sábado, 20 de outubro de 2007

Patrão sem empregado

"Estude para ser senhor do seu destino", foi o que disseram àquele menino - palavras que ele mastigou bem, e delas se lembraria durante o resto da vida. Estudou, concluiu os ensinos regulares, era um jovem médio, sem grandes problemas e com um mundo pela frente. Todo fim-de-semana ia à sua igrejinha professar sua religião e receber abençoados votos de felicidades. Virou um assalariado. Destacado, convenhamos. Quem sabe, até com reais possibilidades de crescimento onde trabalhava. Trabalhou durante algum tempo na área de produção, mas não se sentia bem em saber que hierarquicamente existiam outras vidas sobre ele, dentro da empresa. Decidiu jogar tudo pro alto. Estava longe de passar necessidades, pelo contrário... já ocupava postos desejados por muitos. Mas achou que tudo aquilo não pagava o preço de ser dono de seu próprio trabalho, "patrão de si mesmo". Danou-se a ler livros de negócios, conhecia toda a bibliografia dos milionários, decorou chavões comuns a empresários iniciantes, fez de tudo! Até que, com a grana acumulada durante o primeiro trabalho e com a venda de alguns artigos, abriu seu próprio negócio.

No início, foi até complicado. Mas ele sabia que tudo ia melhorar - "o único lugar em que o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário", era seu lema. Lema já muito batido, é verdade... mas ele não estava nem aí pra isso. Orgulhava-se de ter o próprio empreendimento, mas sobretudo da idéia de não ter patrão. Trabalhava duro, todas as horas possíveis, em todas as funções. Não tinha empregados... achava que o ideal seria somente gastar o necessário. Empregados seriam gastos supérfluos. Passou a rezar em casa, o tempo de ir à Igreja diminuíra. Ganhou uma grana boa depois da fase difícil. Só parava de trabalhar para refeições, e, boa-pinta como era, rodeado de pessoas, decretava um feriado para cada aniversário de um amigo, para ficar livre e aproveitar o momento. Comprava novos equipamentos pro seu pequeno negócio, assinava novas revistas trademark, procurava cada vez mais fazer crescer sua empresinha. Gastar com lazer? Nem pensar... sua receita, por maior que fosse, era sempre insuficiente às despesas que tinha com o próprio trabalho. Não podia ficar perdendo dinheiro com amenidades. Passou a não trabalhar somente nos domingos, dizia já ser tempo de sobra para matar com amigos e parentes. Almoçava na mesma escrivaninha em que fazia seu serviço, pela falta de tempo. Depois de muito assistir jornais e televisão, ouviu falar numa tal flexibilização de leis trabalhistas. Ele não tinha funcionários a quem respeitar direitos, mas fez questão de implantar a dita "flexibilização" em sua empresa. Não podia ficar de fora do showbizz patronal! Flexibilizou os próprios direitos. Decidiu que trabalharia o máximo de tempo possível, para obter todo o lucro alcançável! Não havia limites para ganhos (?)! Já não almoçava mais... deixava pra comer na hora de ir ao banheiro. Ao menos fazia tudo logo de uma vez. Também não rezava mais; não tinha tempo que pudesse ser dedicado a qualquer outra ocupação! "Minha religião à o lucro", dizia aos amigos - aos poucos que ainda apacientavam-se e conversavam com ele. Mas logos estes também minaram-se. Virou um empregado de si mesmo. Aliás, ainda pior: virou empregado de um patrão que não existe! Sem amigos, sem religião, sem sequer um abastecimento suficiente de comida... assim se deu, até o fim.

Viveu mais que os amigos, mas ao mesmo tempo menos que todos eles. Não foi ao funeral de ninguém. Não se lembrava de nenhum nome nos porta-retratos. Quando enfim morreu, não sangrou. No seu corpo corrompido, já não havia mais sinal de nada que fosse humano.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Vozes e Visões

São quase 4h da manhã no momento em que acordo... nem me lembro direito as circunstâncias em que dormi, mas ao despertar percebo que não me são totalmente estranhas - televisão, computador e luzes ligadas, copo de café mal-acabado do lado da cama, um nervosismo exacerbado, próprio de quem acorda e pensa estar atrasado para um compromisso... na TV, parlamentares estão se digladiando em alto som.. procuro o controle remoto, enquanto os discursos inflamados não se propalam pra mim sob uma forma lógica do tempo-espaço... só o que ouço são berros horrorosos e desorganizados, demonstrações de ódio sem começo nem fim, caretas e outros artifícios sádicos utilizados por quem tenta impressionar alguém por meio das palavras... mas que palavras, onde elas estão?

Desligo a TV, mas as vozes agitadas elevam-se em minha cabeça... continuo me sentindo num grande salão de dança onde todos os pares, ao invés de dançar, reclamam e difamam uns aos outros... céus, fico me perguntando o que foi que fiz para merecer este tormento, onde eu estava, acaso eu não conseguia perceber que tudo eram apenas vozes da minha cabeça?!? Começo a chorar porque sinto-me como um homem que se vê sem os braços e sem as pernas, ou apenas como uma criança que acredita ter visto um monstro dentro do armário, cuja mãe não está por perto para ajudar. Minha mãe também não está por perto; decerto ela é, inclusive, mais uma das vozes que se agonizam torturadas e aflitas dentro da minha mente... não tenho a quem pedir ajuda neste salão de ira, desprezo e repulsa no qual me sinto como se estivesse plantado... não tenho par... e não vejo a saída... apago as luzes, porém minha vista fica ainda mais ofuscada... o que antes iluminava a todo meu quarto, sinto agora como se fosse uma mira de raio-laser diretamente em meus olhos... procuro ver ao meu redor, mas pouco ou nada é o que consigo discernir, tudo são clarões, flashs e pessoas apontando dedos entre si, alguns desses dedos até apontados para mim... tapo meus ouvidos com força e só o que ouço são vozes cada vez mais amarguradas, num som cada vez mais intenso, mais intenso, muito, muito mais... reconheço-me em meu quarto e decido que nem pensarei em sair de casa quando o dia já estiver claro e chamativo, desligo computador, celular e qualquer coisa que possa me fazer ter contato com pessoas declinadas ou corruptoras, mas isso apenas me deixa com a apreensão de que estou ainda mais vulnerável, como se estivesse no centro de uma arena, na qual todas as pessoas das arquibancadas estivessem prontas, ao primeiro sinal verde, para me presentearem com uma rajada de metralhadora! Deito-me na cama e isso mais me faz sentir vontade de correr, de ir para algum lugar que não seja aqui... no lençol umedecido pelas minhas lágrimas, sinto um pouquinho de conforto neste inferno em que me sinto posto... tento adormecer por crer que é o último recurso que me resta - quem sabe, quando eu acordar a próxima vez, estes demônios não mais estarão aqui? Quem sabe? Não custa tentar...

Foi um dos piores pesadelos da minha vida.