domingo, 24 de agosto de 2008

Domingo de sonhos e frustrações

Acordei cedo no domingo. A manhã estava bastante ensolarada, mas isso eu só vim descobrir depois, já que mantive a casa totalmente fechada e só abri as janelas quando o calor começava a se tornar insuportável. Eu gostava de acordar cedo no domingo, pois nada nem ninguém me cortava a paz nessas ocasiões. Não havia telefonemas, nem mendigos batendo a porta. Não havia garotas gritantes indo para a escola nas ruas. Nas calçadas, só se somava lixo. No asfalto, somente a poeira trazida de outros confins pelos carros. No ar, nada mais além do fedor da noite cheia de sábado, dos bares, traillers, dos transeuntes fumantes, maconheiros, das garrafas de álcool quebradas. A madrugada de sábado era movimentada na rua onde morava. A manhã de domingo, contudo, era o completo inverso. Todos estavam ressacados em suas casas. Na rua, só sobravam os estragos da noite.

O sossego das manhãs dominicais me permitia escrever livremente. E eu me sentia muito entusiasmado para escrever. Escrevia para blogs, escrevia para uma revista, era publicado em jornais, mandava meus contos para páginas na internet. A maioria publicava de graça, quando muito. Mas eu sabia, era um desejo, era, talvez, uma meta - ainda que não fosse uma meta tão bem traçada, mas era uma meta -, eu ainda haveria de receber pelo que compunha, sabia que ainda haveria de me tornar um escritor. Não um escritor amador, pois isto já sou, não um escritor de amenidades, mas um escritor profissional, destacado, eu apenas viveria para escrever e seria remunerado por isso. E não demoraria. Mas mesmo meu enstusiasmo não foi suficiente para que eu desse seqüência ao conto que estava produzindo. Isso porque eu teria um compromisso pela tarde, e eu não consigo começar a escrever sabendo que terei de parar num determinado momento. Não conseguia me recordar de que se tratava o compromisso. Fiquei tentando me lembrar. Enquanto isso, não tinha comida nem bebida em casa, não tinha sequer água. Peguei o copo e fui a uma torneira nos fundos para matar a sede. Precisava de dinheiro. Eu ainda estava muito emputecido, pois dois dias antes fora depositado em minha conta 1200 reais, contemplando três meses de salários atrasados. O meu saldo no banco, porém, era negativo e o valor da dívida se sobrepunha ao do depósito. Sendo assim, eles comeram todo o meu dinheiro, sem dó - e ainda permaneci devendo.

As minhas fontes de renda foram sempre muito incertas. Quando trabalhava, não recebia. Quando trabalhava e recebia, o valor era baixo. Quando não trabalhava, ralava com o que fosse possível. Não conseguia empregos em lugar nenhum; vivia pulando de estágio em estágio, não importa para que atividade fosse. No momento em que me vi outra vez com tão pouco dinheiro, não tinha muito a fazer. Só existia um lugar onde eu poderia comer e beber naquela situação. Fui, então, procurar um bar, poderia satisfazer minhas necessidades, claro, dependente da cortesia dos presentes ou do dono do estabelecimento.

Os bares estavam fechados.

Voltei pra casa extremamente contrariado. Queria beber ou comer algo, mas não havia nada. Só uma coisa poderia suprir minha míngua: a leitura. Mas em casa não seria possível. Todos os livros da estante já haviam sido lidos - e, boa parte, relidos -, ainda que o conteúdo nem sempre me agradasse. Eu não tinha dinheiro para comprar bons livros, quase todos eles haviam sido adquiridos em sebos - ainda assim, os bons livros disponíveis em sebos estão estrategicamente com valores mais elevados. Eu comprava, então, qualquer coisa que parecesse minimamente interessante às primeiras folheadas, e só em casa em descobriria que nada valia. Escritores americanos, asiáticos, europeus - quanta bobagem! Ou mesmo os brasileiros - mais ainda meus conterrâneos potiguares, dos quais ainda comprei algo esperando ver coisas boas. No fim das contas, tinha vários livros, talvez umas três centenas, mas nada que me alimentasse a inteligência. Quando eu achava que estava escrevendo mal, perdendo o jeito para a coisa, bastava que eu lesse tais escritores; eu veria que não tinha com que me preocupar. Ninguém tinha nada a dizer.

Tentei dormir, mas não cheguei a cair no sono. Sentia-me muito desconfortável. No momento, lembrei-me de uma velha piada, que dizia que "morar sozinho e fugir de casa era o cúmulo da rebeldia". Que asneira! Só mesmo quem nunca viveu sozinho para achar uma rebeldia o ato de querer fugir de casa nessas condições. A casa é um lugar tão sufocante... No meu caso pelo menos, já não conseguia mais me manter deitado e fingindo acreditar que estava seguro e confortável. Decidi sair.

Eu tinha uma motoca, muito econômica, que ao menos fazia com que o deslocamente não me fosse um problema. A hora já passava do meio-dia, peguei uns poucos trocados, então, e saí. Iria para o primeiro lugar que se me apresentasse.

Fui a uma livraria e detive-me a ler alguns autores consagrados, ansioso com o dia em que poderia tê-los em casa, numa biblioteca particular, sempre ali, disponíveis para oferecer seu talento à minha necessidade no momento em que eu achasse que precisava; mas, mais ainda, ansioso com o dia em que seria eu o escritor, eu o publicado, meu livro o manuseado. Meu nome não somente a enfeitar prateleiras de livrarias e bibliotecas, mas exigente de uma estante própria, de tantas edições destacadas que teriam, e de tantos ávidos leitores que entrariam no estabelecimento e seguiriam direto para ele.

Eu gostava de ler alguns clássicos, gostava da literatura marginal, e de tanta coisa. Mas até os escritores marginais de outrora são cult's hoje. O pop conseguiu embolar tudo no mesmo pacote, até mesmo aqueles que dizem nadar contra a corrente. E eu me preocupava com a banalização de meu nome, de meu belo e vigoroso nome, de minha literatura sagaz, ainda que imperfeita, sendo reduzida a um nicho cor-de-rosa, rotulado e movido a marketing de quinta categoria.

Pausei minha leitura para tirar esses pensamentos perturbadores da cabeça e fiquei a olhar para o ambiente, para os atendentes, os clientes. Notei especialmente uma garota, ali na seção de Literatura Estrangeira - eu me encontrava na seção de livros de bolso, aqueles que continham as traduções mais mixurucas, mas que eram os que eu vislumbrava adquirir. Observei a garota, cujo rosto não me parecia totalmente estranho. Era bonita, tinha o cabelo curto, bem curto, acima do pescoço, certamente muito cheiroso, e deixava a nuca à mostra. Enquanto a observava, ficava me culpando por ser tão preconceituoso com as garotas. Porque, de fato, eu o era bastante. Cresci sob um universo masculinizado. Até os 13 anos, pouco tivera contato com o mundo feminino. A única coisa que sabia - ou que pensava saber - das mulheres era a partir das revistas femininas da minha mãe. Com essa idade, recém-ingresso na vida adolescente, eu já achava que sabia de tudo delas, e já me considerava ciente de que não representavam muita coisa. Esses pensamentos somente se elevavam quando eu visitava sebos e notava que as próprias responsáveis nada sabiam de nada: "Rubem Fonseca? Olha... Não sei se tem". "Sartre? Como é?! Sar-tre? É brasileiro?" Que ignorantes!, exclamava eu em pensamento!

A garota saiu, então, da seção de Literatura e foi para as revistas. Levantei-me, então, e segui até ela, pondo-me ao seu lado. Fiquei passando as páginas de umas e outras revistas, enquanto, à espreita, a vigiava fazendo a mesma coisa. Notei que ela pegou uma revista, uma que incluía um conto meu. Isso me embaraçou num instante, fiquei nervoso, ainda que ela nem tivesse notado direito a minha presença. Mas ela era esperta.

- Está espionando o que faço? - perguntou. Achei que estivesse sendo simpática, mas sua face não nem demonstrava nenhum senso de humor. Não gosto desse ar meio enigmático, pensei na hora.

- Ah, não... É que escrevo para essa revista, essa que você está manuseando e, sabe...

- O que você escreve?

- Contos.

- Não gosto de contos; prefiro romances.

- Eu também - menti. - Mas não convinha colocar um romance numa revista...

- Você já escreveu algum romance?

- Ainda não.

Ela continuou a ler e eu não dei seqüência à conversa. Na verdade, sentia uma certa aflição. Ela ainda rompeu o mutismo entre nós, talvez tentando manter a conversa que eu imaginei morta desde o começo.

- Por que você não fala mais?

- Não tenho o que falar. Acho que por não falar tanto é que eu escrevo.

- Uma coisa tem a ver com a outra, para você?

- Claro... A Literatura é a rebelião organizada contra a fala, nunca ouviu dizer?

Ela riu e me deu um marcador de páginas com pensamentos sobre a Literatura. E me apontou um.

- Prefiro esse - disse. - "A Literatura é a confissão de que a vida não basta".

O celular dela tocou discretamente, o telefonema foi bastante breve, depois ela apenas me disse seu nome e se despediu em seguida.

Eu lhe propus acompanhá-la, mas ela assegurou não ser necessário. Permaneci na livraria, sozinho, absorto em divagações, quando foi a vez do meu celular tocar. Era uma outra garota. Lembrei-me, então, do compromisso que eu teria para o domingo! Eu sairia com essa que agora me ligava - aliás, somente sairia. O propósito do telefonema que recebi era justamente desmarcar o compromisso. Eu não fiz objeção, embora soubesse que a justificativa era falaz. Ela fez questão de que remarcássemos para algum outro dia, e assim fizemos, mas, de minha parte, sem grandes esperanças de que ele viesse a se concretizar.

Comi uma besteira barata num carrinho de lanches qualquer e fui pra casa, era o início da noite, e já estava com parte de meu apetite para comida e para leitura saciado. No longo caminho que traçava pela BR 101, eu observava as prostitutas que começavam a se acumular às margens da rodovia. Depois do compromisso cancelado via telefone, havia reflorescido em mim um desalento com as garotas. Seguia e observava agora as meretrizes e pensava o quanto eram sujas. Mas, por sujas que fossem, eram mais limpas do que eu, que tinha uma mente para vender, enquanto elas não vendiam mais do que um pobre pedaço de carne.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Na companhia do vazio

Não se preocupe com rejeições, parceiro.
Fumei 25 cigarros esta noite,
e você sabe sobre as cervejas.
O telefone tocou apenas uma vez:
era engano.

Charles Bukowski
, O Amor é um Cão dos Diabos



Já fazia quarenta minutos que eu caminhava solicitando carona a todos que passavam protegidos em seus automóveis, mas ninguém me concedia. Era alta madrugada e eu estava um pouco embriagado, mas desejava chegar logo em casa, ou, pelo menos, encontrar algo que me fizesse minimamente confortável. Pouco antes, eu bebia com os colegas de faculdade até que fechasse o bar - convenhamos, eu não esperava que fechasse, pois não tinha mais condução que me levasse até em casa, 20 quilômetros distante. Todos se foram, cada qual para seu lado, com as moradias próximas ao boteco, caronas e quetais. Eu poderia usar de minha motoca, mas a havia deixado na manhã anterior num borracheiro; estava com o pneu furado e eu teria de suportar o peso de andar a pé e, quando necessário, recorrer ao ônibus - como já disse, porém, não havia mais possibilidade na hora em questão.

Vou ligar para alguém, pensei, mas para quem eu ligaria? Fiz uma tentativa.

- Ei, posso dormir aí na tua casa?

- Porra, é quase uma da manhã - respondeu meu interlocutor deixando claro que eu lhe interrompera o sono e desligou, não sem antes xingar minha mãe.

O meu celular ainda me oferecia uma lista de pelo menos 30 pessoas a quem eu poderia ligar. Mas eu sabia que delas nada conseguiria senão aborrecidas recusas. Conformei-me em vagar na madrugada, novamente em busca de carona, ou, ao menos, de um refúgio qualquer. Foi quando vi um cyber 24h, e entrei. Pelo menos a internet poderia me entreter até que amanhecesse o dia, já que eu passei da fase de achar legal ficar dormindo na rua.

Naveguei um pouco na internet e, dentre os poucos disponíveis para conversar àquela hora, me deparei com uma garota insone, colega de curso, que recentemente conhecera. No decorrer do palavreado, ela se queixava de tantas coisas, entre as quais o tédio de estar sozinha em casa naquela madrugada. Então eu pensei, já que estava a não mais que meia hora da casa dela: seria legal se...

Papo vai e papo vem, ela sabia que eu estava por perto e me convidou para ir até sua residência, ao que imediatamente aceitei. Existia um certo flerte entre a gente, embora eu tivesse aceitado o convite na melhor das intenções, afinal, só queria um lugar para dormir.

O fato é que, quando já estávamos ambos acomodados em sua casa, ainda conversamos um bocado, e como ela soubesse que eu havia bebido há pouco, por certo bateu-lhe também uma vontade de beber, pois logo me ofereceria algo. "Tem uma vodka ainda aqui, que tal bebermos um pouco?", perguntou-me. Consenti prontamente.





Duas horas depois, a garota se mostrava bastante deprimida e desculpava-se repetidas vezes por ter sido tão oferecida justo nessa primeira vez em que nos encontramos. Nós repousávamos nus na sua cama, tínhamos feito de tudo, e eu me sentia mal com tudo aquilo, enquanto ela buscava um jeito de fazer com que não perdesse meu respeito, por mais que eu dissesse que isso não aconteceria. Como ela insistisse e eu fosse reincidente, então me pediu que lhe desse uma prova de que a continuaria respeitando pela manhã. "Vá em frente", incitei.

- Me peça em namoro - ela disse!

Eu me assustei com a proposta. Mas, como sabia que ela sequer se lembraria da conversa depois de um cochilo, cedi.

- Tá bom... Namora comigo?

Ela riu e sentenciou: - hahaha! Não, seu otário, não gosto de você!

Poucos minutos depois, a garota vomitaria todo o banheiro, tomaria um banho rápido e voltaria despida para a cama, dormindo em seguida. Já nem sabia o que estava fazendo. Eu fiquei acordado, continuava a me sentir mal, não pelo excesso de bebida, mas por aqueles momentos a dois, e eu realmente não precisava ouvir o que ela falou. Fiquei andando pela casa, sentando no sofá e levantando, começava a ver filetes do alvorecer reprimidos pelas brechas da janela e fui deitar-me na cama. Não muito tempo depois, o telefone tocava e nós dois despertávamos, ao mesmo tempo.

- Você precisa ir embora. - ela proferiu calmamente, e explicou o porquê. Fui embora, portanto.





Muitas horas depois, o colega que me houvera recusado um lugar para dormir estava a ligar, chamando para assistir um festivalzinho de rock. Aceitei o convite, para só depois compreendê-lo de fato. Meu bom camarada não tinha dinheiro para a entrada. "Arruma aí, é só dessa vez". Não, não era só dessa vez. De qualquer modo, eu não negaria. Ele sabia disso. Assistimos ao festival, e no final ele pegou carona com uma turma.

- Ainda tem um lugar, quer ir?

Mas eu não queria carona na ocasião. Embora fosse relativamente tarde, ainda teria ônibus disponível. Sendo assim, preferiria ir sozinho.

Cheguei em casa e uma impressão estranha me acometia. O silêncio parecia mais audível para mim do que nos outros dias. A escuridão era mais visível do que eu percebia normalmente. Li um pouco, ouvi música, fui para o computador. Agia por inércia, sem propósito, sem juízo. Fui logar num de meus emails, e a resposta que obtive me fez concluir que, por tanto me procurar, enfim eu havia me encontrado: "o usuário não existe mais".