunicação social. Se algo é legível é porque, das duas, uma: pode ser entendido, quer pela forma, quer pelo conteúdo; o contrário de legível é ilegível — com ‘i’. O mesmo ‘i’ (por vezes com o auxílio de mais letrinhas) que vira do avesso palavras como relevante/irrelevante, legal/ilegal, suportável/insuportável, possível/impossível e «ad infinitum».
Quanto à elegibilidade destas colunas, já é outro assunto. Isto é, se são merecedoras de serem eleitas seja para o que for, são elegíveis; o oposto é ser-se inelegível, característica muito pouco reconhecida nos dias que correm, mas fundamental.
Já que se fala de ilegibilidade/elegibilidade, ouvi num relato de futebol a expressão ‘empate parcial’. Que deve ser muito mais difícil do que um empate, pois a parcialidade de algo que é absoluto nem chega aos calcanhares da cisão do átomo. Um empate é a igualdade de votos ou de resultados. Se não é igual, não há empate. E se não empata, é porque despacha assunto…


Publicado no Açoriano Oriental a 27 Junho 2010

21/06/2010

PSSST!

‘Invencionismos’
Se não fossem as palavras novas, o pessoal ainda comunicaria por grunhidos (bem, muitas pessoas ainda grunhem, ou dão respostas monossilábicas, para se ser mais chique). Donde se conclui que palavras novas — ou neologismos — nada temos contra. Desde que, claro, venham suprir uma necessidade, preencher um hiato, enriquecer o léxico.
Depois há as outras. As desnecessárias. Ou as hilariantes. Muitas vezes coincidem.
Uma das minhas preferidas foi “devagarmente”, ouvida, se não me engano, na televisão. Um advérbio ao quadrado, portanto, pois ‘devagar’ já é um advérbio (cuja nobre função é, em traços largos, modificar os verbos, os adjectivos e outros advérbios) que aqui sofre o acréscimo do –mente, o sufixo natural de muitos advérbios de modo. Desnecessariamente, claramente. Terá sido por uma espécie de contágio do ‘lentamente’? Ele fala devagar + ele fala lentamente = ele fala “devagarmente”. Assim não restam dúvidas sobre a lentidão da criatura. Ou será que, para além de ser uma coisa vagarosa, era também uma coisa vaga? Vagamente?
“Inventamento” foi mais uma das outras. E complicada. Porque não sabemos se vem de ‘inventar’ ou se vem de ‘inventariar’. Quer dizer, vem de nenhuma, pois a ‘inventar’ corresponde o substantivo ‘invenção’, e a ‘inventariar’ correspondem ‘inventariação’ ou ‘inventário’. Se quem tal inventou é um inventor ou um inventariante, também permanece um mistério.
Gosto de palavras novas. Se assim não fosse, como designaríamos aquela corneta comprida, com som estrondosamente forte, popular entre os adeptos do futebol na África do Sul? Corneta comprida com som estrondosamente forte? Ou vuvuzela? Hein? O quê? Acho que fiquei surda….

Publicado no Açoriano Oriental a 20 Junho 2010

14/06/2010

PSSST!


Cantigas de amigo
Se calhar é porque somos possessivos. E temos muito brio naquilo que temos. É nosso e ponto final.
Se temos brio no que fazemos, já será outra cantilena…
Uma expressão que ouço muito (e talvez use) debita, tal qual, o seguinte: «tenho uma amiga minha» ou «tenho um amigo meu» (não sou sexista). Ter amigos é bom. Quer dizer, ter não temos. Não no sentido de posse. Como se tem pares de sapatos, cêntimos no bolso ou, até, vuvuzelas. Mas temos, no sentido de podermos contar mutuamente uns com os outros… e de podermos contá-los — se for no Hi5 ou no Facebook, dispensa-se qualquer capacidade matemática, aquilo faz tudo sozinho. Portanto, fica então assente que temos amigos. ‘Tenho um amigo’ ou ‘uma amiga minha’ já será suficiente. Se os temos, porque vamos ainda acrescentar que são nossos? Na mesma oração? Tão pertinho assim? Eu tenho = é meu. Será por uma questão de boa vizinhança, para que não tenhamos dúvidas (também se podem ter dúvidas, portanto nem tudo o que se tem é material ou faz barulho ensurdecedor)? É porque somos possessivos? Ou porque somos redundantes?!?
A redundância é um mecanismo muito traiçoeiro. Faz-nos ‘subir para cima’ e ‘descer para baixo’ vezes sem conta. Ou criar ‘elos de ligação’ complicados. Da redundância para a contradição é um pulinho. O que dizer da fantástica expressão ‘estar muito mal enganado’? Dizer-se que fulana foi ‘bem enganada’ (sorrisito matreiro) é perfeitamente aceitável. Mas ser-se enganado e estar-se enganado são circunstâncias que podem, ou não, coincidir. Se uma pessoa está ‘muito mal enganada’, caiu em redundância ou está completamente certa. Desde que não caia no esquecimento!


Publicado no Açoriano Oriental a 13 Junho 2010

07/06/2010

PSSST!


Parece que há uma ilha aqui
Parece uma vírgula mas não é (na verdade, é tão maltratada pelos portugueses como a própria da vírgula, que passa a vida a ser colocada nos locais mais impróprios…) e o seu lugar é por baixo do C que precede A, O, U. Apenas nestes casos, nada mais. Mas aqui é que está o busílis: não sei se por uma questão de conflito de personalidade da cedilha que, havendo perdido o norte, alapou e não mais largou outros C que dela não precisam; se por causa de alguma disfunção que impele o falante-“escrevinhante” a cecear incessantemente, intensificando desnecessariamente o som de sibilante do ‘cê cedilhado’ até ao cicio absoluto; se por ignorância. Não sei, até pode haver mais razões…
A cedilha é um sinal gráfico ou um diacrítico que se coloca sob o C antes das vogais A, O, U para indicar que deve ter o som de S inicial, como ‘sino’, ‘selo’ ou ‘sorte malvada’. Nos casos de E, I a cedilha é desnecessária. Ouviram? Não é preciso, obrigada, deixe estar, é muito gentil da sua parte mas não é necessário, a sério…
A cedilha não é exclusiva à língua portuguesa, nem sequer teve origem no Português, e encontra-se em línguas como castelhano, catalão, francês, albanês, letão, romeno ou turco — e em qualquer língua que tenha herdado fonemas das outras, como em inglês se usa «façade» para fachada, importado directamente do francês.
A çedilha deve ser usada com parçimónia e não apareçer desneçessariamente por aí, por çenas que não são dela. Estranho, não é? Então, já sabem, em caso de E, I cedilha fora vezes nada. E se há uma ilha em cedilha, respeitem as coordenadas geográficas e rodeiem-na de A, O, U por todos os lados. Ou pelo lado certo…


Publicado no Açoriano Oriental a 6 Junho 2010