sexta-feira, novembro 30, 2012

Ernesto Ferreira (1913-2012): um autor de referência

Ernesto Ferreira, A Verdade Cristã: À Luz da Razão, da Revelação Divina e da Tradição, Sabugo: Publicadora Servir, 2012, 288 páginas.

Em abril deste ano, quando completou 99 anos, o pastor adventista Ernesto Ferreira, publicou o seu quinto livro. Estava já cego e ditou-o a um irmão na fé. Pelo carácter sistemático e abundância de notas e referências a outros autores, ninguém diria tratar-se de uma obra escrita nestas condições. Mas seria preciso não conhecer Ernesto Ferreira para pensar que, apesar de todas as limitações de que já sofria, ele não faria um livro à altura dos anteriores. Nos seus livros e nos muitos artigos que publicou na Revista Adventista (e também na revista Sinais dos Tempos), o pastor Ferreira mostrou sempre as mesmas características de um trabalho metódico, erudito e firme nos seus princípios – e assim se manteve até ao fim, mesmo quando já lhe faltava a visão. Convém, no entanto, lembrar que essa atividade intelectual residia num homem de ação consagrado ao Evangelho – durante décadas, foi pastor, várias vezes presidente da União Portuguesa dos Adventistas do Sétimo Dia, docente e diretor de estabelecimentos de ensino adventistas e responsável (de 1958 a 1968) pelo campo missionário adventista em Angola.
Em 2008, o pastor Ferreira publicou Arautos de Boas Novas, uma volumosa história do centenário da Igreja Adventista do Sétimo Dia em Portugal. Os seus livros anteriores, nomeadamente O Senhor Vem (1971) e Edificados sobre a Rocha (1987), são sólidas obras de teologia dogmática, exemplarmente assentes na Bíblia e nos comentários dos grandes autores cristãos de todos os tempos, entre os quais o autor situa, em lugar de destaque, os reformadores do século XVI. Digamo-lo sem rodeios: sabemos que os Adventistas, durante muito tempo, eram vistos pelos protestantes «históricos» como um grupo estranho, uma «seita» com peculiaridades mais ou menos inaceitáveis. Ora, os livros citados de Ernesto Ferreira mostram, pelo contrário, que essas peculiaridades (guardar o sábado ou seguir determinadas prescrições alimentares) não são suficientes para colocar os Adventistas de fora da grande família das denominações diretamente herdeiras da Reforma. Aquilo que é valorizado na sua escrita é mais representativo das «cinco solas» do que daquelas especificidades – mesmo quando se trata de citar a grande figura fundadora do Adventismo, Ellen G. White. Porque, como diz o pastor Ferreira, «na verdade, desde o princípio até ao fim, tanto para Lutero, Armínio e Wesley, como para nós, Cristo, e só Cristo, é a nossa Justiça» (A Verdade Cristã, p. 88). No novo livro, como nos anteriores, a senhora White é mais citada para mostrar a sua concordância com a tradição reformada do que para vincar o que é específico da denominação adventista.

O livro A Verdade Cristã está organizado em três partes, nas quais se analisa a fé, respetivamente, à luz da razão, da revelação e da tradição. A primeira trata das dúvidas que à sombra da razão se têm lançado sobre essas crenças fundamentais dos cristãos (nomeadamente, a morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus), que são rebatidas pelo autor no âmbito da própria discussão racional. A segunda parte, a mais extensa, é uma exposição das crenças cristãs à luz da Bíblia, desde os temas tradicionais da dogmática (a divindade de Jesus, o papel de Cristo no plano divino da Salvação, a natureza do Espírito Santo e o significado do Batismo e da Santa Ceia) até outros mais específicos como as questões da santificação, da oração, das controvérsias sobre o livre-arbítrio ou a fé e as obras, os ministérios na Igreja, mas também as questões do sábado (vs. guardar o domingo), da Segunda Vinda de Jesus e da imortalidade condicional, que são temas mais habituais na literatura adventista. Na terceira e última parte, também longa, é-nos apresentada uma série de relevantes problemas teológicos levantados pela história cristã e pelas divergentes interpretações de que foram alvo entre cristãos e em relação com as quais se foi forjando uma identidade protestante, de que o pastor Ferreira é nesta obra um defensor consistente e estimulante; assim, esta última parte do livro é, em grande medida, um demorado comentário das principais práticas e diferenças do catolicismo em relação ao protestantismo, abordando – num tom um pouco mais polémico – problemas como os livros deuterocanónicos, o culto das imagens, o número dos sacramentos reconhecidos, a conceção teológica da Santa Ceia, o Purgatório (que, entretanto, o Papa aboliu «por decreto») ou a ideia da sucessão apostólica linear e pessoal na Igreja. Traçada assim a estrutura da obra, pode dizer-se, resumidamente, que a primeira e terceira partes são exercícios de controvérsia na boa tradição literária cristã, enquanto a segunda parte é uma reapresentação, mais resumida, dos temas da dogmática de uma perspetiva protestante já expostos nos livros O Senhor Vem e Edificados sobre a Rocha.

Dois traços da linha argumentativa usada pelo pastor Ferreira são o constante recurso às Sagradas Escrituras para sustentar as suas afirmações – frequentemente elucidando a etimologia hebraica e grega das palavras e expressões mais importantes – e as ligações históricas que muitas vezes propõe para demonstrar como as conceções da Reforma estão bem ancoradas na mais antiga e mais sã tradição teológica, em particular a da Patrística, como quando cita esta frase de Jerónimo no século IV, que julgaríamos pronunciada por Lutero ou Calvino quase doze séculos depois: «Tudo o que é ensinado sem a autoridade e sem o testemunho da Escritura, sob pretexto de tradição apostólica, é ferido pela espada de Cristo» (A Verdade Cristã, p. 172). Em A Verdade Cristã, os leitores protestantes de qualquer denominação têm, pois, um autêntico tratado de excelente exposição dogmática e uma inteligente contraposição polémica em relação às críticas mais comuns de que é alvo o cristianismo protestante. Mesmo nos temas provavelmente mais controversos entre protestantes, como o da imortalidade condicional, o leitor tem muito a aprender com a forma séria e informada como o pastor Ferreira o conduz por este importante problema teológico, recorrendo à exegese bíblica, à argumentação lógica (ou racional) e aos contributos conceptuais mais importantes da tradição histórica cristã.

quarta-feira, outubro 31, 2012

Max Reger: Ein feste Burg ist unser Gott Op.27

Do caminho de Lutero à estrada da Reforma [Dia da Reforma]

Martinho Lutero não estava a cometer nenhum acto revolucionário quando pregou na porta da igreja de Wittenberg as folhas com as suas 95 Teses contra as Indulgências. Era um hábito nas cidades universitárias desde a Idade Média publicitar teses sobre um assunto teológico de modo a suscitar o debate e a discussão. A porta da igreja era o sítio mais óbvio. De todo o modo, poucos se interessavam habitualmente por esses papéis, sendo apenas os alunos e professores de teologia quem os lia e discutia perante a indiferença ou desinteresse da grande maioria. A Europa já conhecera muitas ideias discordantes em matéria religiosa e até ideais reformadores mais radicais do que os de Lutero e que apenas apaixonaram pequenas minorias ou tiveram impacto em áreas geográficas muito localizadas. No entanto, desta vez, quase logo a seguir àquele dia 31 de Outubro de 1517, toda a Alemanha pareceu pegar fogo; e, com esse fogo, a temperatura da paixão religiosa subiu em toda a Europa.

O que ateou essas labaredas não foi a posição sensata e clara de Lutero sobre a prática de vender indulgências. O fogo veio daquilo que Lutero foi obrigado a descobrir, deduzir e concluir por força dos acontecimentos – e, novamente, a dizê-lo publicamente. O problema não era Lutero escrever verdades, era que, naquele momento, essas verdades não eram convenientes. Lutero foi convidado a transigir com o que convinha à hierarquia da Igreja Católica; depois foi forçado. Perante isso, e depois de se recusar a calar o que a sua consciência de cristão lhe mandava dizer, teve de voltar a sua reflexão e o seu exame das matérias religiosas para o estado da Igreja Cristã na sua época e, indo mais longe, para a sua natureza e organização à luz da Escritura. Tudo isto foi um processo rápido porque tudo à sua volta também aconteceu rapidamente.

Muitos europeus no século XVI estavam no limiar das descobertas de Lutero. Mil anos de cristianismo católico tinham criado muitos desvios, mas também muita procura – e esta superabundava em 1517, já madura e refinada para ser ateada por um questionador certeiro. Lutero concluiu que, na sua época, a Igreja se encontrava num cativeiro, como Israel na Babilónia [Cf. Martinho Lutero, Do Cativeiro Babilónico da Igreja (São Paulo: Martin Claret, 2006), obra de 1520 em torno dos sacramentos e que é uma exposição bastante completa da posição teológica de Lutero.]. A Igreja do Evangelho não podia ser aquela. Não, como hoje muitas vezes se diz, porque Lutero tivesse ficado chocado com o luxo e a corrupção da Cúria Romana. Certamente que ficou, mas isso não era o essencial. A questão das indulgências obrigou-o a procurar radicalmente a fonte da Salvação, pois a instituição que a queria ministrar mostrava-se indigna e ineficaz para isso. Isto foi um corte brutal para um cristão, para mais clérigo, do início do século XVI. A Igreja institucional era uma «Mãe» dos crentes (a «Santa Madre Igreja»), tida como uma verdadeira realidade visível do Reino de Deus. Lutero teve de fazer um esforço heróico para se recentrar no que era essencial e descentrou-se dessa mundividência que há séculos acompanhava o grosso dos cristãos. A sua fidelidade, a sua pertença, a sua fé eram de Deus, do próprio Deus apenas – Só a Deus Glória.

Mas o cristianismo, religião de mediações, de um Deus que se anunciou por vários profetas, pela história longa de um povo eleito e, por fim, por um Filho que se fez homem, e por um Espírito Santo que o faz presente, como podia prescindir daqueles que eram ordenados sacerdotes para interceder pelos crentes e a estes fazer chegar a graça? Como a Escritura indicava e os primeiros cristãos haviam compreendido em contraponto ao sacerdócio levítico, o único sacerdote perfeito e eficaz só podia ser o Filho de Deus que partilha a nossa natureza humana e está sentado à direita do Pai – Somente Cristo.

Lutero prosseguiu a sua procura: como podia o crente ligar-se a esse sacerdote que de si próprio disse ser o caminho único para chegar ao Pai? Podia acercar-se de Cristo pelos seus próprios merecimentos, por rituais, por intercessões apenas humanas, por instituições históricas e tradições? Não, pois a sua natureza decaída e pecadora não lho permite. A Salvação é uma dádiva de Deus, tão soberana quanto gratuita – Só a Graça. E se esta vem do Alto, sem relação nem reciprocidade com actos nossos que a pretendam propiciar, todo o ritualismo e acção “mágica” da religião exterior tem de ser substituída pela única escolha e determinação válida do crente verdadeiro – Só a Fé.

Tudo isto poderia, no entanto, significar que os crentes ficariam entregues a si mesmos e a uma relação espontânea com Deus. Se a Igreja institucional e a sua casta sacerdotal não tinham autoridade em questões de fé, nenhuma autoridade existiria no Cristianismo e na vida do cristão? Nos tempos conturbados em que lhe foi dado viver, Lutero não foi conduzido apenas a descobrir que uma instituição histórica que se reclamava como prefiguração do Reino levava os crentes ao cativeiro. O reformador foi levado a ver que uma fé absolutamente espiritualizada, reclamando-se directamente inspirada pelo Espírito Santo, podia ser fonte de grandes desvarios e graves erros. O caminho das descobertas anteriores já claramente indicava o da derradeira – Só a Escritura. A Bíblia, tal como definida no cânone, necessitada do estudo aturado e ponderado do crente, é o depósito da fé, a mediação visível e a autoridade para o cristão.

Neste caminho que fez, por um percurso tortuoso, sofrido, mas radioso, Lutero foi levado – acreditamos que pelo Espírito Santo – a definir o fulcro da Reforma do século XVI e a apontar a estrada que desde então trilham milhões de cristãos nas igrejas reformadas. Esse caminho é demasiado grande e verdadeiro para poder ser atribuído a um simples homem, mortal e pecador. Como escreveu Guilherme Dias da Cunha, um autor protestante português no século XIX, «Para nós nem Paulo, nem Apolo, nem Cefas, nem Lutero são cousa alguma: Cristo é que é tudo, em todos e para todos» (jornal A Reforma, 10.11.1883).

Postscriptum – A rosa de Lutero [Carta de Lutero a Lázaro Spengler, 8 de Julho de 1530, explicando o sentido do seu monograma.] «Graça e paz do Senhor. Este selo é um resumo da minha teologia. O coração com uma cruz preta no meio significa a fé no Salvador (Romanos 10:10), bem implantada no meu sentir e no meu ser, sem ferir a minha natureza humana, mas dando-lhe vida (Romanos 1:17). Este coração está no meio de uma rosa branca para significar que aquela fé, de que vive o coração, dá alegria, conforto e paz (João 14:27); é o branco dos anjos e dos espíritos, para lembrar que as dádivas da fé são diferentes das do mundo (Mateus 28:3 e João 20:12). A rosa está sobre um campo azul, que representa as dádivas vindouras do céu e está, por sua vez, rodeado por anel de ouro, que simboliza a eternidade dessas promessas celestiais. Este é o meu compêndio de teologia. Que o Senhor esteja contigo. Ámen.»

terça-feira, outubro 02, 2012

Sinopse da história da reflexão filosófica em Portugal

I. A filosofia medieval portuguesa
Paulo Orósio e São Martinho de Dume – Santo António de Lisboa e o rei D. Duarte – A filosofia de Pedro Hispano – O estudo da filosofia em Portugal

II. Os Descobrimentos e o Renascimento
«A experiência, mãe de todas as coisas» – O método científico em Francisco Sanches – A filosofia judaica – Sob o signo da Contra-Reforma

III. A escolástica conimbricense
Pedro da Fonseca e o Colégio das Artes – A «ciência média» em Luís de Molina – Persistência e decadência da escolástica – Outros autores

IV. O Iluminismo em Portugal
Os primeiros reformadores – A influência dos «estrangeirados» – Os Oratorianos e o «Iluminismo católico»

V. A filosofia plural de Oitocentos
O aristotelismo sensista de Pinheiro Ferreira – A descristianização da filosofia – Do espiritualismo ao idealismo hegeliano

VI. Positivismo e antipositivismo
Ordem e progresso por meio da ciência – Resistências ao positivismo – A inquietação filosófica de Leonardo Coimbra

VII. A filosofia contemporânea em Portugal
Proença e Sérgio: o grupo da Seara Nova – Os leonardianos e a «filosofia portuguesa» – Outras correntes até à actualidade



BIBLIOGRAFIA

António Braz Teixeira - Deus, o Mal e a Saudade, Lisboa: Fundação Lusíada, 1993.
Id.Ética, Filosofia e Religião: Estudos sobre o Pensamento Português, Galego e Brasileiro, Évora: Pendor, 1997.
José Joaquim Lopes Praça - História da Filosofia em Portugal, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1868 (2.ª edição Guimarães Editores, 1988).
Pedro Calafate et al. - Filosofia Portuguesa, Instituto Camões (aqui).

quinta-feira, setembro 13, 2012

(VII) A filosofia contemporânea em Portugal

O século XX foi um tempo de influxo das novas correntes da filosofia em Portugal, mas também de definição de caminhos originais [Na imagem, Delfim Santos].

Proença e Sérgio: o grupo da Seara nova

Depois da ruptura com os saudosistas, que levou ao fim do movimento da Renascença portuguesa, formou-se um novo grupo em torno da revista Seara nova, que propunha uma regeneração da república dentro de uma matriz de racionalismo crítico aberto ao socialismo democrático. As figuras cimeiras deste grupo foram Raul Proença e António Sérgio.

Raul Proença (1884-1941) interessou-se pela filosofia de uma perspectiva prática e relacionada com os problemas políticos do seu tempo. Rejeitou o determinismo positivista e o realismo materialista, preferindo-lhes um ecletismo que definia como realismo idealista. Entendeu a criatividade e a liberdade como características e valores supremos do homem, que o faziam defender a democracia política e o socialismo reformista perante as soluções autoritárias ou a tecnocracia; recusando o colectivismo e a noção de “vontade geral” de Rousseau, e, sendo agnóstico, chegou a considerar-se herdeiro do personalismo cristão, embora recusasse a herança histórica do catolicismo. Como Sérgio, foi um opositor do Estado Novo, tendo deixado uma obra dispersa por jornais e revistas.

António Sérgio de Sousa (1883-1969), engenheiro de formação e ex-aluno do Colégio Militar e da Escola Naval, foi o proponente daquilo que ele próprio denominou “idealismo racionalista e crítico”, ancorado em autores como Platão, Descartes, Espinosa e Kant. O seu idealismo era, pois, de base platónica e não hegeliana, considerando que «a teoria das Ideias não oferecia dificuldades desde que interpretássemos “Ideia” como “lei científica”, “equação”, etc.». Partindo de uma desconfiança na intuição sensível e distinguindo o inteligível do imaginável ou representável, Sérgio via na matemática um instrumento de rigor para chegar a uma reflexão filosófica e a um conhecimento científico depurados de preconceitos, como considerava serem os casos da geometria analítica e da física moderna – nas quais via uma beleza e um equilíbrio que associava ao platonismo, à música e à poesia. As suas ideias de reforma pedagógica enraizaram-se na geração dos “estrangeirados” do século XVIII, enquanto os seus ideais políticos e cívicos de democracia e socialismo cooperativo eram tributários de figuras do liberalismo (A. Herculano) e da “Geração de 70” (O. Martins e A. de Quental), o que explica que o seu idealismo racionalista e o seu ideário progressista se distinguissem do republicanismo positivista.

Os leonardianos e a «filosofia portuguesa»

O fim da Renascença portuguesa levou a que se formasse, em torno do legado bergsoniano de Leonardo Coimbra (rejeitado pelos seareiros), um grupo que se veio a denominar «filosofia portuguesa». Foram seus animadores principais dois homens da mesma geração (e ex-alunos de Leonardo): José Marinho (1904-1975) e Álvaro Ribeiro (1905-1981). Nas suas obras, ambos desenvolveram tendências que se distinguiam do seu mestre, nomeadamente na defesa de um filosofar intrinsecamente português e no entendimento da filosofia e da ciência modernas. Álvaro Ribeiro pretendeu harmonizar o discurso filosófico (que entendia dever corresponder às regras lógicas da linguagem comum) com a teologia e a poesia, vendo nessa harmonia a característica distintiva de uma filosofia propriamente portuguesa que tinha de rejeitar os formalismos racionalista e matemático da modernidade que a isso obstavam. Por essa razão, aliás, aceitando a tradição aristotélica da filosofia praticada em Portugal desde a Idade Média, quis depurá-la do racionalismo escolástico, tal como deveria ser feito com a teologia, por si concebida no quadro da especulação em torno de um messianismo saudosista que encontrou expressão literária desde o século XVII. No caso de José Marinho, a sua reflexão foi construída a partir daquilo que entendia ser uma razão integral, simultaneamente conceptual ou conceptiva (inclusiva) e judiciosa (exclusiva), considerando que o racionalismo nas suas fases escolástica e positivista haviam hipertrofiado a segunda tendência. Nesse sentido, o mito, a poesia e o simbolismo poderiam ter uma função iniciática ou anagógica, em que situava o saudosismo. António Quadros (1923-1993) foi outro autor deste grupo (reunido na revista 57), que introduziu a influência do existencialismo e nela desenvolveu a estética e a filosofia da história.

Outros dois filósofos, com percursos autónomos relativamente à «filosofia portuguesa», podem ser considerados discípulos de Leonardo Coimbra: Agostinho da Silva (1906-1996) e Delfim Pinto dos Santos (1907-1966). O primeiro desvalorizou a componente nacional da filosofia, admitindo a raiz universal da mesma e pretendendo exprimir numa linguagem universalista um sentido para a cultura de língua portuguesa, que pensou como um todo e a que pretendeu religar o mito do Quinto Império a partir da especulação joaquimista e de uma sensibilidade franciscanista. Já Delfim Santos, dado ter-se formado também fora do País, juntou à influência de Leonardo a de filósofos como Nicolai Hartmann e M. Heidegger, dialogando com as mais relevantes correntes da contemporaneidade: em Situação valorativa do positivismo (1938) critica o neopositivismo lógico a partir de ideias que desenvolve da perspectiva gnosiológica em Conhecimento e realidade e, em Da filosofia (1940), revelando os traços gerais do seu pensamento. Santos posiciona-se de uma perspectiva existencial (que influencia as suas concepções pedagógicas que valorizam a criatividade pessoal), recusando o espírito de sistema a favor de uma atitude interpelativa e de um pensamento categorial em que o conceito de verdade se torna central – embora num contexto de consciência aguda da dificuldade, senão impossibilidade, de fazer coincidir realidade e conhecimento. Delfim Santos foi ainda o único grande nome da filosofia em Portugal com origem intelectual e espiritual no minoritário ambiente protestante do nosso país.

Outras correntes até à actualidade

A tradição positivista foi continuada em Portugal através do neopositivismo lógico da Escola de Viena e do Grupo de Cambridge, recebida e divulgada entre nós por Abel Salazar (1889-1946), que expõe a sua reflexão anti-metafísica no quadro do empirismo lógico, Vieira de Almeida (1888-1962) – que se dedicou à lógica moderna, à gnosiologia, à epistemologia, à psicologia e à filosofia da arte –, Edmundo Curvelo (1913-1955), discípulo de Almeida quase inteiramente dedicado a problemas lógicos, e Mário Sottomayor Cardia (1941-2006), que no mesmo quadro filosófico desenvolveu uma investigação ética crítica do utilitarismo. O pensamento dialéctico de raiz hegeliana continuou a ter influência na filosofia política e do direito nas obras de Afonso Queiró (n. 1914), Augusto Saraiva (1900-1975), Alberto Ferreira (n. 1920) e António José de Brito (n. 1927). A filosofia de Husserl e a fenomenologia, já reflectidos em Leonardo Coimbra e Miranda Barbosa, tiveram vários divulgadores em Portugal, entre os quais Alexandre Fradique Morujão (n. 1922), Gustavo de Fraga (n. 1922) e Eduardo Abranches de Soveral (n. 1927), sendo autores como José Enes (n. 1924) e Fernando Gil (n. 1937) igualmente marcados por esta corrente. A neo-escolástica foi cultivada na faculdade de filosofia de Braga, criada em 1947 e em que se destacou Arnaldo Miranda Barbosa (1916-1973). Finalmente, em pensadores como Vergílio Ferreira (1916-1997) e Eduardo Lourenço (n. 1923), o existencialismo teve uma influência evidente.

(VI) Positivismo e antipositivismo

A transição do século XIX para o século XX foi marcada pelo irromper do positivismo, que suscitou resistências e respostas variadas [Na imagem, Leonardo Coimbra].

Ordem e progresso por meio da ciência

A partir das décadas de 60 e 70 do século XIX, a reflexão filosófica em Portugal ficou sujeita a uma influência crescente de novas correntes de pensamento mais ou menos ligadas à tradição filosófica, surgindo na sequência disso, na intelectualidade e no meio académico, diversas manifestações que não se limitaram a uma mera actividade especulativa ou a projectos de reforma pedagógica como no passado. A transformação da sociedade passou a ser um imperativo para muitos pensadores, que consideraram a essa luz as questões filosóficas (ou problemas até então pensados pela filosofia). Em Portugal, o positivismo de Auguste Comte e de Émile Littré emergiu como um sistema de ideias animado por esta perspectiva e representado em autores como Teófilo Braga (1843-1924) e Manuel Emídio Garcia (1838-1904).

Teófilo Braga, professor do Curso Superior de Letras em Lisboa, partira de um interesse literário e etnográfico pelas tradições populares e culturais portuguesas, tendo aderido na década de 70 do século XIX à doutrina cientificista comtiana e à lei dos três estádios (teológico, metafísico e positivo), embora partilhando com Littré tanto a adesão ao republicanismo laicista e aos ideais democráticos como o cepticismo perante a «religião da humanidade» proposta pelo pensador francês. Com os livros Traços gerais de filosofia positiva (1877) e Sistema de sociologia (1884), Teófilo afirmou-se como o grande divulgador positivista em Portugal, conseguindo atrair boa parte da intelectualidade e do meio académico em nome de uma reforma geral das ciências acompanhada por uma reforma política, ambas feitas em nome de uma vanguarda cultural e histórica.

Entre os cultores das ciências físicas e naturais em Portugal, o positivismo alcançou o estatuto de paradigma absoluto por muitos anos, dando alento a uma atitude de triunfalismo cientificista por propor a generalização de um modelo experimentalista e matematizante a todos os campos do saber, contestando a validade daqueles que não se lhe adaptassem. Ao mesmo tempo, como era patente na obra de Teófilo, o positivismo estendia aos fenómenos históricos e sociais a mesma crença em leis universais que caberia ao método científico descobrir, o que se resolvia num determinismo e num organicismo. Estas concepções influiram profundamente nas ideias de uma nova geração de estudantes das áreas das ciências sociais e humanas, enquanto no direito levou a uma retirada das abordagens a partir da filosofia, então substituídas por uma sociologia também determinista e organicista: entrava em cena o positivismo jurídico, cultivado, entre outros, por Manuel Emídio Garcia na faculdade de direito de Coimbra.

Resistências ao positivismo

Apesar do seu triunfo aparente, o positivismo teve adversários de vulto que em geral o consideraram portador de um conceito reducionista de ciência. Em Portugal, alguns autores ensaiaram respostas ao positivismo anteriores às elaborações filosóficas mais válidas que, na Europa, contribuiriam para o questionar (por exemplo, Husserl). José Pereira de Sampaio Bruno (1857-1915), partindo do positivismo, veio a tornar-se um dos seus maiores críticos em obras como O Brasil mental (1898), A ideia de Deus (1902) e O encoberto (1904), recusando o pressuposto da objectividade da realidade e, a partir daí, o triunfalismo cientificista. O facto de a sua reflexão estar eivada de um género de messianismo panteísta que se opunha a um mal substancial e que, em termos históricos, deveria resolver-se no socialismo tornou-a suspeita e reduziu o alcance das suas críticas ao positivismo.

Nos meios católicos, destacou-se um grupo da faculdade de teologia (abolida em 1911) e de que faziam parte Manuel Eduardo da Mota Veiga, Joaquim Alves da Horta e José Maria Rodrigues, assim como o polemista padre José Joaquim de Sena Freitas (1840-1913); mas a fragilidade desta crítica – incapaz de contrapor um paradigma alternativo eficaz –, patente também no grupo jesuíta que animava a revista científica Brotéria desde 1902, não conseguiu abalar o positivismo.

No campo do direito, foi o neo-kantismo de universitários como Luís Cabral de Moncada (1888-1973) – que restaurou em 1937 em Coimbra a cadeira de filosofia do direito – que abriu caminho para outras correntes filosóficas, como o intuicionismo de Bergson, de que se reclamava Paulo Merêa (1889-1977), outro relevante pós-positivista.

A inquietação filosófica de Leonardo Coimbra

Com Leonardo Coimbra (1883-1936) apareceu uma crítica filosoficamente sustentada do positivismo. Ligado aos meios republicanos em que aquele imperava, Coimbra foi o fundador da faculdade de letras do Porto, onde passou a leccionar filosofia. Integrou o movimento Renascença portuguesa [com a revista A Águia] logo após a proclamação da república com autores como Raul Proença, António Sérgio ou Teixeira de Pascoaes; mas o movimento cindir-se-ia após a polémica em torno do saudosismo de Pascoaes, que Coimbra aceitou, mas outros, como Proença e Sérgio, recusaram, fundando depois a revista Seara Nova em 1921, mais próxima da tradição racionalista. Para Pascoaes, cujo pensamento se apresentava como uma ontologia monista e panteísta, o conceito de saudade era entendido como expressão cósmica de uma «infinita lembrança da esperança» que desvendava as raízes da própria identidade cultural portuguesa. Leonardo Coimbra manifestou um saudosismo mais abstracto e também mais marginal no seu pensamento, considerando a saudade um sentimento de separação da criatividade humana em relação à unidade que anseia com o amor divino, inspirador das supremas acções morais.

No que aos contributos mais relevantes da sua obra filosófica diz respeito, Leonardo Coimbra desenvolveu uma reflexão centrada no problema das noções ou representações mentais da realidade percepcionada pelos sentidos, que via como o objecto de toda a verdadeira reflexão sobre o saber e a ciência.  Este enfoque gnosiológico permitiu-lhe problematizar a subjectividade do saber e a forma como este se desenvolve na relação com as coisas como apreendidas, criando noções e representações que orientam a pesquisa e que são realmente aquilo que é conhecido. O saber e a “realidade” de que ele dá conta são, pois, uma construção ou criação humana nessa relação com as coisas e não uma reprodução ou descrição de uma realidade feita, exterior e à espera de ser descoberta. Neste sentido, para Leonardo Coimbra, a ciência era parte da actividade criativa do homem, cuja diversidade (integrando também os sentimentos morais, a arte e a religião, por exemplo) deveria ser reconhecida – daí a sua filosofia ser designada de “criacionista”. Deste modo, não só se comprometia na sua reflexão a objectividade do método científico e o programa positivista de uma ciência capaz de abarcar a totalidade da realidade como era contrariada a noção de um universo determinista no qual a liberdade e a criatividade humanas tinham forçosamente de estar quase em absoluto condicionadas. Escreveu Criacionismo: esboço de um sistema filosófico; A alegria, a dor e a graça; Filosofia e ciência; Filosofia e metafísica; A razão experimental; Notas sobre a abstracção científica e o silogismo, entre outras obras.

(V) A filosofia plural de Oitocentos

O século XIX foi um período de secularização da filosofia portuguesa, expressa numa progressiva descontinuidade com o passado.

O aristotelismo sensista de Pinheiro Ferreira

Na primeira metade do século XIX, Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) foi o principal cultor da filosofia em Portugal. A influência dos Oratorianos, com a sua abertura às correntes modernas e experimentalistas e, em particular, o legado do padre João Baptista, que tentara renovar a filosofia aristotélica libertando-a da escolástica, foram marcantes na formação de Pinheiro Ferreira. O filósofo ocupou-se da «teórica do raciocínio» e da «teórica da linguagem», que julgava coincidentes, considerando as categorias e a teoria do silogismo de Aristóteles as ferramentas ainda e sempre válidas para esse seu enfoque analítico do trabalho filosófico. No seu projecto, a filosofia serviria para dar unidade e dotar de uma linguagem rigorosa todas as áreas do conhecimento. Paralelamente, Pinheiro Ferreira entendeu como válida a filosofia sensista de Locke e de outros autores até onde actualizavam e desenvolviam a perspectiva aristotélica sobre a formação de ideias a partir dos sentidos. Por esta razão, rejeitou a obra de Kant e a tendência idealista das «seitas filosóficas alemãs», reagindo igualmente a uma abordagem positivista das ciências que secundarizasse a análise conceptual e a discussão dos seus pressupostos gnosiológicos.

Esta concepção geral da filosofia foi apresentada por Pinheiro Ferreira nas suas Prelecções filosóficas sobre a teórica do discurso e da linguagem, a estética, a diciósina e a cosmologia (1813), publicadas aquando da sua permanência no Rio de Janeiro com a corte aí refugiada das invasões francesas. As suas ideias sensistas foram desenvolvidas em Ensaio sobre a Psicologia (1826), publicado em Paris, numa fase da sua vida em que viveu e leccionou em França e na Alemanha, antes de definitivamente regressar a Portugal. Dessa época são igualmente o seu Manual do cidadão em um governo representativo ou princípios de direito constitucional (1834), no qual Pinheiro Ferreira afirma os seus princípios liberais, favoráveis aos direitos individuais e a uma monarquia parlamentar aberta ao reformismo democrático, e as Noções elementares de filosofia geral aplicada às ciências morais e políticas (1839).

Tendo em todas as suas obras mantido o propósito de coadunar a sua concepção da filosofia com o catolicismo, Silvestre Pinheiro Ferreira publicou em 1845 a obra Teodiceia ou tratado elementar da religião natural e da religião revelada, na qual se socorre de elementos das ciências naturais para defender a necessidade de uma «causa primeira» transcendente. Na mesma obra, o filósofo recusa substancialidade ao mal, que considera uma mera percepção de fenómenos que concorrem sempre para o bem, e realça a necessidade da revelação para orientar e aprofundar a compreensão da relação entre a divindade e o crente, que a religião natural ajuda apenas a esclarecer em termos de universalidade.

A descristianização da filosofia

Na segunda metade do século XIX, a proposta filosófica de Pinheiro Ferreira, assente ainda num aristotelismo renovado e no jusracionalismo, foi ultrapassada por abordagens mais consentâneas com as escolas de pensamento dominantes na Europa e com as inquietações de uma geração que revelou maior dificuldade de harmonizar a sua reflexão com a ortodoxia católica. Pedro de Amorim Viana (1822-1901), matemático e docente oriundo não dos estabelecimentos tradicionalmente ligados à filosofia mas do ensino superior politécnico, publicou em 1866 a obra que operou esta mudança de fundo: Defesa do racionalismo ou análise da fé. Embora mantivesse a desconfiança da geração anterior perante a concepção positivista da ciência, rejeitou o sensismo lockeano e cortou resolutamente com a tradição aristotélica, a que preferiu o racionalismo de Leibniz e Kant – que lhe permitiam ver na filosofia uma actividade capaz de fornecer à ciência uma reflexão ontológica necessária à organização e integração dos saberes. Amorim Viana pretendeu erguer uma proposta eclética que conciliasse fé e razão mas que não implicasse a aceitação das crenças na Trindade, na divindade de Jesus, em milagres e em profecias (que entendia contrárias à razão), inclinando-se, por isso, para um espiritualismo desconfessionalizado e radicado em Platão e Espinoza.

O espiritualismo descristianizado inspirado na filosofia de Karl Christian Friedrich Krause (1781-1832) teve em J. M. Cunha Seixas (1836-1895) um outro cultor de vulto em Portugal. Considerando-se um dissidente do krausismo (divulgado entre nós por J. M. Rodrigues de Brito), Cunha Seixas forjou um sistema que apelidou de «pantiteísta» e que unificava na ontologia o espiritual e o racional. Para se tornar conhecimento, a reflexão ontológica teria de obedecer a um processo de crescente abstracção e integração, operando primeiro com ideias relativas a objectos particulares (substância), depois com ideias gerais já abstractas (manifestação) que se deveriam encaminhar para ideias universais e absolutas em que deveria tornar-se patente a unidade divina de todas as coisas e a participação de cada uma delas no todo (harmonia). Na sua obra Princípios gerais de filosofia (publicada postumamente em 1898) convergiu o seu pensamento, desenvolvido em várias publicações anteriores aparecidas desde os anos 70 do século XIX.

Do espiritualismo ao idealismo hegeliano

Depois da crise das sínteses escolásticas entre razão e revelação, os Oratorianos e Silvestre Pinheiro Ferreira tentaram salvar o aristotelismo harmonizando-o, através do sensismo lockeano, com as aquisições mais relevantes da ciência moderna; esta, por seu lado, era considerada coadunável com o teísmo se interpretada à luz da teologia natural, a qual, no entanto, sendo insuficiente para a realização moral do homem, era completada pela teologia revelada. Sob influência da descristianização da cultura intelectual europeia e da influência de propostas filosóficas como o krausismo, Amorim Viana e Cunha Seixas recusaram o delicado equilíbrio legado pela geração anterior e romperam com o que restava das amarras ao cristianismo numa altura em que o influxo do evolucionismo darwinista contribuía para quebrar a tradição reflexiva em torno da teologia natural, reduzindo o campo do teísmo. Como, porém, também recusavam o materialismo e uma concepção puramente imanente da realidade, optaram pelas suas vias espiritualistas. Mas, ainda em vida destes dois filósofos manifestaram-se outras tendências que se afastaram do espiritualismo.

Em intelectuais como J. P. Oliveira Martins (1845-1894), que, embora não sendo exactamente filósofos, se interessavam por filosofia, despertou o interesse pelo idealismo de G. W. F. Hegel. Nas suas obras, Martins terá sempre pressuposto que a história é a manifestação da realidade ideal, interessando-se por esboçar uma filosofia da história (universal e nacional) de acordo com esta concepção. Antero de Quental (1842-1891), como Martins, embora pendesse para um cientificismo naturalista, entendia que a reflexão filosófica e a compreensão da realidade humana não podia prescindir do idealismo de Hegel, vendo no socialismo (inspirado em Proudhon) um horizonte moral necessário aos problemas do seu tempo.

domingo, agosto 26, 2012

(IV) O Iluminismo em Portugal

A tentativa de reforma do ensino da filosofia fez-se em nome das correntes modernas e do experimentalismo sob o governo de Pombal. [Na imagem, Teodoro de Almeida (1722-1804).]

Os primeiros reformadores

No início do século XVIII começa a fazer sentir-se em Portugal a influência de filósofos como René Descartes e John Locke, antes ignorados ou mesmo proibidos. Curiosamente, a atenção crescente dispensada a estes nomes da «filosofia moderna» começou por ser veiculada por autores laicos e exteriores ao ambiente universitário português. O militar Manuel de Azevedo Fortes (1660-1748), com a sua Lógica racional geométrica e analítica (1734), propôs uma síntese entre o inatismo de Descartes e o sensismo de Locke, adoptando uma atitude eclética e centrada na questão do método. A sua filosofia vale mais pela introdução de autores «modernos» do que pela sua qualidade intrínseca. Também Martinho de Mendonça de Pina e Proença (1693-1743) foi divulgador, entre outros, de Locke, tendo viajado pela Europa e participado no «movimento das academias» que marcou a primeira metade do século XVIII em Portugal, nomeadamente como sócio fundador da Academia Portuguesa da História (1720), patrocinada pelo rei D. João V. Nos seus Apontamentos para a educação de um menino nobre é marcante a influência do pensamento pedagógico de Locke, que pretendia aplicar a uma reforma do ensino que criasse no País um nível intermédio (secundário) de estudos.

A influência dos «estrangeirados»

Jacob de Castro Sarmento (1691-1762), médico formado em Coimbra que abandonou Portugal em 1721 (era cristão-novo), traduziu o Novo Organon de Francis Bacon com o expresso propósito de propagandear entre nós a filosofia experimentalista do autor inglês. Paralelamente, assumiu-se como divulgador da obra de Isaac Newton (Teórica verdadeira das marés conforme à filosofia de Isaac Newton, 1737). Sarmento, embora não questionasse o campo próprio da metafísica (o das «causas primeiras»), foi um crítico contundente tanto de Aristóteles como de Descartes, aos quais preferia o método experimentalista e matematizado dos dois autores ingleses. Com Sarmento acentuou-se na cultura portuguesa a influência de intelectuais radicados no estrangeiro, os quais foram por isso apelidados de «estrangeirados». Mas o facto de a tradução de Bacon haver sido encomendada por D. João V mostra até que ponto estas novas tendências já não podiam ser consideradas marginais e anómalas no período anterior ao auge do governo pombalino (a partir de 1755).

António Ribeiro Sanches (1699-1783) foi outro «estrangeirado» adepto do experimentalismo, a que aliava uma atitude favorável à laicização do ensino e à reforma da Igreja sob a tutela do Estado. Médico de formação e radicado em França, publicou Cartas sobre a educação da mocidade (1760) e Método para aprender e estudar medicina (1763). A sua obra influenciou a reforma pombalina da Universidade em 1772.

Juntamente com Ribeiro Sanches, Luís António Verney (1718-1792) é um dos nomes emblemáticos do grupo dos chamados «estrangeirados». A sua formação começou com os Jesuítas na Universidade de Évora, com os quais se incompatibilizou, embora também tenha passado pelo curso de filosofia dos Oratorianos (1727-1730). Estabeleceu-se em Roma, onde escreveu as suas obras, nomeadamente Verdadeiro método de estudar (1748), na qual propõe uma reforma do ensino em Portugal baseada em novos currículos e em nova pedagogia. Defendeu a física newtoniana e combateu o espírito sistemático da escolástica e do cartesianismo. A sua pedagogia era também influenciada por Locke.

Este progressivo abandono da escolástica a favor das correntes modernas e iluministas é patente mesmo entre alguns religiosos como o franciscano Frei Manuel do Cenáculo (1724-1814), propenso a um ecletismo crítico da escolástica e aberto às «Luzes» de Setecentos, pelo que foi depois cooptado para cargos importantes sob o governo do marquês de Pombal, nomeadamente na Real Mesa Censória e na reforma dos estatutos da Universidade de Coimbra (1772). Outro autor que se inscreveu na tendência de abertura às «Luzes» foi António Soares Barbosa (1734-1801), que teve um papel importante no ensino da filosofia na Universidade de Coimbra após a reforma de 1772 – que consagrou o triunfo da «filosofia moderna» no ensino universitário português –, tendo publicado Discurso sobre o bom e verdadeiro gosto da filosofia (1776) e Tratado elementar de filosofia moral (1792). No campo da filosofia do direito, Barbosa, embora plenamente aberto às correntes modernas, é crítico tanto das teorias contratualistas e de um estado de natureza igualitário como da razão como única fonte do direito (doutrina defendida pelos teóricos do despotismo iluminado).

Os Oratorianos e o «Iluminismo católico»

Nas primeiras décadas do século XVIII, a Congregação do Oratório afirmava-se em Portugal como a rival da Companhia de Jesus que, em grande medida, controlava ainda a Universidade. Após a expulsão dos Jesuítas em 1759, os Oratorianos tornaram-se o grande centro de irradiação de uma filosofia renovada e com uma abertura crítica às novas correntes modernas e experimentalistas, absorvendo as tendências do Iluminismo e recriando-o à luz da tradição católica. No contacto com os autores oratorianos setecentistas formaram-se gerações mais novas que teriam um papel importante na transição das elites portuguesas para o período liberal no início do século XIX. Manuel Álvares (1739-1777) introduziu na sua Lógica (1760) o sensismo de Locke e a física moderna. António Pereira de Figueiredo (1725-1797), em obras como Doctrina veteris ecclesiae (1765), sustentou uma teologia regalista que o associou ao governo de Pombal. Francisco José de Freire (1719-1773) foi um defensor do neoclassicismo estético em Arte poética (1748), obra que se tornou a referência teórica da academia Arcádia Lusitana. Teodoro de Almeida (1722-1804), em Recreação filosófica, absorveu na sua teologia natural os contributos mais relevantes da ciência física do seu tempo.

(III) A escolástica conimbricense

No século XVI, apesar do ambiente criado pela Contra-Reforma, floresceu em Portugal uma vigorosa escola de filosofia.

Pedro da Fonseca e o Colégio das Artes

Em 1555, D. João III entregou à Companhia de Jesus uma das instituições que formava a Universidade de Coimbra – o Colégio das Artes. Aí viria a desenvolver-se uma escola de filosofia com projecção na Europa e na América e que chegou a expandir-se, através dos missionários jesuítas, até ao Extremo Oriente. Pedro da Fonseca (1528-1599) foi o iniciador desta escola, concebendo, com as suas obras Instituições dialécticas (1564) e Comentários à metafísica de Aristóteles (1589), um curso que consistia num vivo e desenvolvido comentário à obra de Aristóteles, considerada de validade universal e perene. Fonseca fez começar os estudos pela lógica, através do comentário do Organon de Aristóteles, fazendo-os prosseguir numa abordagem da teologia que seguia de perto a Metafísica do mesmo filósofo clássico. Tanto num caso como no outro, o método conimbricense exposto por Fonseca pressupunha um diálogo crítico com as novas tendências filosóficas e científicas, aproveitando nelas o que considerava válido à luz da tradição aristotélica, rejeitando uma atitude de mera repetição.

Manuel de Góis, Sebastião do Couto e Baltasar Álvares publicaram, a partir de 1592, os Comentários do colégio conimbricense da Companhia de Jesus, que ampliaram à física e à ética o método de estudo da filosofia e de comentário de outros autores a partir de um Aristóteles renovado e revigorado, completando-se assim o âmbito pedagógico da escola de Coimbra.

A «ciência média» em Luís de Molina

Alguns filósofos formados em Coimbra viriam a destacar-se pela originalidade dos seus contributos teóricos. Luís de Molina (1536-1600), embora nascido em Cuenca (Espanha), estudou em Coimbra e ensinou em Évora, desenvolvendo alguns aspectos importantes da obra de Pedro da Fonseca. As suas obras mais importantes foram De concordia (1588) e De iustitia et iure (1593). Na primeira destas obras, Molina defendeu a tese da chamada «ciência média», já esboçada em Fonseca e que pretendia dar uma solução diferente ao conflito teórico entre a liberdade humana e a graça divina. Afastando-se da ideia geralmente aceite segundo a qual, no uso do livre-arbítrio, o ser humano só poderia agir moralmente se auxiliado pela graça, Molina defendeu existirem actos naturais em todos os homens que, independentemente de intervenção divina e de uma fé cristã consciente, têm valor moral intrínseco – mesmo que sejam ineficazes para a salvação como a entende a doutrina da Igreja. Estas ideias implicavam o reconhecimento de uma capacidade moral mesmo aos povos não europeus e não cristianizados, o que motivou a sua rejeição por outros autores católicos.

Em De iustitia et iure, Molina aplicou estes princípios aos campos do direito e da política, submetendo o poder do governo à comunidade que, através do direito natural, o teria recebido de Deus e o poderia reclamar em caso de actos tirânicos do governante. Nesta doutrina reconhece-se o princípio da origem popular do poder temporal, que seria também afirmada pelo jesuíta conimbricense Francisco Suárez (1548-1617).

Persistência e decadência da escolástica

Durante o século XVII, a escola conimbricense tornou-se hegemónica na universidade portuguesa, sendo o seu magistério aristotélico-escolástico seguido em Coimbra e em Évora por autores como Baltazar do Amaral, Bento de Macedo, Francisco Soares de Alarcão, Baltazar Teles, Inácio de Carvalho (este autor de um Compêndio de lógica conimbricense) ou Agostinho Lourenço. Esta tendência só seria invertida no século seguinte com as primeiras influências do Iluminismo em Portugal, sendo, no entanto, sintomático da influência persistente das ordens religiosas, e em particular dos Jesuítas, que quase todos estes autores fossem clérigos.

Na transição do século XVII para o século XVIII, a escolástica portuguesa entrou numa decadência para a qual contribuiu um clima pouco propenso à livre discussão intelectual. Gregório Barreto de Cantanhede, Bento de Macedo e António Cordeiro foram autores desta fase em que a mera repetição substituiu o comentário vivo e a referência crítica a autores contemporâneos. Este declínio da qualidade do trabalho dos escolásticos de Coimbra e de Évora facilitaria o sucesso da investida dos seus adversários em meados do século XVIII.

Outros autores

Formados também na escolástica e pertencendo já ao século XVII, destacam-se dois autores que usufruíram ainda da fase de vigor da escola conimbricense e que não tiveram a sua actividade intelectual circunscrita à universidade portuguesa. Frei João de São Tomás (1589-1644), nascido João Poinsot e formado em Coimbra, ensinou em Madrid e em Lovaina e, após tomar conhecimento das polémicas do seu tempo entre Jesuítas e Franciscanos, ingressou na ordem dominicana. Tornou-se então um comentador sistemático e directo da obra de Tomás de Aquino, depurado das controvérsias introduzidas pela escolástica em que se formara e pelos seus adversários de inspiração agostiniana. Considerando a lógica o próprio instrumento da especulação, Frei João de São Tomás deu nos seus Cursus philosophicus, contributos originais no âmbito da gnosiologia, da metafísica e da filosofia da linguagem. Também com um percurso não circunscrito a Portugal, Frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo (1596-1681), franciscano, optou pelas posições filosóficas do escotismo, que comparou com as do tomismo em Collationes doctrinae (1680).

(II) Os Descobrimentos e o Renascimento

Com a abertura de Portugal ao mundo, os pensadores nacionais abriram-se ao experimentalismo e às novas correntes. As viagens marítimas dos Portugueses a partir do século XV, com a descoberta de outras terras, povos e culturas, abriu novos horizontes ao pensamento europeu e reflectiu-se na reflexão dos autores de Quinhentos e Seiscentos. O papel da observação, da experiência e da utilização da matemática foi considerado e valorizado de um modo que introduziu descontinuidades em relação ao período histórico anterior. Com estas mudanças muito ligadas às actividades marítimas de então, a reflexão filosófica abandonava a era medieval e abraçava a era moderna. À filosofia formal foi momentaneamente preferido um estudo empírico da realidade, recorrendo alguns dos autores deste período à matemática para afinarem o rigor das suas observações e deduções. Esta transformação, que antecipava não só tendências futuras como também uma das características do período renascentista, coincidiu com o ímpeto descobridor do século XV e início do século XVI, mas foi momentâneo.

«A experiência, mãe de todas as coisas»

Duarte Pacheco Pereira, nascido em meados do século XV, revela o interesse renovado pelo estudo da natureza e da geografia, consciente já da necessidade de corrigir e superar os autores antigos. Na sua obra Esmeraldo de situ orbis (1506), reflectindo sobre a substituição de ideias antigas por outras adquiridas nas viagens oceânicas, realça a importância da experiência, «mãe de todas as coisas», para o conhecimento rigoroso, que, assim, não poderia ser apenas uma construção meramente teórica ou intelectual, mas teria de ser também empírica.

Em Pedro Nunes (1502-1578), professor de filosofia natural na universidade de Coimbra, aparece já uma atitude crítica da «maioria dos filósofos do nosso tempo, que consideram de somenos o conhecimento da matemática». Partindo também da experiência náutica adquirida pelos Portugueses, Pedro Nunes chamou atenção para a importância que teve a matemática aplicada na construção de um saber astronómico e geográfico rigoroso nas viagens dos nossos navegadores. As suas obras Tratado da Esfera (1537) e Livro de álgebra e geometria (1567) denotam uma abertura precoce à matematização do saber. D. João de Castro (1500-1548) procurou igualmente, nos dados que coligiu relativos à filosofia natural e à náutica, um rigor matemático e uma ciência de base empírica. Nestes autores ficou esboçada uma promessa pioneira e consistente de abertura à ciência experimental e à filosofia moderna que então se iniciavam na Europa, mas que acabaram por não florescer em Portugal.

O método científico em Francisco Sanches

Francisco Sanches (1550-1622), cristão novo que iniciou os seus estudos em Braga, veio a desenvolver a sua actividade ligada à medicina e à filosofia em França (onde contactou com as mais avançadas correntes do Renascimento e da Reforma religiosa). Na sua obra, reunida nos seus Tratados filosóficos, Sanches revela-se crítico da filosofia escolástica e das concepções aristotélicas que a suportavam. Influenciado pela prática da medicina, defende uma concepção empirista da ciência, pondo ênfase na necessidade de construir um saber autónomo da metafísica e da religião e orientado para uma realidade entendida como objectiva e regida por leis que devem ser descobertas sobretudo através da experiência.

Embora, para Francisco Sanches, o objecto da ciência fosse o conhecimento das causas naturais dos fenómenos observados, o filósofo recusava que a essas «causas segundas» se devesse limitar a nossa concepção da realidade, que deveria estar consciente da existência de Deus e de «causas primeiras». No entanto, Sanches defendeu que o conhecimento das causas naturais não só era trabalhoso como dificilmente poderia suportar as “causas primeiras” sem um esforçado labor dedutivo.

A filosofia judaica

Entre os judeus portugueses, a filosofia  floresceu pouco antes da conversão forçada de 1496, que pôs um fim abrupto a uma experiência que se revelou rica. Isaac Abravanel (1437-1508) e o seu filho Leão Hebreu (1465-1534) partiram de um conhecimento profundo da filosofia clássica e da escolástica cristã para afirmarem a sua conformidade com a Bíblia. Embora dando como adquirido o papel da razão, concluíram pela superioridade da revelação, efectuando no âmbito da fé judaica uma síntese com a filosofia similar à operada por São Tomás de Aquino no âmbito da fé cristã. Ambos os autores evidenciam influência de Platão e se opuseram à ideia aristotélica da eternidade do universo, a que preferiram o criacionismo bíblico.

Outro autor proveniente do judaísmo português – já então clandestino – foi Isaac Cardoso (1615-1680), médico e filósofo, que, em Veneza, publicou a sua Philosophia libera, obra eclética que afirma uma noção empirista de ciência a par do criacionismo e da defesa da liberdade intelectual. Estes autores mostraram-se, como fora já o caso de Samuel Usque (n. 1492), permeáveis a influências esotéricas e neoplatónicas.

Sob o signo da Contra-Reforma

A afirmação da Contra-Reforma em Portugal depois do Concílio de Trento (1545-1563) circunscreveu o tema filosófico do diálogo entre razão e revelação a autores católicos, alguns dos quais, como Álvaro Gomes logo no seu Comentário ou censuras (1543), pretenderam explicitamente refutar com recursos retóricos e lógicos as concepções teológicas saídas da Reforma protestante, nomeadamente as de Lutero. Dada a vigilância que a Inquisição passou a manter a partir desta época sobre toda a cultura intelectual, estas obras tenderam para a mera apologia do catolicismo.

Outros autores, como Sebastião Toscano (1515-1583), em Mística teologia (1568), ou o Padre António Vieira (1608-1697), nos seus Sermões, desenvolveram temáticas religiosas com recurso à filosofia moral. No caso de Vieira, a influência de Séneca foi notória nos seus escritos morais, o que denota um interesse continuado em Portugal, mesmo entre religiosos, pela obra deste autor peninsular da Antiguidade.

(I) A filosofia medieval portuguesa

As primeiras obras filosóficas no ocidente peninsular foram contemporâneas da cristianização da filosofia, ocorrida na transição da Antiguidade para a Idade Média. Os autores que em Portugal cultivaram a reflexão filosófica desde a Idade Média integraram ou inspiraram-se nas correntes dominantes da filosofia europeia do seu tempo. Este facto não impediu que alguns deles revelassem originalidade no seu pensamento e muito menos que desenvolvessem de forma brilhante alguns dos temas e problemas tratados pelas correntes europeias de que eram tributários.

Paulo Orósio e São Martinho de Dume

O primeiro pensador relevante aparecido no que viria a ser o espaço português, e inscrito na tradição filosófica, foi Paulo Orósio. Nascido perto de Braga no fim do século IV, foi o autor, entre outras obras, de História contra os pagãos (417). Discípulo directo de Santo Agostinho, foi influenciado pelas suas concepções filosóficas e teológicas, sendo também marcado pelo ambiente religioso agitado do noroeste da península, combatendo heresias como o priscilianismo, o origenismo e o pelagianismo. Orósio defendeu ainda uma concepção universalista da história humana e opôs uma leitura linear e progressiva do tempo à leitura cíclica herdada de Políbio.

São Martinho de Dume (c. 518-579), bispo de Braga, foi autor, entre outras obras, de um tratado de ética, Formulae vitae honestae. Dedicada ao rei dos Suevos, esta obra evidencia a influência de Séneca e apoiou-se apenas na razão natural, dispensando o recurso à moral revelada ou à Bíblia. É um dos primeiros exemplos de um género literário medieval depois chamado «espelho dos príncipes» e entre nós cultivado, por exemplo, por Álvaro Pais, bispo de Silves, na sua obra Speculum regum (c. 1344).

Santo António de Lisboa e o rei D. Duarte

Nos escritos de Santo António de Lisboa (f. 1231), anteriores à síntese tomista entre razão e revelação, encontra-se já uma filosofia que, embora plenamente cristianizada, propõe a colaboração da filosofia e da razão na obra divina da salvação. Nos seus Sermões, Santo António desenvolveu uma espiritualidade franciscanista que teria uma longa influência em Portugal e, plenamente integrado no espírito das ordens mendicantes, explorou a vertente prática e quotidiana da moral. [Santo António entrou em contacto com os franciscanos enquanto estudou no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que era então a sede espiritual do reino português. Já em Itália, foi convidado por São Franscisco de Assis a pregar e a ensinar teologia aos frades da sua ordem, o que o tornou muito popular. Foi canonizado em 1232 e declarado doutor da Igreja em 1946.] Outro franciscano português que se destacou na teologia foi Frei André do Prado, autor de Horologium fidei e Spiraculum franscisci mayronis.

Dado que os autores referidos escreviam em latim, é ao rei D. Duarte (1391-1438) que se deve a primeira obra filosófica em língua portuguesa – o Leal conselheiro. Esta obra foi a primeira a articular reflexões filosóficas em língua vulgar, algo que só se tornaria comum alguns séculos mais tarde. Trata-se de um livro pouco sistemático, orientado para questões de filosofia moral e política, mas profundamente marcado pela síntese operada por Tomás de Aquino entre a filosofia aristotélica e os ensinamentos da Igreja Católica. Outros autores, em latim ou em língua vulgar, exploraram a confluência entre a filosofia moral e a filosofia política, dentro da matriz cristã da Idade Média – são os casos de Diogo Lopes Rebelo e Frei João Sobrinho no fim do século XV.

A filosofia de Pedro Hispano

Pedro Julião, também conhecido como Pedro Hispano Portucalense, nascido em Lisboa por volta de 1205, foi o maior filósofo português da Idade Média e aquele cuja obra alcançou autêntica notoriedade à escala europeia. Iniciou os seus estudos na escola catedral de Lisboa e continuou-os em Paris e Siena, onde se tornou professor e autor respeitado. Apesar de ser médico, teve uma importante carreira eclesiástica, sendo sucessivamente decano da Sé de Lisboa, arcebispo de Braga, cardeal e o único papa português, com o nome de João XXI (1276).

Aluno de Alberto Magno e contemporâneo de Tomás de Aquino, Pedro Hispano foi um dos lógicos mais influentes da primeira escolástica. A sua fama em toda a Europa está patente no facto de Dante o ter incluído no grupo de grandes estudiosos retratados na Divina comédia, onde é referido como «Pietro Spano». A sua obra Tractatus, depois conhecida como Summulae logicales, foi copiada e ensinada nas universidades europeias durante mais de três séculos.

Na sua obra, Pedro Hispano preocupou-se com as propriedades dos termos utilizados na linguagem e com a sua relação com o conhecimento. O estudo do significado e da articulação dos diferentes termos (palavras e expressões) nas proposições tornou-se, assim, o objecto da lógica e aproximava-a da gramática, com a qual deveria, da perspectiva do lógico português, tender a partilhar as mesmas regras. O ideal do nosso lógico seria que as leis do pensamento se aproximassem das leis da linguagem.

Na análise dos termos utilizados nas proposições do discurso filosófico, Pedro Hispano distinguiu entre o significado e a suposição. O significado dizia respeito ao modo como as palavras nomeiam ou representam as coisas ou elementos da realidade; já a suposição trata da relação lógica entre as palavras no discurso e na reflexão. Para este filósofo era no campo da suppositio que estava o âmbito da lógica e da filosofia, cujo estudo incidia, assim, não sobre a própria realidade, mas sobre o discurso sobre a realidade. Para os lógicos medievais como Pedro Hispano, esta distinção implicava que a filosofia deveria fornecer às ciências uma linguagem conceptualmente rigorosa, distinta tanto da linguagem vulgar quanto da linguagem literária.

Outras obras atribuídas a Pedro Hispano, nomeadamente Scientia libri de anima, abordam a questão da alma, sua natureza e capacidade de auto-conhecimento.

O estudo da filosofia em Portugal

Como nos outros países europeus, em Portugal a universidade teve origem nas escolas das catedrais e dos mosteiros. Logo que os primeiros reis portugueses estabeleceram a capital política do reino em Coimbra foi aí fundado um seminário, no qual, ainda no século XII, terá começado o ensino da lógica. Também antes da fundação da universidade, já eram ensinadas no mosteiro de Alcobaça (pelo menos desde 1269) a gramática, a lógica e a teologia. Frei João Claro, doutor em teologia pela universidade de Paris e abade deste importante mosteiro, foi uma das figuras que evidenciam a continuação do interesse pela filosofia em Alcobaça no século seguinte; além dos códices que deixou, há ainda outros, anónimos: o Horto do esposo e o Bosque deleitoso solitário, que também têm alguns conteúdos filosóficos.

A instituição do Estudo Geral em 1288 (com aprovação papal em 1290) conduziu ao ensino sistemático da teologia e do direito canónico em Lisboa e depois em Coimbra, bem como das disciplinas da lógica, da gramática e da dialéctica, que auxiliavam aquelas áreas de estudos. Nesta época, já as obras de Aristóteles dominavam em universidades europeias como a de Paris, vindo a influenciar desde o início o ensino da filosofia em Portugal. Apesar de ter desde muito cedo um ensino regulamentado e orientado para a formação de uma elite clerical e jurídica, a universidade será nos séculos seguintes o espaço privilegiado da reflexão e produção filosóficas em Portugal.