SALGADO, J. - TRAGEDIAS DA VIDA. Lisboa, Livaria e Antonio Maria Pereira - Editor, 1896. In-8.º (20,5 cm) de 446, [2] p. ; E.
1.ª edição.
Romance de pendor realista cuja acção decorre entre a região de Setúbal - Arrábida e Palmela - e Lisboa, sendo o ponto de partida para a narrativa o naufrágio de um navio.
Nada foi possível apurar acerca do autor - J. Salgado - ou da obra em si, já que não existem referências à mesma, e a Biblioteca Nacional não tem registo do livro.
"Quando o sol, no fim da tarde, baixava, illuminando com reflexos purpurinos as arestas recortadas dos montes, que ficam para além das grandes baterias denegridas, talhadas como prôas de gigantescos navios couraçados, do forte de S. Fillippe, quando o ultimo raio raio de luz se desprendeu soltou seu vôo do pico elevado da pittoresca Arrabida, o céu tinha uma côr pardacenta escura, o ar era abafadiço e quente, e das bandas do sul, da submersa Troia, um ventinho agudo soprava rijo.
Havia no ambiente um peso enorme, e o mar de uma côr escura e baça não reflectia já os vultos sombrios dos barcos ancorados.
Lá ao longe, pela barra dentro, as canôas de pesca, com a velinha a destacar-se da superfície enegrecida e tristemente calma do mar, como uma penna branca, entravam a todo o panno a procurar refugio; e á roda da mastreação immovel do navios do porto, as gaivotas em sinistro gritos e em curvas largas, davam aviso e um temporal bem proximo.
Depois o vento soprou mais forte ainda, encrespando a superficie tranquilla do mar e condensando grandes volumes de negras nuvens que se desfaziam em grossas cordas de chuva que innundavam a terra. [...]
De vez em quando ouvia-se na praia um clamor afflictivo envolto com o rugir do mar e gritos alarmantes de socorro; era a tempestade que atirava, sem piedade, a pique alguns dos barcos surtos nos abrigos do rio.
O vento era tão forte, o aguaceiro tão denso, que nem no mar nem na terra havia logar seguro. Entretanto, com pasmo de alguns curiosos entendidos, que de oculo em punho espreitavam por entre os rasgões que o vento fazia na cerração, para disfructar o mar, um vulto negro tentava franquear a barra. Era sem duvida um navio de lote que procurava abrigar-se á terra.
A noticia correu com insistencia e depressa. Aproveitando os momentos em que a chuva era impelida do mar pelos redemoinhos da ventania poude ver-se pelos oculos que o navio parecia pedir socorro.
Correu muita gente á praia.
- Está encalhado no baixo, dizia um velho piloto a quem o amor da arte levára a affrontar o tempo.
- Não está, anda para o norte; dizia o mestre Thomaz de oculo ao olho. Aquilo é rombo no casco.
- Vem desarvorado, sr. Thomaz?
- Tem partido o mastro da prôa, e tem só a vela da ré.
- Assim não chega elle cá, disse com tristeza o velho piloto.
- Talvez o mar o «empurre».
- Para o fundo, que é o que tem mais geito.
Os grupos formaram-se lentamente á beira do mar sem temor da chuva; os marinheiros envoltos nas capas de oleado e com grandes chapeus breados, os pescadores protegendo-se encostados aos cascos inclinados dos saveiros e das canôas que estavam em terra, outros com grandes chapeus de chuva, todos discutiam com interesse a situação penosa do barco que luctava para entrar a barra. [...]
- Deixe cá vêr o oculo, mestre, dizia o velho piloto de que já fallámos, a mestre Thomaz.
- Para que?
- Quero ver-lhe a bandeira.
- Não traz. Já estive vêr, pelo feitio do casco não o conheço; aquelle não é e cá. [...]
A chuva apertou mais e tão intensa, que tudo debandou da praia; a cerração fechou-se de todo, e a noite sobreveio.
Cada um recolheu prudentemente a casa, esperando que o dia seguinte lhe sorrisse melhor.
Pelas nove horas da noite, dizia-se que tinha apparecido um grande clarão de incendio para os lados da barra, mesmo debaixo d'aquella chuva, e que se havia tambem ouvido no mar o estampido agoirento de dois tiros de canhão.
No dia seguinte, quando despontou o dia, o navio tinha desapparecido e a barra estava socegada e só.
O mestre Thomaz e o tio Piloto lá estavam no seu ponto de observação na praia, fazendo conjecturas.
- Então, mestre Thomaz, foi para as sardinhas ou safou-se?
- Era o que eu tinha vontade de ver de perto, tio Piloto. [...]
- Bote vossê a canôa ao mar e vamos ver, mestre Thomaz.
- Está muito mau o mar, tio Piloto, e o vento é rijo.
- Vou eu ao leme, não tenha medo, disse o velho piloto, cheio de confiança e orgulho.
Mestre Thomaz deixou transparecer nos olhos pequeninos e fundos o relampago alegre de uma grande curiosidade satisfeita. Fechou o grande oculo que metteu no largo bolso da japona de estamenha azul, ageitou galhardamente o barrete escuro, e arrastando os tamancos, caminhou pela praia abaixo.
Sem soltar palavra, o tio Piloto segui-o cabisbaixo e pensativo.
Quando chegaram á praia, defronte do convento das Carmelitas cuja egreja tem hoje o nome da Annunciada, os dois empurraram com braços vigorosos para a agua um pequenino barco que estava em terra."
(Excerto do Cap. I)
Encadernação editorial cinza inteira de percalina com ferros gravados a seco e a ouro na pasta anterior e na lombada.
Exemplar em bom estado de conservação.
Muito raro.
Sem registo na BNP.
Indisponível