quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Subproduto do esquecimento

Foi quando me olhei no espelho que percebi o quanto estava apreensivo. Conseguia ver embaçada minha imagem refletida mesmo estando o vidro total e perfeitamente polido. Eu estava na sala, sozinho no cômodo, e lá na cozinha havia uma mulher, a cantar alto, frequentemente me convidando para acompanhá-la no rito, sem sucesso.

Sendo tímido como sempre fui, não foram de se estranhar meus gestos contidos, ainda que estivesse sendo compelido a me sentir completamente à vontade. Estava com coisa de dezoito anos, e vivia ainda tempos bastante movimentados, conforme era comum naquela fase de minha vida (talvez por uma tentativa inconsciente de apagar de minha memória a infância, a pré-adolescência, períodos lembrados sempre como coisas uniformes e mortas em mim.) Na época - como também continuaria acontecendo depois -, eu sempre me esquecia de todas as garotas com quem ficava, todas com quem houvera transado ou a quem tivesse ao menos beijado, quando estava me relacionando com uma outra. Esquecia de forma tão latente das garotas passadas que todas que apareciam na minha vida eram como se fossem a primeira. Neste caso, acrescenta-se a isso o fato de eu estar na casa não de uma garota de minha idade, mas de uma mulher, que tinha sua vida feita, que já fora até casada, que já tinha 35 anos.

Você que é um cara de sorte, confidenciou-me um amigo horas antes, ao saber com quem eu me encontraria. Ainda prevalecia um fetiche, como em todo jovem, pelo desejo de estar com uma mulher mais madura e experiente.

Eu a conheci na Internet, fui suficientemente dissimulado - não de propósito - para que ela visse em mim não um moleque vazio, e sim um rapaz com jeito mais prudente, experimentado. Agora estava em sua casa, olhando para um pequeno birô, bastante rústico, que enfeitava sua sala. Nele, havia muitos porta-retratos. Em alguns deles, fotos dela quando casada - Cristina, seu nome -, junto com o marido e o filho de dois ou três anos.

Esse fim-de-semana ele foi para casa do pai, disse ela ao me ver observando a foto do rebento.

Ela me ofereceu um vinho e eu nem gosto muito dessa bebida mas aceitei, ainda a observar mais a casa do que a lhe dar atenção. Por todos os lugares, eu ainda percebia coisas que não pertenciam a ela. Quadros na garagem, discos na sala, roupas no quarto. Pertences do ex-marido que só lembrava de pegar quando, de repente, sentia falta. Ela continuava a falar.

Há três dias ele veio pegar uma coleção de atlas que compramos certa vez em viagem. Muito bonitos.

Lembrei-me de uma poesia de Bukowski, em que ele se questiona se alguma vez precisará ir visitar alguma mulher de seu passado em busca de uma bermuda. As mulheres de seu passado, ele dizia, pareciam-lhe inexistentes. E para mim também.

Acaso para onde foram todas elas, para onde foram as Claras, Priscilas, Cinthias, Adrianas, Ianas, Gabrielas, e outras, tantas outras, que não são infinitas, mas, certamente, incontáveis, visto que aos poucos elas têm se deletado de minha mente?! Decerto, poucas ainda se lembrariam de mim se eu lhes telefonasse. São nomes e corpos, lábios rosados por natureza ou pintados, peles macias e finas como algodão e silhuetas de diferentes formas que ainda povoam minha cabeça de quando em quando. Com elas, compartilhei ilusões que pareciam belas e sadias, dessas que aquecem e viciam a alma de quem vive castigado pelo sofrimento. Se pudéssemos parar o tempo, esses instantes que eu teria passado com elas teriam valido por tudo no mundo (só que não se pode pará-lo, e, portanto, o que valem, senão nada?), porque os momentos que compartilhamos foram em geral bons momentos, porém nunca os momentos mais necessários. O prazer que se acometia de mim quando estava em suas companhias não se sobrepunha à solidão que eu sentia quando me despedia de cada uma na porta de suas casas, e saia a vagar sozinho pela madrugada.

Contei para a Cristina que estava um pouco apreensivo, e, certamente, poderíamos nos encontrar numa segunda ocasião. Ela me deixou cochilar um pouco em sua casa. Devo ter sido tolo em não poder aproveitar tamanho filão, considerando que ela era mesmo muito atraente e, como muitas mulheres solteiras em sua idade, muito carente e fogosa. Seu jeito maternal, contudo, não me deixava à vontade. Esses tantos pensamentos que me vieram à mente só serviam para me deixar ainda mais oscilante. Depois do breve cochilo que eu dei, disse-lhe que preferia ir embora. Falei que havia bebido demais, estava desanimado. Ela entendeu. Ainda me ofereceu carona, disse que estava tarde, mas eu lhe deixei claro que não precisava. De fato, eu não queria mesmo. E jamais voltaria a vê-la.

Depois de sair de sua casa, mais uma vez segui sozinho e taciturno, numa caminhada extensa e duradoura. Sabia que estava acompanhado somente pela solidão. Pensei na hora que o melhor de mim eu devo ter perdido nessas incompletas aventuras a dois. Agora, somente o meu resto é que passeia calado pela noite escura.



quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Fissuras reprimidas

Eu observava o balançar glúteo da garota que seguia à minha frente e não conseguia mudar o foco de minha atenção. Era muita beleza reunida naquele pedaço de carne em movimento constante, moldado por uma calça jeans de um tipo que não sei bem descrever. Eu não sou de ficar feito pateta babando por cada bunda bonita que vejo, mas essa garota tem um conjunto de corpo tão atraente para mim que eu fico fissurado quando a vejo passar, gosto de ver primeiro seu rosto, seu olhar verde e perdido, seus mãos a segurar os cadernos e livros, braços cobertos pela penugem fina que parece ser igual aos cabelos castanhos, e enquanto a observo, bem pequena, bem charmosa em seus movimentos suaves, chego até a fazer algumas artimanhas, como fazia nessa vez, para poder segui-la sem que ela notasse a menos de cinco metros de distância (onde posso vê-la bem) pelo decorrer dos pátios do campus até o momento em que eu ia pegar a minha moto e ela se dirigia para sua parada de ônibus. Já pensei em falar com ela alguma vez, tentar conhecê-la melhor, só que achei melhor não, ela faz ensino médio, deve ter seus 15 ou 16 anos, então eu deixo suspenso o meu interesse, vez que ela nessa idade tanto pode como não pode gostar da ideia de chamar a atenção de caras mais velhos, isso embora eu não seja muito mais velho, só uns sete anos no máximo.

Mas eu sabia como ela se chamava, era Andressa, alguém me falou numa certa ocasião, e eu remeti imediatamente a uma outra garota de nome parecido - esta se chamava Andreza, com z - que morava perto da escola onde eu estudava na época do ensino fundamental (eu tinha, sei lá, uns 15 anos, e a Andreza também), e como toda garota daquela área, ela estava sempre em oferta para quem chegasse, o preço não podia ser mais primitivo: era sempre o cara mais forte que chamava a atenção das meninas por ali, e eu nunca fui forte nem nada - apanhei muitas vezes na vida, aliás, apanhei em todas as vezes que briguei -, no entanto teve uma fase em que fiquei amigo do Eric e ele serviu de atalho pois era um cara forte, e não somente forte, era um gaúcho muito bem-apessoado, além de carregar aquele sotaque característico que eu acho chato mas as meninas achavam charmoso e tudo isso formava elementos que despertariam inveja em todos os outros caboclos da turma, eu inclusive. Isso era no ano 2000, e eu conheci o Eric um mês depois de iniciada as aulas, na semana em que se comemoravam os 500 anos do país e havia todas aquelas festividades, o que pra mim era uma chatice enorme, e eu na minha origem punk decidi como uma forma de rebeldia fajuta dessas que a gente nutre na adolescência rabiscar na minha camisa da farda a frase PAU NO CU DO QUINTO CENTENÁRIO, e enquanto andava com essa camiseta no pátio da escola, o Eric me parou certa vez e disse:

Pô, massa demais... até que enfim alguém que pensa como eu por aqui.

Pega, pinta a tua camisa também, falei, entregando-lhe logo uma caneta vermelha, dessas de escrever em lousa.

Dali em diante, eu, com a amizade do Eric, teria algumas portas abertas no meio mais obscuro da escola, porque Eric era um garoto de classe média alta que tinha ido parar ali como forma de castigo, mas seus pais não esperavam que o castigo do garoto se tornasse um carma para eles, porque Eric naquela escola virou rei, rei das garotas, a quem conquistava facilmente e rei da negrada, sendo ele o traficante-mor daquele gueto, carregando sempre dinheiro para fazer circular tudo de bom e de ruim sob vista grossa da Ritinha, a diretora da instituição. Eu e Eric formamos junto com outro cara chamado Maurício uma banda punk chamada Cavalo Amarelo, que depois passou a se chamar Aura Oculta e aí ficamos realmente próximos e com ele comecei a viver mais coisas, comecei a pôr em prática os delírios que eu absorvia da literatura que me convinha (com Jack Kerouac e Neal Cassady falando da magia de viver as ruas e o mundo, fugir dos escritórios e dos ambientes claustrofóbicos, de frequentar meios marginais), e nessa tendência convivi por uns anos com o meio barra-pesada que o gaúcho frequentava, e nesse período foi que conheci, pelas infinitas rodas de bebedeira, a Andreza, que também tinha uma bela bunda como a garota de nome parecido, além de tantas outras conheci nessa fase - só que ao mesmo tempo não conheci nenhuma, pois todas essas meninas que comi e de quem esqueci logo depois foram apenas símbolo de um tempo de deslumbre, quando eu, adolescentemente, queria viver todas as coisas e não vivia nada.

Quando o Eric foi embora - ele sofrera um acidente de carro que o faria perder a voz e os pais mandaram-no para morar com outros familiares no Rio Grande do Sul -, nossas vidas já estavam se desestruturando, de modo que se continuássemos naquela a coisa ficaria preta para nosso lado. A Aura Oculta já era artifício do passado, o Maurício já tinha se tornado pai de família aos 16 anos, e eu terminei ficando sem o meu suporte principal, de maneira que percebi já ser a hora de deixar de frequentar os círculos tenebrosos com os quais eu ainda estava envolvido. Levou pelo menos dois anos para que eu abandonasse completamente essas influências, precisando manter-me recluso, mudando de escola, diminuindo gradativamente meu relacionamento com outras pessoas - tanto as desse meio como as pessoas "comuns" - e precisando segurar a vontade que eu tinha de abandonar o isolamento para retomar os contatos com intuito de comprar algumas trouxinhas de cocaína, mas resisti talvez porque não fosse viciado, e sim apenas fascinado pelas maravilhas narcóticas. A Andreza, porém, que me deu a maior força e foi a única pessoa com quem mantive contato, ficou para trás, no entanto eu soube há não muito tempo que ela havia se mudado. Espero que para bem longe, ainda que hoje ela já não deva mesmo ostentar aquele corpo bonito que mantinha nem talvez o carisma que me fez lembrar dela antes das muitas outras.

No entanto, algumas coisas permanecem, a minha fissura pela cocaína por exemplo era a mesma que mantinha por sexo, e tanto um como outro quando cruzam hoje o meu caminho me fazem remeter àquele período estranho, e por isso eu sempre tentei me convencer de que a cocaína é uma merda, o chá de cogumelo é uma merda, sexo é uma merda, punk é uma merda, só que eu não pensava essas coisas por apreensão, nem vergonha, nem repúdio das memórias que trago, pelo contrário, sem elas não seria o que sou; é apenas porque realmente não gosto mais dessas coisas, elas me chateiam - mas de Kerouac ainda gosto, enfim aprendi a lê-lo. Em paralelo, aos poucos vou tentando me livrar do estigma que sempre carreguei, mas que se intensificou durante e depois daquele período, de valorizar tão pouco as outras pessoas, de maneira que hoje, anos depois, tenho me relacionado melhor com as drogas do que com o sexo (por isto ser uma coisa que necessita de presença alheia, o que para mim é algo potencialmente incômodo) e findo lamentando, quando olho para trás, pela pessoa que eu parecia ser, afeita a certos prazeres tão desmedidos que agora pareço estar sequelado, vendo a garota à minha frente balançar suas belas nádegas redondas em meu convite - e aposto que além desses atributos, ela ainda é uma garota de muito mais cérebro do que todas aquelas que experimentei na adolescência - mas eu prefiro deixar pra lá, para não ter que pensar em tudo de novo.



segunda-feira, 9 de novembro de 2009

50 caixas de sutiãs anatômicos

Nunca fui tanto à Igreja quanto no último mês. Desde que abandonei a minha moral católica há uns dez anos, só frequento tal recinto para levar minhas considerações a amigos e colegas falecidos, nas missas de Sétimo Dia. Ultimamente, tem se tornado comum. Lembro-me que pouco mais de um mês atrás, um sujeito conhecido como Pequeno, também chamado de "velho companheiro", infelizmente viu seu fim de forma trágica. Ele era o pedreiro que estava remontando algumas coisas no meu quintal, reconstruindo um muro, reinstalando, versátil como era, a fiação elétrica para que eu pudesse ter alguma luz quando quisesse matar algumas noites ali - elas haviam sido danificadas por um curto-circuito recente. Na décima vez em que Pequeno completara o serviço do dia - faltando apenas outros dois dias para concluir toda a reforma -, ele me chamou para o Video-Bar do Léo. Eu não gosto de beber nos bares daqui, então até pensei em topar, mas depois voltei atrás. Vi Pequeno sair em sua bicicleta, meio trôpego e cambaleante.

Mas no sábado a gente vai!, dizia enquanto se afastava.

O sábado chegou, porém, e o Pequeno não reapareceu. Somente na terça-feira eu recebi a informação de que o corpo de alguém encontrado embaixo do viaduto da BR-101, dias antes, poderia ser dele, e estavam solicitando pessoas que o conhecessem. Fui no Instituto Técnico de Polícia e me alertaram desde já que o corpo estava em grande parte irreconhecível não somente pela decomposição, mas porque o rapaz em questão havia sido espancado brutalmente.

Entendo, falei, meio sem saber no que pensar. Parecia estar no piloto automático.

Quando o legista puxou o lençol mostrando-me o corpo, eu até me espantei com o estrago que fizeram com o rosto. Mas eu o reconheci pela sua dentição irregular. Reparo rápido nas dentições das pessoas, talvez porque a minha também é bastante irregular; deve ser uma forma inconsciente de autodefesa, ou de autoafirmação.

É ele mesmo, Pequeno, chama-se José Vieira, não sei o nome todo, falei.

Tudo bem, nós já temos aqui, disse o legista.

Junto com alguns vizinhos - que sempre requisitavam os serviço de Pequeno nas suas reformas -, bancamos um funeral modesto para ele. Pequeno morava com a mãe, uma velha que ainda precisa lavar roupa pra poder se sustentar. Grande parte das minhas economias, inclusive um dinheiro que iria utilizar para viajar para um congresso, repassei para a pobre dona.

Pequeno enchera a cara no Bar do Léo e, segundo a polícia, ao sair, bêbado, foi seguido por dois elementos que esperaram o momento certo - a ocasião em que ele passava sob o Viaduto da BR-101, uma área bastante deserta - e derrubaram-no da bicicleta, encheram de porrada e levaram para casa algo em torno de, sei lá, 30 reais.






O tempo que participei do movimento estudantil na época em que fazia ensino médio tinha sido determinante para que eu pudesse fazer algumas amizades. Se dependesse de minha iniciativa em conhecer pessoas pura e simplesmente por conhecer pessoas, provavelmente eu estaria vivendo num deserto hoje. O hábito de estar sempre em interação me permitiu conhecer pessoas de anos diferentes, turmas diferentes, ser convidado para momentos de confraternização e outras coisas afins que sempre fiz com prazer. Mesmo não mantendo contato com praticamente ninguém, há um respeito latente quando nos vemos, e sempre assunto para algumas horas de conversa.

Com um amigo do passado, porém, essas horas de conversa não mais existirão. Era o caso de Ítalo, que conheci de modo adverso - questionando-o aí em alguma assembléia estudantil anos atrás - mas que depois viramos grandes amigos, também decolou para o além há alguns dias, semanas na verdade. Em viagem de carro para a cidade de Currais Novos, seu pai perderia o controle da direção e sofreriam uma colisão de frente com uma carreta que vinha em sentido contrário, num acidente que foi fatal para as quatro pessoas no carro (a prima de Ítalo ainda sobreviveria mais uns dez dias internada).

Lamentei bastante.

A última vez que o encontrei faz seis meses. Eu estava assistindo algumas bandas instrumentais no Som da Mata e ele me chamou e até me pagou um lanche e papeamos por muito tempo, inclusive saudei-o bastante por ser ainda um cara de ideias avançadas e prosa fácil.

Quando eu pensava, enquanto conversávamos, nas outras pessoas que me circulam hoje, quase todas de conversas redundantes, incapazes de conseguirem falar de algo além do assunto em questão - geralmente alguma merda bem banal - e desarticuladas demais até mesmo para formular algumas perguntas (o que faz as conversas parecerem um interrogatório de minha parte), concluia que deveria ser mais amigo de pessoas como o Ítalo. Mas ser mais amigo não é uma escolha. Deixei por obra do acaso a responsabilidade do nosso próximo encontro, no entanto a vida tomou outro caminho.






Durante anos, o ponto comercial que tem aqui do lado da minha casa esteve alugado a um bom sujeito chamado Tércio. Ele estava agora com seus 50 anos, era um cara vivido, um aventureiro, contudo alguns anos atrás, ele, cansado, já sem tanta saúde, decidira levar uma vida pacata, dividindo com sua esposa - Mercedes, na mesma faixa de idade - e a filha - Juliana Carla, de 21 anos - a propriedade de uma pequena loja de roupas femininas. Tércio passava o dia todo, manhã e tarde, na loja. Lá pelas 14h00, a Juliana aparecia. Depois desse horário, ele ou a esposa, ou às vezes os dois, saiam, para bancos, distribuidoras e coisas assim.

A Mercedes, porém, faleceu pouco tempo depois de abrirem a lojinha aqui. Eles pensaram em fechar a loja, mas Tércio achou melhor mantê-la. Pensava em dar para a filha no futuro. A Juliana e eu nos conhecemos e viramos bons amigos, e até mais - ou menos - que amigos, por muitas vezes já nos pegamos ali na salinha dos fundos da loja. Às vezes, quando tinham algumas peças que não iam mais vender por motivos diversos, como defeitos de fabricação , a Juliana brincava com elas, experimentava, botava, tirava, sob a minha vista e com minha ajuda, claro; depois, jogava as peças fora, ou doava, até para mim mesmo. Eu trouxe várias. Presenteei muitas outras garotas com esses trajes íntimos não-vendíveis. Com a Juliana, a coisa não foi pra frente, mesmo com todas essas travessuras a dois, apesar de que quase namoramos, dada a frequência com que eu ia visitá-la - claro, quando o pai não estava presentes.

Mas ela já tinha outros planos. Arrumou um namorado de fato no meio tempo em que estivemos distantes um do outro e ficou noiva rápido. Conheci o cara quando ele veio à loja certa vez. Não senti inveja dele. A Juliana era uma ótima garota, no entanto eu levaria muito tempo para me acostumar à ideia de casar com ela.

Eles se casaram no início deste ano, só que Juliana manteve o costume de cuidar da loja com o pai. Semana passada, porém, essa rotina foi definitivamente quebrada. Quando a Juliana chegou, pela tarde, no seu horário de sempre, discutiu bastante com o pai porque segundo ele faltavam peças de sutiã. Ele ficou com raiva porque a filha havia sido muito desleixada ultimamente com a loja, e mandou que ela fosse na distribuidora trazer um número previamente acertado de caixas de sutiãs com barbatanas de sustentação anatômica: 50.

Juliana saiu na picape em alta velocidade. Pude ouvir daqui. E sabia que todas as vezes que ela saia rápido assim no carro significavam que havia brigado com o pai.

Entretanto, ela demorou demais. Levou quase duas horas para voltar. Quando enfim chegou, com aquele monte de caixas arroseadas na caçamba, a rua estava pacata como sempre e ninguém tomava conta da loja. Somente quando entrou é que percebeu o pai já desacordado, provavelmente já estava morto; havia tido uma parada cardíaca e nenhum socorro pôde ser prestado pois não havia ninguém para ajudá-lo. Ela chamou a ambulância, mas não adiantou, o Tércio havia mesmo ido. Tudo isso por causa da teimosia em terminar o dia com 50 caixas de sutiãs anatômicos na loja.

A ideia de que um homem morreu aqui na casa ao lado, em si me apavora um pouco. Só que é um pavor que passa rápido. No máximo, gera algum arrepio. De maneira geral, para mim não fez diferença. Eles estavam mesmo para ir embora, afinal. A Juliana fechou a loja, com o falecimento do pai, e foi viver às custas do novo marido. O estoque restante ela vendeu por migalhas, saiu distribuindo, até a mim mesmo ela me viu cinco ou seis caixas de sutiãs dessa. Minha mãe todas pegou para si e para vender no trabalho, eu acho.






Um dia desses toquei violão no trem com uma garota que se chamava Frida, ou pelo menos se identificava assim. Nós nos conhecemos aqui no bairro há três anos, mas eu não dou muito as caras pelas ruas as redondezas, prefiro ficar trancado em casa, então não rola muito de nos encontrarmos. As vezes em que nos conversamos se deram quando nos esbarramos no ônibus, ou no trem. Sempre, pelo menos uma vez por mês, eu esbarrava nela em alguma dessas conduções.

A Frida era uma garota rebelde demais, dos tipos que talvez precise se esforçar para parecer provocativa e ousada, mas dava para notar certa autenticidade nela. Era inteligente, apesar de tudo. Falava sobre várias coisas. Xingava muito. Ainda assim, meu cinismo a irritava mais que os seus xingamentos a certos hábitos meus. Tinha uma energia muito explosiva, emitia emoções facilmente, falava alto e rápido. Gostava de falar sobre livros, já emprestei um ou outro para ela. Depois que ela me devolvia, repudiava a maioria dos livros. Dizia que, se eu fosse recomendar algo, que soubesse fazê-lo. Atínhamo-nos a desconstruir os argumentos do outro. Era um exercício interessante. Ela nunca me emprestou nenhum livro, acho que nem tinha livros, aliás.

Certa vez, ela me comentou o fato de eu nunca ter lhe perguntado onde morava. E questionou se era por falta de interesse que eu não lhe perguntava isso.

Se eu souber onde mora, não ficaria de bom tom para meu lado caso não fizesse uma visita, eu lhe disse, completando: mas não gosto de fazer visitas, como não gosto de recebê-las.

Ela de fato já sabia disso, tanto que entendeu - ou pelo menos achei que houvesse entendido. Numa dada ocasião, insistiu que eu conhecesse sua casa. Então concordei e fui. Sabia que ela morava com a mãe, só que a mãe não estava, e não faço ideia de onde poderia estar. No seu quarto, todas as marcas de sua inconsequência: paredes rabiscadas, alguns desenhos demoníacos em papel jogados debaixo da cama, papelotes de pó convenientemente escondidos nos fundos das gavetas, um cd de músicas incompreensíveis já no ponto no mini-system, só esperando ser dado o play, coisa que ela não demora a fazer.

Gosta desse estilo?, ela pergunta. É gore-grind.

Isso é uma merda, eu disse.

Ela comentou que aquele excremento sonoro tinha exatamente essa pretensão, de ser antimúsica, de fugir de convencionalismos. As músicas se ligavam de maneira bizarra, sem pausas ou intervalos quaisquer. Ela adorava. Dizia que esse som é como um trem pro inferno: não tem freio. Haja contorcionismo conceitual.

Eu falei que não queria cheirar nada, e também não queria ouvir nada. Ela acatou, desligou o som e guardou os papelotes, e passei a noite por lá.

Dois meses depois, eu a encontrei no trem Natal-Parnamirim. Ela estava com violão em punho e perguntou porque eu não a procurei nesse tempo todo. Estava um pouco mais amável do que seu jeito habitual, entretanto continuava elétrica como sempre. Parecia mais bonita também, apesar de a pele estar pálida. Devia estar exagerando nos entorpecentes, eu falei, e ela mudou de assunto. Pegamos o violão e cantamos uma ou outra música. Mas ela não gostava das músicas que eu tocava. Enquanto eu ficava lá dedilhando, ela preferiu pegar a minha agenda e ler se tinha algo escrito. Encontrou um fragmento de poesia.

porém, não te sou insincero, meu amor
a vida pra mim é, e sempre foi, uma dor
uma vala de cacos e fatos incolores
uma estrada escura e tão vazia de valores

Gostei disso, ela falou, agora num tom mais sério. Mas não comentou mais, o trem havia parado e era a estação dela. Pegou o violão e se foi, me implorou que a visitasse dentro de um mês depois. Haveria uma novidade na sua vida que queria me contar.

Só que não houve "um mês depois". No máximo dez dias após essa conversa, soube que ela morrera por acúmulo de entorpecentes. Havia tomado muitos calmantes acompanhados de uma notável quantidade de álcool que potencializou os efeitos dos comprimidos, o que causou uma grande depressão em seu sistema nervoso central fazendo-a perder a consciência e sofrer uma parada respiratória definitiva. Morte.






Já sinto a falta da Frida. E fico a lamentar também pelo Tércio, pelo Ítalo. Lamento também pelo Pequeno, com quem eu sempre conversava enquanto o via trabalhar. Era um sujeito que tinha muito a falar, mas ninguém para ouvir, então eu ouvia. Eu ficava sentado numa cadeira de praia tomando cerveja e dizia para ele segurar a vontade, que depois do serviço poderia beber cerveja à vontade. Apesar disso, eu nunca cumpria a promessa. Sempre dividia com ele a bebida.

Posso pensar que nenhum deles fazia parte da minha vida diretamente, pois não participavam dela, não eram parte do meu cotidiano. Só não é suficiente para deixar de lamentar. Decidi passar para o computador e continuar escrevendo os versos manuscritos fragmentados que tinham sido objeto de apreciação, ainda que breve, da Frida, e enquanto digito sinto um frio sinistro me correr a espinha. Olho ao redor e não vejo e já não sinto nada, não há nem vento aqui. O quarto está todo escuro, e hoje está mais fúnebre do que nos outros dias. Mas eu prefiro não acender a luz.