Pela janela o vento frio entrava e atingia seu rosto, ajeitou seu velho casaco tentando agasalhar-se melhor, o chapéu que agora lhe fazia falta, havia deixado em sua casa. Da forma que saiu atropelado sem se despedir de parentes e dos amigos e estes últimos sim, era melhor esquecer por enquanto mesmo porque, quem seriam seus amigos na altura dos acontecimentos.
Desgostoso sentia o banco duro e frio em suas costas e o velho trem seguia seu curso, o barulho dos trilhos que embalava a muitos e encantava um casal de apaixonados que estava sentado á sua frente, nesse momento quase o irritava.
Taque,taque, taque...Piuíiiiiiii
Sua vida poderia ser comparada a esse velho trem, o movimento depois de acionado levaria um tempo para estabelecer parada. E quem estivesse na frente em alta velocidade sofreria sérias consequências, foi assim consigo. Jamais em sua humilde existência pensou em ceifar a vida de alguém, na verdade quando jovem vislumbrava um futuro promissor, seria um homem de posses, bem sucedido, teria família, um bom pai e um velho realizado. Aconteceu exatamente o contrário, apesar de todos os seus esforços hoje com quarenta e sete anos e muito trabalho, no caso todos medíocres sua linda e sonhada vida era como a de todos. Como se diz por ai vende-se o almoço para comprar a janta.
O tal casamento durou oito anos e lá se foi o imaginário grande amor, também verdade seja dita, Lurdinha era bonita demais para levar uma vida de miséria, se bem que ela poderia ter partido com outro e não com o seu patrão!Hoje é uma madame e ele quando a vê em seu carro de luxo já não sente mais a indignação dos anos passados. Ri intimamente, talvez seja essa sua única atitude louvável, ao casar-se com ela e estabelecer morada nessa cidade, ela teve a oportunidade de levar uma vida boa, tem filhos bonitos, é considerada uma senhora de respeito. hoje essas mágoas não o perturba mais , ela se foi assim como todos os seus sonhos.
Nesse momento o trem fez uma breve parada, ele olhou pelo vidro esfumaçado, algumas pessoas desceram, outras embarcaram, olhou para suas mãos e abrindo os dedos ficou imaginando seus sonhos escorrendo-se e na medida que o trem locomovia ele compreendia, devia continuar, mas bem que a sorte poderia ter ajudado.
Se fosse preciso daria a volta ao mundo, sua conciência era limpa!
Não brigou e nem agrediu , apenas tentou ajudar mas do jeito que aconteceu, nem ele acreditaria se fosse outra pessoa contando o ocorrido. As quatro da manhã todos os dias por anos a fio os funcionários do grande frigorífico acinavam os pontos e pegam duro no batente, entre eles haviam os desordeiros, falastrões que no final do dia antes de se dirigirem aos seus lares tinham o bar como suas paradas. Ele podia e devia passar no bar, era lá que fazia suas refeições há mais de dezessete anos, depois de uma rodada de sinuca e um dedo de prosa seguia seu rumo. Era impossível alguém ali não saber das rusgas de Morelli e Tonhão. Disputas infantis que não os levavam a nada, quedas de braços, lutas por espaços no trabalho , jogos de baralho, lutas livres, e por fim uma mulher no meio.
Que homem ali naquele lugar não conhecia Deise? Para começar seu nome verdadeiro era Sebastiana! Sua idade era um mistério, não é bonita, inteligente ou qualquer outra coisa. Por onde ela passa deixa um lastro de bravatas vazias, mas o amor é amor, é justo justissímo que esses dois iguais amem alguém do mesmo naipe. Um jogo que para ela levanta o ego, uma derrotada, infeliz uma pobre coitada sem eira nem beira.
Como? Ele? Justo ele que sempre foi um covarde se meteu em uma enrrascada dessa? Covarde sim, por que a anos devia ter partido dali, permaneceu na cidade se comprazendo da postura de coitado, o homem traído e humilhado pela ex mulher e o patrão. Esse título de coidado passou a ser seu modo de vida,merecia sim o que aconteceu...
No desenrolar dos trabalhos eles penduravam os quartos de bois nas carretilhas e perto do fim do dia percebeu os ânimos esquentados entre Morelli e Tonhão, a carretilha levava o material a outra cãmara e havia que conferir sistematicamente, eram tantas atividades, barulhos de serras e machados que se comunicavam aos berros. Em uma dessas vistorias estavam lá os dois rolando no chão entre socos e ponta pés. Tentou separar os dois e entrou em desespero ao avistar a aproximação do chefe se sessão. Apenas por estar ali poderia ser demitido , o chefe já havia dado ultimato aos dois, não seria mais permitido contendas no recinto.
Um quarto de carne , e outro e mais outro passava nas carretilhas, e ele desviava e gesticulava tentando aviza-los, alguns ganchos sem peças, uns altos outros mais baixos lambiam sua cabeça. Teve tempo de sair, esconder-se entre as peças, fazer qualquer coisa e não tomou atitude nenhuma.
A tragédia foi digna de filme, na briga todos sabiam Tonhão ficava cego e perdia a rasão, entre tapas e murros, o chefe chegando ele deu um soco que seria para Morelli, este desviando-se atingiu o chefe tão fortemente que o velho foi atirado longe. Por ironia do destino, não se sabe como, um dos ganchos entrou em suas costas saido pelo estômago e o chefe ficou pendurado como uma peça de abate, e a briga acabou em segundos.
Ele não viu que os dois brigões sairam correndo deixando-o sozinho, desesperado tentava ajudar, o controle da carretilha ficava em outro compartimento havia que desligar a chave, a maldita carretilha em movimento e ele ao lado gritando. Os olhos esbugalhados do velho em estado de pavor, quando ele disse que buscaria ajuda, sentiu a mão direita do velho puxando sua camisa com toda força agonizante, saiu gritando e o ambiente encheu-se de gente em minutos e a polícia também.
Na mão do moribundo estava o bolso da sua camisa e nele bordado seu nome, no puxar o velho o arrancou e ele nem viu , mas a polícia sim.
Foi preso na hora, sem chances de explicações, o que seria difícil, todos ali tinham motivos de sobras para dar cabo á vida daquele peste ruím. Nos quinze dias seguintes a esse fato, de uma cidade inteira restou sua tia Dete. Morelli e Tonhão; um era álibi do outro, sem contar que muitos confirmaram essa mentira,e finalmente o grande " coitado" agora era de fato, ele!
Sua verdade contada exaustivamente,esbarrava no maldito bolso, álibis dos outros e um fato comprometedor, o maldito chefe era pai de Lurdinha, sua ex. O cárcere seria sua morada e ponto final,o marido de Lurdinha com todo seu dinheiro teria todas as facilidades e de uma vez por todas um heroi de verdade.
Sua rotina era da sela para o interrogatório, em uma noite perto das onze horas, sentado no parapeito da janela, com as pernas para fora, abraçado ás velhas grades sem pinturas,os ferros ensebados pelas mãos dos infelizes, olhando as estrelas, os outros detentos dormindo a sono solto, ele pedia a Deus uma saída, só uma vez na vida, algo que fosse um milagre do qual ele pudesse acreditar que ele existia de verdade!
Lamentou mais uma vez, dando-se conta que, chorava sozinho de lavar as façes, e por dentro minuto a minuto nesse engodo que era sua existência. Fez um arremedo de preces, confundia fé com forças físicas, forçou as pernas e pressionou com as mãos fechadas na grade com toda sua força num ato inconsciente pedindo ajuda, e a velha grade cedeu do lado esquerdo e ele viu o reboco cair no terreno baldio, olhou os detentos e todos dormiam , forçou novamante e ela abriu descolando da parede.
Olhou as estrelas como se pudesse voar, se esgueirou como pode, pulou no chão e ganhou a noite escura!
De lembranças, os abraços de tia Dete e uma ajuda financeira para as passagens, sem lenço e sem documento andando mata a dentro por dias, e finalemente esse velho trem.
Não era mais um coitado.
Acreditava que, da mesma forma que esse milagre aconteceu eles iriam descobrir a verdade sobre a morte do velho. Limpar seu nome? Já de tempos não se importa com honras, seu caminho será outro, continuar sua vida o mais longe póssivel do passado. Ainda que seja para os homens um condenado, para ele um coitado, essa é sim uma nova chance! Se é Deus , se é milagre, se certo ou errado ele seguia, mas dessa vez com fé.
Taque , taque, taque...Piuíiiiiii