Depois de uma pequena interrupção, o L&LP volta ainda mais bem acompanhado...
quarta-feira, junho 24, 2015
Uma visão alimentar da hominização
Richard Wrangham, CATCHING FIRE: HOW COOKING MADE US HUMAN (1.ª ed. 2009), Londres: Profile Books, 2010, 309
páginas.
Wrangham apresenta uma interessante teoria da hominização assente num estudo da prática (mais ancestral do que se julga) de cozinhar os alimentos.
No capítulo 1, para chegar à formulação da hipótese que defende, o autor discorre sobre a ingestão exclusiva de alimentos crus, que requerem alimentação frequente ao longo do dia (e sensação constante de fome), perda de peso para quem está habituado a comida cozinhada e até perda do “apetite” sexual; isso deve-se à dificuldade do aparelho digestivo de processar os alimentos, o que exige o seu consumo em grandes quantidades e um uso constante daquele aparelho, com grande dispêndio de energia (é o caso das plantas, fibrosas, e da carne muscular, mesmo que intensamente mascada por dentes portentosos – daí que uma das coisas que os habilinos parecem ter feito intensamente com os instrumentos de pedra que a arqueologia lhes associa era martelar a carne, quebrando as fibras e facilitando a digestão, assim como a disponibilidade de energia para o crescimento do cérebro, tradeoff com o sistema digestivo, que Wrangham explicará melhor no capítulo 5).
No fim do capítulo 3 («The energy theory of cooking», p. 55ss), diz: «Cooked food is better than raw food because life is mostly concerned with energy. So from an evolutionary perspective, if cooking causes a loss of vitamins or creates a few long-term toxic compounds, the effect is relatively unimportant compared to the impact of more calories. A female chimpanzee with a better diet gives birth more often and her offspring have better survival rates. In subsistence cultures, better-fed mothers have more and healthier children. In addition to more offspring, they have greater competitive ability, better survival, and longer lives. When our ancestors first obtained extra calories by cooking their food, they and their descendants passed on more genes than others of their species who ate raw. The result was a new evolutionary opportunity.» (p. 81).
No fim do capítulo 4 («When cooking began» p. 83ss), depois de ter defendido que o nosso aparelho digestivo atual, dentição e tamanho da boca são resultados de uma adaptação aos alimentos cozinhados iniciada pelos habilinos que sucederam aos australopitecos (e que, por sua vez, resultavam do início de consumo de carne por estes), diz: «If Homo erectus used fire, however, they could sleep in the same way as people do nowadays in the savanna. In the bush, people lie close to the fire and for most or all of the night someone is awake. […] The control of fire could explain why Homo erectus lost their climbing ability. The normal assumption is that when long legs were favored, perhaps as a result of the increasing importance of long-distance travel as humans searched for meat, it was harder for humans to climb efficiently, and Homo erectus therefore abandoned the trees. But since that argument does not explain how Homo erectus could sleep safely, I prefer an alternative hypothesis: having controlled fire, a group of habilines learned that they could sleep safely on the ground.» (pp. 101-102). O controle do fogo e a prática de cozinhar alimentos seguiram-se com grande proximidade temporal.
No capítulo 5 (“Brain foods”, p. 105ss), o autor aborda a teoria do “social brain” («Evolutionary psychologist Robin Dunbar found that primates with bigger brains or more neocortex live in larger groups, have a greater number of close social relationships, and use coalitions more effectively than those with smaller brains. […] The result is a soap opera of changing affections, alliances, and hostilities, and a constant pressure to outsmart others», pp. 107-108) e a proposta de 1995 de Leslie Aiello e Peter Wheeler segundo a qual os animais com grandes cérebros e bocas pequenas desenvolveram dietas de alta qualidade nutritiva (por causa do tradeoff já referido supra); assim, «The constant energy demand of brain cells continues even when times are though, such as when food is scarce or an infection is raging. The first requirement for evolving a big brain is the ability to fuel it, and to do it so reliably» (p. 110).
Mas Wrangham discorda de Aiello e Wheeler porque estes atribuem a comida cozinhada ao aparecimento do Homo heidebergensis, antecessor do Sapiens, que o autor faz recuar aos habilinos antecessores do Erectus, esclarecendo: «Dietary shifts toward roots, meat eating, and meat processing [p.e., martelada com instrumentos] thus can explain the growth in brains from a chimpazee-like ancestor at six million years ago to the habilines around two million years ago [daí as espécies diferentes de australopitecos, cada vez mais encorpados]. From then on, the increases in brain size were more continuous. The habiline cranial capacity of 612 cubic centimeters rose over 40 percent to reach an average of 870 cubic centimeters in the earliest Homo erectus. The significance of this rise is complicated by a parallel growth in body weight, from the lowly 32 to 37 kilograms of habilines to a substantial 56 to 66 kilograms in Homo erectus. Unfortunately, body weights are hard to estimate accurately from bones, and the number of specimens is small, so how much larger relative to body weight the brains of the first Homo erectus were than those of habilines, or wether they were relatively larger at all, is uncertain. However, Homo erectus brains continued to increase in size after 1.8 million years ago, averaging almost 950 cubic centimeters by 1 million years ago. […] The fourth notable increase in cranial capacity occurred with the emergence of Homo heidelbergensis after eight hundred thousand years ago. The increase was again substantial, leading to a brain occupying around 1,200 cubic centimeters» (pp. 120-121).
A evolução do Homo heidelbergensis até ao Sapiens sapiens (com 1400 centímetros cúbicos, um salto já “pequeno”) explicar-se-á por melhorias nos métodos de cozinhar a comida, como aqueles que se observam ainda em determinados povos “primitivos”, p.e., cozer em água onde se mergulham pedras aquecidas ou usá-las como tostadeiras com a carne no meio ou ainda enterrando-as (pedras ou lenha em brasa) com a carne e vários condimentos num género de panela subterrânea (p. 123ss).
No capítulo 6 (“How Cooking Frees Men”, p. 129ss), é tratado um aspeto decorrente dos anteriores – o modo como os novos hábitos alimentares libertaram o tempo do Homem da preocupação e necessidade constante de comer, digerir e defecar, de modo bem apanhado na epígrafe: «Voracious animals… both feed continually and as incessantly eliminate, leading a life truly inimical to philosophy and music, as Plato has said, whereas nobler and more perfect animals neither eat nor eliminate continually.» (Galeno, Sobre a Utilidade das Diferentes Partes do Corpo); neste capítulo, o autor refuta a ideia da divisão sexual do trabalho baseada na caça dos machos complementada pela recoleção das fémeas, dado que, segundo diz, baseando-se na observação de primatas atuais, «A division of labor into hunting and gathering would not have afforded consumption of sufficient calories, as long as the food was consumed raw» (p. 145).
No capítulo seguinte (“The Married Cook”, p. 147ss), Wrangham expõe a teoria de que a divisão sexual do trabalho (e o casamento) está baseada na comida cozinhada, o que se constata nos povos primitivos atuais ser um facto antropológico universal; a divisão não se baseia no facto de o homem ser caçador, mas protector do alimento da fémea dentro da comunidade: «A male used his social power both to ensure that a female did not lose her food, and to guarantee his own meal by assigning the work of cooking to the female» (p. 155); em troca, a mulher cozinha para ele. Wrangham diz ser esta a base do casamento enquanto instituição, pelo que na generalidade das sociedades primitivas a fidelidade conjugal não era nem é condição do casamento ou socialmente imposta.
Não menos importante é a ideia do fogo conjugal e da comida aí cozinhada como propriedade privada da família e inviolável por outros membros da comunidade, o que parece ser também uma regra antropológica universal e que tornou sociedades ainda muito densamente “comunitárias” numa rede de cápsulas ou domínios privados – famílias (nestas, a protecção dada pelo homem à mulher era estendida aos filhos de ambos, e os “direitos” à comida e à protecção detidos pela mulher em troca da cozinha também eram os direitos dos seus filhos).
No capítulo final (“The Cook’s Journey”, p. 179ss), que relembra a famosa frase de Jean Anthelme Brillat-Savarin [1755-1826] «diz-me o que comes, dir-te-ei quem és» (The Phisiology of Taste: Or Meditations on Transcendental Gastronomy, 1825), leva Wrangham a abordar as mudanças fisiológicas provocadas pela comida cozinhada que, entre outras coisas, nos terá permitido correr e deslocar-nos mais graças a uma alimentação rica em proteínas eficazmente assimiladas por via do aquecimento antes da ingestão – e que nos levou provavelmente depois a perder pêlo no corpo para evitar o sobreaquecimento que afeta os primatas atuais quando correm (só depois o fogo foi usado para aquecimento contra o ambiente frio, pois a sua utilidade primeira, além da cozinha, era a defesa contra predadores).
Outro aspeto é que o comportamento social da espécie deve ter-se alterado pela necessidade de controlar instintos violentos quando se estava à volta do fogo a comer (mais uma vez compara com os comportamentos contrários dos primatas atuais); o mesmo é dizer que os indivíduos mais capazes desse autocontrolo eram melhor sucedidos em sociedade e que esse comportamento “novo” foi selecionado, tal como aconteceu com os primeiros cães, que tiveram de controlar a sua violência inata quando começaram a especializar-se em comer restos junto a comunidades humanas, sendo assim “selecionados” com a vantagem de uma alimentação melhor sobre os mais violentos.
No epílogo (p. 195ss), o autor chama atenção para a necessidade de se perceber melhor a biofísica nutricional porque os nutricionistas têm estado, por uma questão intracultural do seu ramo do saber, excessiva e erroneamente focados em aspetos químicos dos alimentos e menos no processo digestivo e na forma como este altera e absorve os alimentos – por exemplo, estudando a digestão das proteínas (quimicamente consideradas), mas não da carne na sua realidade física mais complexa: «They forget that our digestive enzymes interact not with free proteins but with a slimy three-dimensional bolus, which after a meal of meat is a messy collection of chewed chunks of muscle, each piece of which is wrapped in multilayered tubes of connective tissue. […] Nutritionists cannot calculate the value of foods directly because foods are too complicated in their composition and structure, and digestive systems treat different foods in different ways» (pp. 196-197).
As regras estabelecidas pelos nutricionistas ainda se baseiam nas criadas por Wilbur Olin Atwater (1844-1907), que identificou como fontes de energia nos alimentos a proteína, a gordura e os hidratos de carbono (os 3 macronutrientes), criando um método para medir a quantidade de calor libertada por cada um dos três em diferentes alimentos, uma vez queimados – assim, por exemplo, as proteínas, em geral (em alimentos diversos), libertam um pouco mais de 4 quilocalorias por grama. Atwater dissolveu a gordura em éter, conseguindo quantificar os lípidos; para as proteínas, quantificou o nitrogénio (em geral, cerca de 16% do peso de uma proteína); e para os hidratos de carbono, que não são quantificáveis, teve de estimá-los por exclusão de partes a partir da quantificação da matéria orgânica total de determinado alimento, queimando-o até ficar só a cinza mineral, que é a parte inorgânica.
Restava saber o que é digerido: a análise de fezes de pessoas que ingeriam dietas previamene quantificadas foi o caminho e levou-o a constatar que a relação entre os três macronutrientes não sofria alterações significativas, podendo propor os fatores gerais de Atwater, ainda hoje canónicos: em média, proteínas e hidratos de carbono geram cada 4 kcal/grama, enquanto os lípidos geram 9 kcal/grama; embora as variações entre alimentos diferentes (ou a proporção de nitrogénio nas proteínas) tenham sido reconhecidas e ponderadas a partir de 1955, a verdade é que as medições mais precisas e específicas não alteram assim tanto os fatores gerais. Os problemas são outros: Atwater não reconheceu que a digestão é um processo custoso, aumentando o nosso metabolismo até 25% (nada que se compare aos 136% dos peixes ou 687% das cobras), dependendo do tipo e qualidade dos alimentos, e que consome mais ou menos matéria orgânica ingerida (calorias) no seu próprio processo; assim, «Protein costs more to digest than carbohydrates, while fat has the lowest digestive cost of all macronutrients.» (p. 202). Se eu comer muitas calorias na forma de hidratos de carbono vou pesar tanto como alguém que coma muito menos calorias mas as ingira por meio de gordura; o número de vezes que se come, o tamanho dos bocados engolidos e a temperatura a que são ingeridos facilitam ou dificultam a digestão, afetando a quantidade de calorias que são absorvidas no fim.
O segundo problema com o sistema de Atwater diz respeito à indiferença que tem sobre a preparação dos alimentos (cozinhados ou crus, líquidos ou sólidos, mais ou menos fibrosos), o que já se viu afetar a digestão (facilita-a ou dificulta-a) e a quantidade de calorias absorvidas no fim. A forma tão variável como hoje os mesmos alimentos são tratados e preparados antes de vendidos torna os fatores gerais um guia insuficiente para compreendermos os efeitos da alimentação no peso e na saúde dos nossos semelhantes.
Wrangham apresenta uma interessante teoria da hominização assente num estudo da prática (mais ancestral do que se julga) de cozinhar os alimentos.
No capítulo 1, para chegar à formulação da hipótese que defende, o autor discorre sobre a ingestão exclusiva de alimentos crus, que requerem alimentação frequente ao longo do dia (e sensação constante de fome), perda de peso para quem está habituado a comida cozinhada e até perda do “apetite” sexual; isso deve-se à dificuldade do aparelho digestivo de processar os alimentos, o que exige o seu consumo em grandes quantidades e um uso constante daquele aparelho, com grande dispêndio de energia (é o caso das plantas, fibrosas, e da carne muscular, mesmo que intensamente mascada por dentes portentosos – daí que uma das coisas que os habilinos parecem ter feito intensamente com os instrumentos de pedra que a arqueologia lhes associa era martelar a carne, quebrando as fibras e facilitando a digestão, assim como a disponibilidade de energia para o crescimento do cérebro, tradeoff com o sistema digestivo, que Wrangham explicará melhor no capítulo 5).
No fim do capítulo 3 («The energy theory of cooking», p. 55ss), diz: «Cooked food is better than raw food because life is mostly concerned with energy. So from an evolutionary perspective, if cooking causes a loss of vitamins or creates a few long-term toxic compounds, the effect is relatively unimportant compared to the impact of more calories. A female chimpanzee with a better diet gives birth more often and her offspring have better survival rates. In subsistence cultures, better-fed mothers have more and healthier children. In addition to more offspring, they have greater competitive ability, better survival, and longer lives. When our ancestors first obtained extra calories by cooking their food, they and their descendants passed on more genes than others of their species who ate raw. The result was a new evolutionary opportunity.» (p. 81).
No fim do capítulo 4 («When cooking began» p. 83ss), depois de ter defendido que o nosso aparelho digestivo atual, dentição e tamanho da boca são resultados de uma adaptação aos alimentos cozinhados iniciada pelos habilinos que sucederam aos australopitecos (e que, por sua vez, resultavam do início de consumo de carne por estes), diz: «If Homo erectus used fire, however, they could sleep in the same way as people do nowadays in the savanna. In the bush, people lie close to the fire and for most or all of the night someone is awake. […] The control of fire could explain why Homo erectus lost their climbing ability. The normal assumption is that when long legs were favored, perhaps as a result of the increasing importance of long-distance travel as humans searched for meat, it was harder for humans to climb efficiently, and Homo erectus therefore abandoned the trees. But since that argument does not explain how Homo erectus could sleep safely, I prefer an alternative hypothesis: having controlled fire, a group of habilines learned that they could sleep safely on the ground.» (pp. 101-102). O controle do fogo e a prática de cozinhar alimentos seguiram-se com grande proximidade temporal.
No capítulo 5 (“Brain foods”, p. 105ss), o autor aborda a teoria do “social brain” («Evolutionary psychologist Robin Dunbar found that primates with bigger brains or more neocortex live in larger groups, have a greater number of close social relationships, and use coalitions more effectively than those with smaller brains. […] The result is a soap opera of changing affections, alliances, and hostilities, and a constant pressure to outsmart others», pp. 107-108) e a proposta de 1995 de Leslie Aiello e Peter Wheeler segundo a qual os animais com grandes cérebros e bocas pequenas desenvolveram dietas de alta qualidade nutritiva (por causa do tradeoff já referido supra); assim, «The constant energy demand of brain cells continues even when times are though, such as when food is scarce or an infection is raging. The first requirement for evolving a big brain is the ability to fuel it, and to do it so reliably» (p. 110).
Mas Wrangham discorda de Aiello e Wheeler porque estes atribuem a comida cozinhada ao aparecimento do Homo heidebergensis, antecessor do Sapiens, que o autor faz recuar aos habilinos antecessores do Erectus, esclarecendo: «Dietary shifts toward roots, meat eating, and meat processing [p.e., martelada com instrumentos] thus can explain the growth in brains from a chimpazee-like ancestor at six million years ago to the habilines around two million years ago [daí as espécies diferentes de australopitecos, cada vez mais encorpados]. From then on, the increases in brain size were more continuous. The habiline cranial capacity of 612 cubic centimeters rose over 40 percent to reach an average of 870 cubic centimeters in the earliest Homo erectus. The significance of this rise is complicated by a parallel growth in body weight, from the lowly 32 to 37 kilograms of habilines to a substantial 56 to 66 kilograms in Homo erectus. Unfortunately, body weights are hard to estimate accurately from bones, and the number of specimens is small, so how much larger relative to body weight the brains of the first Homo erectus were than those of habilines, or wether they were relatively larger at all, is uncertain. However, Homo erectus brains continued to increase in size after 1.8 million years ago, averaging almost 950 cubic centimeters by 1 million years ago. […] The fourth notable increase in cranial capacity occurred with the emergence of Homo heidelbergensis after eight hundred thousand years ago. The increase was again substantial, leading to a brain occupying around 1,200 cubic centimeters» (pp. 120-121).
A evolução do Homo heidelbergensis até ao Sapiens sapiens (com 1400 centímetros cúbicos, um salto já “pequeno”) explicar-se-á por melhorias nos métodos de cozinhar a comida, como aqueles que se observam ainda em determinados povos “primitivos”, p.e., cozer em água onde se mergulham pedras aquecidas ou usá-las como tostadeiras com a carne no meio ou ainda enterrando-as (pedras ou lenha em brasa) com a carne e vários condimentos num género de panela subterrânea (p. 123ss).
No capítulo 6 (“How Cooking Frees Men”, p. 129ss), é tratado um aspeto decorrente dos anteriores – o modo como os novos hábitos alimentares libertaram o tempo do Homem da preocupação e necessidade constante de comer, digerir e defecar, de modo bem apanhado na epígrafe: «Voracious animals… both feed continually and as incessantly eliminate, leading a life truly inimical to philosophy and music, as Plato has said, whereas nobler and more perfect animals neither eat nor eliminate continually.» (Galeno, Sobre a Utilidade das Diferentes Partes do Corpo); neste capítulo, o autor refuta a ideia da divisão sexual do trabalho baseada na caça dos machos complementada pela recoleção das fémeas, dado que, segundo diz, baseando-se na observação de primatas atuais, «A division of labor into hunting and gathering would not have afforded consumption of sufficient calories, as long as the food was consumed raw» (p. 145).
No capítulo seguinte (“The Married Cook”, p. 147ss), Wrangham expõe a teoria de que a divisão sexual do trabalho (e o casamento) está baseada na comida cozinhada, o que se constata nos povos primitivos atuais ser um facto antropológico universal; a divisão não se baseia no facto de o homem ser caçador, mas protector do alimento da fémea dentro da comunidade: «A male used his social power both to ensure that a female did not lose her food, and to guarantee his own meal by assigning the work of cooking to the female» (p. 155); em troca, a mulher cozinha para ele. Wrangham diz ser esta a base do casamento enquanto instituição, pelo que na generalidade das sociedades primitivas a fidelidade conjugal não era nem é condição do casamento ou socialmente imposta.
Não menos importante é a ideia do fogo conjugal e da comida aí cozinhada como propriedade privada da família e inviolável por outros membros da comunidade, o que parece ser também uma regra antropológica universal e que tornou sociedades ainda muito densamente “comunitárias” numa rede de cápsulas ou domínios privados – famílias (nestas, a protecção dada pelo homem à mulher era estendida aos filhos de ambos, e os “direitos” à comida e à protecção detidos pela mulher em troca da cozinha também eram os direitos dos seus filhos).
No capítulo final (“The Cook’s Journey”, p. 179ss), que relembra a famosa frase de Jean Anthelme Brillat-Savarin [1755-1826] «diz-me o que comes, dir-te-ei quem és» (The Phisiology of Taste: Or Meditations on Transcendental Gastronomy, 1825), leva Wrangham a abordar as mudanças fisiológicas provocadas pela comida cozinhada que, entre outras coisas, nos terá permitido correr e deslocar-nos mais graças a uma alimentação rica em proteínas eficazmente assimiladas por via do aquecimento antes da ingestão – e que nos levou provavelmente depois a perder pêlo no corpo para evitar o sobreaquecimento que afeta os primatas atuais quando correm (só depois o fogo foi usado para aquecimento contra o ambiente frio, pois a sua utilidade primeira, além da cozinha, era a defesa contra predadores).
Outro aspeto é que o comportamento social da espécie deve ter-se alterado pela necessidade de controlar instintos violentos quando se estava à volta do fogo a comer (mais uma vez compara com os comportamentos contrários dos primatas atuais); o mesmo é dizer que os indivíduos mais capazes desse autocontrolo eram melhor sucedidos em sociedade e que esse comportamento “novo” foi selecionado, tal como aconteceu com os primeiros cães, que tiveram de controlar a sua violência inata quando começaram a especializar-se em comer restos junto a comunidades humanas, sendo assim “selecionados” com a vantagem de uma alimentação melhor sobre os mais violentos.
No epílogo (p. 195ss), o autor chama atenção para a necessidade de se perceber melhor a biofísica nutricional porque os nutricionistas têm estado, por uma questão intracultural do seu ramo do saber, excessiva e erroneamente focados em aspetos químicos dos alimentos e menos no processo digestivo e na forma como este altera e absorve os alimentos – por exemplo, estudando a digestão das proteínas (quimicamente consideradas), mas não da carne na sua realidade física mais complexa: «They forget that our digestive enzymes interact not with free proteins but with a slimy three-dimensional bolus, which after a meal of meat is a messy collection of chewed chunks of muscle, each piece of which is wrapped in multilayered tubes of connective tissue. […] Nutritionists cannot calculate the value of foods directly because foods are too complicated in their composition and structure, and digestive systems treat different foods in different ways» (pp. 196-197).
As regras estabelecidas pelos nutricionistas ainda se baseiam nas criadas por Wilbur Olin Atwater (1844-1907), que identificou como fontes de energia nos alimentos a proteína, a gordura e os hidratos de carbono (os 3 macronutrientes), criando um método para medir a quantidade de calor libertada por cada um dos três em diferentes alimentos, uma vez queimados – assim, por exemplo, as proteínas, em geral (em alimentos diversos), libertam um pouco mais de 4 quilocalorias por grama. Atwater dissolveu a gordura em éter, conseguindo quantificar os lípidos; para as proteínas, quantificou o nitrogénio (em geral, cerca de 16% do peso de uma proteína); e para os hidratos de carbono, que não são quantificáveis, teve de estimá-los por exclusão de partes a partir da quantificação da matéria orgânica total de determinado alimento, queimando-o até ficar só a cinza mineral, que é a parte inorgânica.
Restava saber o que é digerido: a análise de fezes de pessoas que ingeriam dietas previamene quantificadas foi o caminho e levou-o a constatar que a relação entre os três macronutrientes não sofria alterações significativas, podendo propor os fatores gerais de Atwater, ainda hoje canónicos: em média, proteínas e hidratos de carbono geram cada 4 kcal/grama, enquanto os lípidos geram 9 kcal/grama; embora as variações entre alimentos diferentes (ou a proporção de nitrogénio nas proteínas) tenham sido reconhecidas e ponderadas a partir de 1955, a verdade é que as medições mais precisas e específicas não alteram assim tanto os fatores gerais. Os problemas são outros: Atwater não reconheceu que a digestão é um processo custoso, aumentando o nosso metabolismo até 25% (nada que se compare aos 136% dos peixes ou 687% das cobras), dependendo do tipo e qualidade dos alimentos, e que consome mais ou menos matéria orgânica ingerida (calorias) no seu próprio processo; assim, «Protein costs more to digest than carbohydrates, while fat has the lowest digestive cost of all macronutrients.» (p. 202). Se eu comer muitas calorias na forma de hidratos de carbono vou pesar tanto como alguém que coma muito menos calorias mas as ingira por meio de gordura; o número de vezes que se come, o tamanho dos bocados engolidos e a temperatura a que são ingeridos facilitam ou dificultam a digestão, afetando a quantidade de calorias que são absorvidas no fim.
O segundo problema com o sistema de Atwater diz respeito à indiferença que tem sobre a preparação dos alimentos (cozinhados ou crus, líquidos ou sólidos, mais ou menos fibrosos), o que já se viu afetar a digestão (facilita-a ou dificulta-a) e a quantidade de calorias absorvidas no fim. A forma tão variável como hoje os mesmos alimentos são tratados e preparados antes de vendidos torna os fatores gerais um guia insuficiente para compreendermos os efeitos da alimentação no peso e na saúde dos nossos semelhantes.
terça-feira, junho 23, 2015
Jónatas Machado e o igualitarismo religioso
A igualdade de direitos religiosos dos cidadãos não implica o igualitarismo jurídico das entidades coletivas religiosas.
A questão da igualdade jurídica dos agentes religiosos colectivos é muito complexa e perigosa, pois cai facilmente num igualitarismo alicerçado num geometrismo jurídico e, eventualmente, em práticas de discriminação positiva que catapultam o Estado como agente “corrector” da realidade social e histórica.
A desigualdade factual destes agentes colectivos, patente na relação institucional do Estado com cada um deles (ou em fórmulas de explicitação e regulação de relação com um ou vários sem existir com outros), não é incompatível com uma igualdade jurídica dos cidadãos alicerçada nas liberdades de autodeterminação e associação religiosas. A diferente representatividade sociológica ou histórica dos agentes colectivos religiosos, bem como o respetivo grau de integração institucional que eles tenham a nível nacional e internacional (pense-se na Igreja Católica, na Convenção Baptista Portuguesa e numa qualquer igreja local independente, por exemplo), pode justificar diferenças formais e informais de relação do Estado com eles; caso contrário, ter-se-ia de assumir que a ordem jurídica deveria fazer tábua rasa da própria configuração cultural e orgânica da realidade social, querendo sujeitá-la e moldá-la a um esquema de relações pré-concebido.
Essa relação com o Estado pode dizer respeito a aspetos simbólicos, protocolares ou à protecção da presença confessional em espaços públicos (enquanto geridos pelo Estado). É neste contexto que o exercício de igualitarismo jurídico de Jónatas Machado (O regime concordatário entre a “libertas ecclesiae” e a liberdade religiosa, Coimbra Editora, 1993) resulta inconsequente para a questão verdadeiramente central do ponto de vista da cidadania e que é a da liberdade de autodeterminação e associação do indivíduo; o autor pouco mais consegue defender do que a superioridade geométrica do modelo de que é partidário, de exclusão do regime concordatário com a Igreja Católica no nosso ordenamento jurídico, sem provar em que é que ele fere aquela questão central da cidadania ou a liberdade associativa dos agentes religiosos colectivos não abrangidos por aquele regime.
Do tratamento desigual dos agentes colectivos (no âmbito do Direito Público, a que pertence) deve, no entanto, excluir-se a prática de um tratamento desigual em termos fiscais (tanto de isenções como de benefícios), pois neste plano a desigualdade estaria a afectar a igualdade perante a lei dos cidadãos enquanto contribuintes e a beliscar um princípio fundamental do Direito Público (universalidade das regras de tratamento fiscal e proporcionalidade).
O âmbito das liberdades de autodeterminação e associação dos indivíduos é, evidentemente, o Direito Privado (civil) e só ligado ao Direito Público (constitucional) na proclamação que este fizer de direitos, liberdades e garantias (do indivíduo), assim fundando superiormente a sua materialização plena e consequente no Direito Privado. É neste âmbito que o Estado nada deverá poder fazer, nomeadamente, em termos de condicionamento da actividade dos agentes religiosos colectivos e da tendência que possam ter para incrementar o seu peso sociológico – e, portanto, a configuração religiosa da sociedade civil.
A questão da igualdade jurídica dos agentes religiosos colectivos é muito complexa e perigosa, pois cai facilmente num igualitarismo alicerçado num geometrismo jurídico e, eventualmente, em práticas de discriminação positiva que catapultam o Estado como agente “corrector” da realidade social e histórica.
A desigualdade factual destes agentes colectivos, patente na relação institucional do Estado com cada um deles (ou em fórmulas de explicitação e regulação de relação com um ou vários sem existir com outros), não é incompatível com uma igualdade jurídica dos cidadãos alicerçada nas liberdades de autodeterminação e associação religiosas. A diferente representatividade sociológica ou histórica dos agentes colectivos religiosos, bem como o respetivo grau de integração institucional que eles tenham a nível nacional e internacional (pense-se na Igreja Católica, na Convenção Baptista Portuguesa e numa qualquer igreja local independente, por exemplo), pode justificar diferenças formais e informais de relação do Estado com eles; caso contrário, ter-se-ia de assumir que a ordem jurídica deveria fazer tábua rasa da própria configuração cultural e orgânica da realidade social, querendo sujeitá-la e moldá-la a um esquema de relações pré-concebido.
Essa relação com o Estado pode dizer respeito a aspetos simbólicos, protocolares ou à protecção da presença confessional em espaços públicos (enquanto geridos pelo Estado). É neste contexto que o exercício de igualitarismo jurídico de Jónatas Machado (O regime concordatário entre a “libertas ecclesiae” e a liberdade religiosa, Coimbra Editora, 1993) resulta inconsequente para a questão verdadeiramente central do ponto de vista da cidadania e que é a da liberdade de autodeterminação e associação do indivíduo; o autor pouco mais consegue defender do que a superioridade geométrica do modelo de que é partidário, de exclusão do regime concordatário com a Igreja Católica no nosso ordenamento jurídico, sem provar em que é que ele fere aquela questão central da cidadania ou a liberdade associativa dos agentes religiosos colectivos não abrangidos por aquele regime.
Do tratamento desigual dos agentes colectivos (no âmbito do Direito Público, a que pertence) deve, no entanto, excluir-se a prática de um tratamento desigual em termos fiscais (tanto de isenções como de benefícios), pois neste plano a desigualdade estaria a afectar a igualdade perante a lei dos cidadãos enquanto contribuintes e a beliscar um princípio fundamental do Direito Público (universalidade das regras de tratamento fiscal e proporcionalidade).
O âmbito das liberdades de autodeterminação e associação dos indivíduos é, evidentemente, o Direito Privado (civil) e só ligado ao Direito Público (constitucional) na proclamação que este fizer de direitos, liberdades e garantias (do indivíduo), assim fundando superiormente a sua materialização plena e consequente no Direito Privado. É neste âmbito que o Estado nada deverá poder fazer, nomeadamente, em termos de condicionamento da actividade dos agentes religiosos colectivos e da tendência que possam ter para incrementar o seu peso sociológico – e, portanto, a configuração religiosa da sociedade civil.
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