sábado, 24 de maio de 2014

O mesmo filme antigo

Eu não sabia o que a caixa me reservava quando fui morar lá. A "caixa" é como eu chamava um quarto de pensão onde me recolhi por algumas semanas. O apelido advinha do fato de que nesse quartinho nada havia além da saída que apontava direto para os degraus da escada; sequer havia um corredor no recinto. Não havia janelas. O único canal com o mundo externo era a fresta por baixo da porta.

A única pessoa que me visitava na época era uma amiga, que havia me sugerido o local - era o único que eu podia pagar com alguns bicos que fazia. Eu andava meio pra baixo porque tinha problemas no trabalho, estava começando uma faculdade e isso me cansava, e ainda vinha sendo perseguido por uma mulher histérica, da qual não me lembro mais o nome. Mas há sempre uma mulher para salvar você de outra. Era a função que cumpria essa minha amiga, que me acolheu e me ofereceu certo suporte. O problema era que, ao me sugerir alugar este local, as visitas frequentes deixavam claro que ela, por alguma razão, se sentia não apenas uma amiga, mas uma figura íntima, mais presente do que eu gostaria e do que eu precisava, o que passou a me incomodar.

- Vim ver como você está - ela dizia, sempre que chegava. E então me oferecia algum pão com presunto que trazia num pote com alguma bebida, fazia massagem, e eu logo dizia que queria dormir, o que ela entendia perfeitamente como uma deixa para que fosse embora (eu só dormiria horas depois).

Numa certa ocasião, eu não estava no quarto. Naquela mesma rua, havia alguns bares. Aproveitei e dei um giro para conhecê-los, até fincar pé em um deles. Após muitas doses viradas, voltei para o quartinho e encontrei a fechadura do apartamento frouxa, como se tivesse sido danificada. Pensei que algum delinquente da região havia tentado arrombar, e fiz denúncia no dia seguinte no posto policial do bairro.

Nesse mesmo dia, a garota apareceu à noite no apartamento.

- Onde estava?, perguntou.

- Como?

- Onde estava ontem?

- Não me lembro, deixa eu pensar (eu realmente havia esquecido)...

- Me diz logo onde você estava! - ela parecia alterada.

- Acho que estava no Caixão, eu falei - Caixão era o nome de um bar das redondezas.

- Você não estava lá - disse ela.

- Estava sim.

- Não, não estava! Eu fui lá!!!

Com a insistência dela, lembrei que de fato eu não estava no Bar do Caixão.

- Ahhh... na verdade, eu estava no Pernil do Zé Roberto - outro bar, numa rua adjacente.

- Por que está mentindo pra mim??

- Não estou mentindo, é sério.

- Eu quero ajudar você! Por que mente pra mim?!

Não adiantava eu repetir que não estava mentindo e que apenas havia me enganado. Ela estava perdendo o controle. Foi fácil deduzir que ela é quem tinha tentado arrombar o quarto na noite anterior.

- Hoje vou dormir aqui! Tenho que ficar com você!

- Como assim? Não sou criança, vá pra sua casa.

- Vem, vamos dormir.

Pensar numa garota dormindo comigo, ainda mais depois dos últimos problemas que havia tido com mulheres, não era algo que eu precisava para enfrentar meu já estressante cotidiano. No entanto, não consegui demovê-la dessa ideia, e aceitei que ficasse ali. Como a cama era miúda, deitei no chão, sob constantes pedidos para que dormíssemos juntos. Como percebi que não pararia com a insistência, fui para a cama. Apesar de tudo, nada aconteceu. E assim que ela adormeceu, eu me levantei, e sentei na única cadeira que tinha no quarto. Não dormi mais a madrugada inteira.

No dia seguinte, saí cedo pra trabalhar, antes que ela acordasse. Nessa época, eu era fiscal de empresa de ônibus, e minha função era verificar se os motoristas estavam saindo e chegando no terminal na hora certa. Era uma espécie de capanga, dedo-duro. Não durei muito nesse trabalho, afinal, eu, moleque, passei a ser logo hostilizado pelos motoristas cinquentões. Certa vez o Almeida, o motorista mais velho, me disse:

- Nunca tivemos problemas com a central. Se de repente aparecer motorista dedurado aqui, você corre o risco de perder uns dentes por aí. Se ligue, garoto.

Apesar da ameaça, os motoristas eram disciplinados e eu nunca precisei fichar ninguém. O que não agradou a chefia, que queria que eu inventasse denúncias caso não as tivesse, e eu fui embora em menos de trinta dias. Mas isso é uma outra história.

Quando voltei para o apartamento, a garota não estava, mas deixara um bilhete.

VOLTO MAIS TARDE, VOU TRASER BISCOITOS E REFRESCOS.
VC PRECISA DE COISAS SALDÁVEIS. TE AMO

Não gostei do que li. Pensei em mil alternativas para fugir da situação. A primeira foi entrar em contato com o senhorio, acertar a entrega do quarto e fugir da vida dessa louca. Mas o senhorio não morava por perto e eu estava sem telefone na ocasião. Outra alternativa era simplesmente sair correndo. Mas fatalmente eu precisaria voltar, e seria muito provável que ela ainda estivesse lá. Então tomei a decisão mais prática. Tranquei a porta e apaguei todas as luzes. Sentei na cama, e bebi alguns goles do conhaque barato que ela tinha me comprado dias antes.

Era 23h00 e eu estava quase adormecendo quando começaram a bater na porta. Apesar de levemente embriagado, de imediato me coloquei em posição de alerta. As batidas começaram leves, depois tornaram-se mais insistentes. Permaneci em silêncio todo o tempo, até que a agressividade começava a se tornar fator de espanto. Eu não conseguia entender bem o que acontecia. Ela já não apenas batia na porta com a mão, mas simultaneamente dava um chute ou uma joelhada. Quando a porta tava começando a ceder, ela parou com as tentativas. Aparentemente, havia cansado de bater. Curiosamente, só nesse momento ela falou algo:

- Seu filho da puta - disse, até com uma certa suavidade.

Depois disso, não ouvi mais nada. Nem passos, nem batidas na porta, nem vozes. Não sabia se ela havia ido embora. Toda essa indefinição me deixava muito angustiado. Naquele quarto sem janelas onde até a respiração era difícil, eu não precisava de tormentos emocionais para completar o pacote. Sentia-me muito desolado. Bebi um pouco, mas mesmo aqueles tragos já não me aliviavam como noutros tempos. Não queria beber. Não queria comer ninguém. Não queria longas madrugadas nas ruas. Não queria dormir em muquifos, acordar em sarjetas, vomitar na beira do mar, com o sol nascendo e sem que eu o percebesse. No sufoco daquelas paredes e daquele quarto sem luz, eu pensava que nada daquilo me representava, eu não era aquilo, eu não devia estar ali. Todas essas coisas eram o mesmo filme antigo que se repetia diariamente. Eu podia pensar em algumas maneiras de me matar, mas meu conflito na ocasião não era com a existência; era, isso sim, com o que eu havia feito dela. Talvez conversar com alguém me ajudasse, mas eu não tinha com quem compartilhar isso, e essa pobre garota que agora me perseguia, por mais que quisesse ajudar, certamente me encaminharia para uma nova desgraça.

Durante muitas horas, permaneci sentado na cama, olhando pro chão, e com o copo na mão, sem levantá-lo para beber um gole sequer. Estava em transe. Ouvia algumas coisas, mas tanto podia ser lá fora como podia ser na minha cabeça. Somente às 10h00 bateram novamente à porta, tão rispidamente que eu despertei. Desta vez se identificaram: era o dono do apartamento.

- Me disseram que uma garota dormiu aqui essa noite. Não aceitamos esse tipo de coisa.

- Aqui no apartamento? - neguei de imediato.

- Não, aqui na escada.

Eu não tinha nada a dizer. A garota de fato havia ficado ali na porta por horas. Decidi apenas aproveitar a ocasião para me acertar com o sujeito, e dizer que não pretendia mais continuar ali.

- Que seja - ele disse, apenas.

Aquilo me pareceu uma indicação de que uma etapa da minha vida estava se despedindo de mim. Uma etapa que talvez pouco tenha me preenchido. "Que seja", foi assim que ela terminou. Tanto faz como tanto fez.

De um telefone público, liguei a cobrar para minha mãe. Ela parecia contente em me ouvir. Fazia algum tempo que não nos falávamos. Para mim, pouco tempo. Para ela, bastante.

- Ei minha senhora, vou dormir aí hoje, pode ser?

Quando cheguei, à noite, ela me preparou umas pizzas e outras bobagens desse tipo. Comi um pouco, assisti uma TV e fui para o quarto. Tudo permanecia do mesmo jeito. Sentei-me à cama. Estava exausto. Já há mais de 40 horas não dormia efetivamente. No entanto, como na noite anterior, assim fiquei por horas. Estático. Muita coisa passava em minha cabeça. Foi assim até ver o dia amanhecendo, pelas frestas no telhado. Fiquei admirando aqueles filetes de luz, que pouco a pouco tomavam o recinto. Abri a janela. Todo o quarto se iluminou de imediato. Senti-me confortável, e não lembrava quando tinha sido a última vez que sentira a mesma coisa, mas sabia que já fazia alguns anos. Foi uma longa noite, eu pensei. Minutos depois, finalmente adormeci.


terça-feira, 20 de novembro de 2012

Cervejas à mesa no fim do dia

Não comemorei meu aniversário de 21 anos em casa. Eu nunca dormia em casa quando minha mãe estava. Geralmente ela dormia na casa de seu namorado, exceto quando eles brigavam e ela voltava de surpresa com um bocado de latas de cerveja para beber enquanto lê ou faz tricô. Decidi dar uma volta. Quando o relógio marcou a 0h00 do dia 6 de dezembro, eu estava no aeroporto. Na época, não tinha um puto sequer que fosse suficiente para pagar algum lanche caro daquele recinto. Na verdade, eu nunca tinha ido ao aeroporto, mesmo morando a menos de dois quilômetros dele. Mas depois dessa primeira vez, passei a visitá-lo com certa frequência nos anos seguintes. Às vezes comia; no entanto, o que me atraíam mesmo eram os aviões a subir e a descer, e ocasionalmente observar distantemente as reações emocionais de despedida e ansiedade das pessoas que aguardavam outras, ou que se despediam delas. Eu ia sempre à madrugada. Às vezes chamava alguém, alguns amigos talvez. Nunca toparam. Faz sentido. Aeroporto não é um grande programa, sobretudo porque o movimento é baixo. Fácil pra dar sono, embora eu não me lembre de ter adormecido nas vezes que fui.

Fiquei umas três horas por lá. Saí pilotando a minha antiga Biz, uma motoca que a minha mãe comprara anos antes mas nunca usou; tinha medo. Apesar de simplória, ela era valente. Sofri vários acidentes com ela - nenhum muito sério, é verdade. Mas tenho certeza que outras motos dificilmente suportariam a pressão.

Com a Biz, eu rodava muito com pouca grana. Era a combinação perfeita. Naquela madrugada em particular, saí do aeroporto e fui até a casa de Barba, apelido de um amigo que eu havia conhecido meses antes e que morava do outro lado da cidade. Queria levar alguma coisa para bebermos, mas decidi confiar na possibilidade (alta) de que ele mesmo tivesse um bom acervo de bebidas esperando para serem escolhidas. Infelizmente, eu ignorei o fato de que o Barba morava com uma manada de gente - a irmã, o sobrinho, o cunhado e, pior, os pais. A mãe do Barba não suportava os amigos dele, e o pai nutria um igual desprezo. Quando toquei a campainha e ouvi os primeiros grunhidos (que, eu sabia, não eram do meu amigo) e me dei conta da situação, saí correndo antes que alguém atendesse e deixei a moto lá, estacionada na frente da casa dele.

Depois que esperei uns dez minutos na esquina, estava voltando para pegar a moto, só que tive uma outra ideia: sair caminhando pela cidade, coisa que gostava de fazer - e ainda gosto -, embora não fizesse. Caminhei por toda a estrada da Redinha - bairro perto do qual o Barba morava - e fui até a ponte nova, atravessando-a para chegar ao Centro da Cidade. A essa altura, o sol já se avizinhava no oceano, dando a entender que dali a algum tempo, tudo clarearia.

Decidi parar para descansar da longa caminhada no pé do Farol de Mãe Luiza. Sempre achei macabra a imagem desse farol à noite - agora, porém, com os primeiros filetez de luz matinal, ele parecia transmitir mais singeleza. No entanto, sua posição, situada no alto dum morro, continuavam a dar um ar sinistro a ele. Eu não sabia, mas dois anos depois daria aula em um colégio meio lascado e com chão de terra batida que ficava quase em frente ao farol, nas noites de sexta. Eu me lembro que, sempre que saía da aula, ia beber um conhaque que eu levava na bolsa. Às vezes chamava algum amigo, ainda que nenhum topasse. Também não topavam meus convites para ir à Via Costeira, ninguém topava. Lembrei disso enquanto continuava a caminhada matinal do aniversário. A Via Costeira era extensa, charmosa e silenciosa à noite, e extremamente desagradável ao dia, mesmo às 6h da manhã. Depois que passei do posto policial, caminhei mais uns dois quilômetros e fiquei numa área da praia isolada dos hoteis que a cercavam. Ali, fui até a beira do mar e sentei. Enquanto via o mar dançando e franzia a testa para cobrir os olhos do sol que se posicionava à minha frente, eu cantarolava qualquer coisa. Exatamente daquele jeito, sentado e com os cotovelos apoiados sobre as pernas, adormeci.

Não tinha relógio, mas pela posição do sol quando acordei, já devia ser meio dia. Foi a essa hora que a maré encheu e me encharcou, fazendo-me despertar. Lamentei pelo horário; esperava que ao meio dia eu estivesse perto da BR 101, para aproveitar a viagem e almoçar no restaurante Barriga Cheia, que ficava próximo ao Estádio Machadão, com a importância de uma mísera nota de real que eu continha em um bolso.

Como a Via Costeira é muito distante da BR, quando cheguei lá já eram 18h00. Meu aniversário não caminhara como eu esperava. Estava meio atordoado pelas andanças sem fim e não conseguia me lembrar de onde deixara a moto. Cheguei ao restaurante Barriga Cheia, mas evidentemente não serviam mais almoço a essa hora. Decidi pegar um ônibus, com o único real que eu tinha, e ir pra casa, só que o motorista não aceitou. Decidi ficar um tempo pelas redondezas do Machadão: naquele dia, terça-feira, duas horas depois haveria um jogo do América. Eu podia pedir no meio da multidão uma moeda a alguém para poder voltar para casa sem precisar fazer o trajeto a pé.

Descansei essas horas, mas foi em vão. O jogo era apenas para cumprir tabela. O América já não disputava nada, de maneira que ninguém foi assistir, exceto algumas pouca dezenas de pessoas hostis demais. Já eram 21h00, porém o jeito seria voltar para casa a pé mesmo.

Cheguei em casa faltando poucos minutos para o fim do dia. Devia ser coisa de 23h40. Minha mãe não estava; havia deixado um pequeno bolo de ovos e um bilhete desejando feliz aniversário. Não comi o bolo, decidi procurar algo para beber. Encontrei na geladeira meia dúzia de latas de cerveja que ela deixara na noite anterior. Serve, pensei.

Pus todas na mesa e bebi mais apressadamente que o habitual. Senti dor de cabeça depois. Estavam muito geladas e eu mesmo não estava muito bem. Quando me dirigia para o quarto, lembrei de onde deixara a moto! Peguei o telefone, liguei pro meu amigo Barba, e disse pra ele que havia uma moto na frente de sua casa, e que se possível guardasse pra mim que um dia eu pegaria. Depois disso, caí na cama; já bastava de aniversário.


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Histórias inacabadas

Estava tentando voltar a escrever depois de muito tempo em crise criativa, e, como se fosse um recurso didático, decidi ler o que já havia produzido antes para ver se estimulava. Contos, poemas e devaneios de toda ordem me fizeram viajar pelo passado - que ainda é presente em minha mente -, e enquanto os lia me lembrava das circunstâncias em que os criava, e lembrando dessas circunstâncias me lembrava também das pessoas que comentavam a respeito.

Lembrei-me em particular de algumas delas, notadamente as que conheci (e me conheceram) por meio desses contos e que encontrei por aí em minhas viagens de moto Brasil afora. Era curioso como alguns já tinham um entendimento sobre mim que facilitava esse contato, mas era igualmente curioso o fato de que outros pareciam não ter compreendido bem o que eu quis dizer enquanto escrevia.

Em uma das minhas primeiras viagens fora do estado, fui para bem longe, Aracaju, e lá eu conheci um cara com quem já havia trocado uns e outros leros virtualmente. Nos vemos na entrada da cidade, num ponto alto de onde se podia vê-la de cima, e eu cheguei à noite. Conversamos um pouco por ali, porém nos despedimos e combinamos de nos ver no dia seguinte. Eu estava de moto, e depois desse encontro, procurei uma pousada. A que me hospedei não ficava muito longe dali.

No dia seguinte, dei umas voltas pela cidade pela manhã e tarde. Quando eram umas 18h00, fui a um pequeno bar perto do Palácio Inácio Barbosa e lá o bom sujeito que conhecera apareceu e ficamos de longa conversa. Nesse dia, deixei a moto na pousada e fui de ônibus. Após muitas rodadas de cerveja com meu novo amigo, quatro horas depois, ele sugeriu ir em outro bar. Fomos.

O outro bar, num ponto que desconheço, não era somente bar. Era também um puteiro. Minúsculo. A sensação de claustrofobia era inevitável. As pessoas se acotovelavam por espaço, tanto as prostitutas quanto a clientela. O odor acre misturado de álcool com excesso de tabaco era forte. As mulheres não tinham menos de 40 anos, seguramente.

É o mais barato que me recomendaram, disse o cara.

A ideia é passarmos a noite aqui?, perguntei.

Isso mesmo, vamos mandar brasa!

Ele parecia animado.

Pressupus que ele tinha a impressão de que o nosso encontro significaria uma parceria maldita, de dois sujeitos que, embriagados por muitas mulheres e muita bebida, viveriam suas tantas aventuras na pacata noite aracajuana - tão pacata que nem parecia uma capital. O som do bar com suas músicas imprestáveis mal chegava à rua, onde reinava o silêncio quase absoluto.

Tô escolhendo a minha, anda logo que depois das 23h00 vêm os caras que trabalham nas redondezas e fica difícil achar alguma mulher de futuro, ele disse.

Pode crer, murmurei. Pouco depois, ele falou:

Cara, eu vou lá fazer o serviço com essa galega. Não sei em quanto tempo termino. Talvez eu queira umas duas só hoje. Se não nos vermos mais, amanhã me ligue e nos encontramos lá em casa. Tenho muita bebida e uns baseados pra gente.

Pode crer, repeti.

Ele se foi com a sua prostituta e eu fiquei sozinho, prendendo a respiração por causa da exagerada fumaça de cigarro que prejudicava minha adenoide.Decidi ir embora dali, e como não sabia em que ponto da cidade me encontrava, não havia mais ônibus e além disso ainda estava um pouco bêbado, precisei caminhar muito, tendo diversas vezes a impressão de estar andando em círculos, até aparecer um táxi que me levasse a minha pousada. A conta saiu cara: 80 reais.

Como é que é? 80 reais?!, perguntei.

Cara, essa pousada fica na região metropolitana, você queria o quê?!, alegou o taxista.

Fiquei puto porque Aracaju nem é tão grande assim, mas tive que ceder e pagar os 80 reais a ele. O prejuízo foi que não pude continuar a viagem. De lá eu iria para Salvador, no entanto, quando acordei, além da ressaca, percebi que me restava menos dinheiro do que seria necessário. Decidi voltar de lá mesmo.

Não vi mais o amigo que acabara de conhecer. Nem o liguei nem ele me ligou. Tempos depois, meu conto começou a receber muitas críticas apelativas de um sujeito anônimo. Não desconfio de que seja o breve parceiro de noitada sergipano.

Com exceção dele, só encontrei garotas nessas andanças. Algumas bem legais. Conheci uma em Maceió com quem já tinha muito tempo de papo pela internet, e lá demos continuidade a isso quando nos encontramos e ficamos horas em uma conversa despretensiosa na praia. Acho que ela disse alguma coisa sobre eu ser igual ao personagem de meus contos, ou ser diferente. Não me lembro bem.

Nesse dia, tomamos sorvete, demos uma volta na região, acompanhei-a até seu cursinho e voltamos à praia, sentando num banco qualquer e continuando a conversa, agora em ritmo mais vagaroso. De repente, no entanto, ela precisou ir embora, levantando-se rápido do banco e precisando correr para atravessar a rua e pegar o seu ônibus.

Preciso ir nesse!, sentenciou.

Passei ainda uma semana em Alagoas, só que não nos vemos mais. Mas eu queria.

A que conheci em Recife também precisou ir-se embora de repente. No entanto, foi menos convicta; nitidamente, esperava que eu insistisse para ela ficar mais.

Nesse caso, não nos encontramos na rua nem passeamos pela cidade; ela foi até mim, no pequeno apartamento em que eu estava hospedado. Ofereci uma Coca-Cola, um café e um achocolatado para ela beber, pois tinha chegado há pouco da viagem e era apenas os restos disso que tinha no apartamento.

Apesar de ter vindo me visitar, mantivemos uma certa distância, talvez como cautela, talvez por outras razões ocultas de nosso inconsciente. Ela sentada de um lado da mesa, eu sentado de outro, diversos livros entre nós, que eu tinha levado - como sempre levo - para ler nas horas que estou fora da estrada. Passamos a manhã assim, em uma longa prosa espontânea. Quando ela disse que precisava ir, não insisti muito para que ficasse. Esperava que nos encontrássemos depois. Na minha cabeça, a primeira vez que nos víssemos precisaria ser assim. Desci com ela e a vi pegar um táxi e ir-se embora para sempre.

Ao contrário destas, conheci uma em Fortaleza que era muito mais exagerada nos seus atos e muito mais pegajosa. Quando nos vimos, deu-me um beijo e um forte abraço, enlaçou seu braço no meu e saiu caminhando comigo.

Deixa a moto e vamos andando, a praia fica perto daqui, disse.

Eu não estava muito afim de ir à praia. Tinha acabado de chegar à cidade e ainda estava com a mochila nas costas. Mesmo assim, eu a acompanhei.

Havíamos nos encontrado pela manhã e já eram 17h00 de um longo papo furado. Sua conversa não me entrava. A todo tempo pensava que não viajara 500 quilômetros pra me deter àquilo. Percebi que ela queria, como meu colega sergipano, fazer uma certa cena comigo. Tive certeza quando ela me disse:

Sou sua fã.

Valeu, também sou seu fã, respondi.

Não, eu sou sua fã de verdade, ela falou.

O que significa ser uma fã de verdade?

Significa que eu faria qualquer coisa por você.

Fiquei em silêncio. Ela completou:

E com você.

Como permaneci calado, ela perguntou:

Que tal?

Muito foda, eu disse, porém sem nenhuma empolgação.

Presumo que não fosse bem o que ela queria ouvir. Apesar disso, ela não se importava. Ficou fazendo mais um pouco de cena e me chamou ao seu apartamento. Nessa hora, eu me lembrei de um amigo pernambucano que reclamava porque nunca havia sexo nos meus contos. Tenho a esperança de que você ainda vai comer alguém nessas histórias, eram as palavras dele. Foi por essa lembrança que eu aceitei o convite dela, pensando no sexo e no conto que poderia sair dali.

Quando chegamos na entrada do apartamento dela, o porteiro a chamou. Ela foi até ele. Não ouvi a conversa deles, mas pude distantemente entender ele falou algo do tipo: "não sei não", como se a alertasse.

Ela voltou a mim com um semblante, de certo modo, desolado.

Ei, não vai rolar. Minha irmã mais velha está aqui. Ela quase nunca aparece, mas agora decidiu aparecer.

Numa boa. Vou indo.

Foi mal, ela disse, apesar de eu estar sem nenhum resquício de frustração.

Vou ficar na cidade até domingo. Podemos nos encontrar amanhã.

Pode ser, ela falou.

Na manhã seguinte, antes que amanhecesse, peguei a minha moto e fui embora pra casa.


terça-feira, 29 de novembro de 2011

Prazos de validade

Eu sempre tive um hábito meio mórbido de fazer amigos, mas do qual ainda não consegui me livrar (embora esteja tentando).

Já há alguns anos, sempre na época dos vestibulares, eu me dirijo a algum local de prova e fico na frente do portão, junto com os vendedores de água e baganas e os parentes dos candidatos que ficam do lado de fora trocando lero. A diferença é que não vendo nada nem sou parente de ninguém. Observo todos os candidatos passando pelos portões, até que vai se aproximando a hora-limite de entrada e o clima começa a ficar tenso: será que alguém vai perder a prova?

Quando os responsáveis pelo fechamento dos portões começam a se movimentar, a tensão se espalha. Sempre há candidatos retardatários vindo correndo no final da rua, e a multidão em coro toma para si a perseverança desses sujeitos atrasados e começam a lançar gritos e gritos de alerta.

Corre!, corre!, vai fechar!

Quase sempre o candidato consegue entrar, graças à benevolência do fiscal que retarda o trancamento dos portões. Mas sempre há alguém que fica de fora, e então eu - que sempre assisto entusiasmado a esse pequeno show urbano - começo a agir.

Lembro-me de uma vez que uma garota chegou e não pôde entrar por questão de segundos. Segundos mesmo. Desde o início da leitura dessa frase até esse momento: esse foi o tempo entre o fechamento do portão e a chegada da garota, uma mulata baixinha, que só não caiu no choro na mesma hora porque aparentemente não lhe havia caído a ficha. Assim que a garota literalmente esbarrou no portão - ao som consolador de dezenas de vozes -, ela lá ficou por alguns segundos, inerte, sem voz sequer para pedir inutilmente ao fiscal que a deixasse entrar; então foi saindo dali, como se tendo uma vertigem ainda apoiando-se no portão e, logo que este acabou, apoiando-se no muro. Da parte das pessoas, após o choque inicial, já se ouviam algumas risadinhas e umas provocações indiretas, do tipo "a única coisa que ela tem que fazer no ano é essa prova, e chega atrasada". Estavam se alimentando da desgraça alheia.

A moreninha andou uns duzentos metros, saiu do meio da multidão, e então sentou no chão encostando-se na parede salpicada do muro, com um semblante tão pálido que parecia que não havia respirado naqueles minutos. Eu comprei um copo de água mineral e me aproximei, oferecendo e sugerindo-lhe que ficasse calma. Ela aceitou, realmente não tinha fôlego, mas aos poucos foi se recuperando e a conversa, no início tortuosa, foi fluindo melhor. Assim como conheci essa garota, conheci também outras pessoas. Ficava sempre nas portas dos locais de provas, esperando os retardatários, aqueles que (talvez pela primeira vez) sentem o peso de 30 segundos, de um minuto, em suas vidas. Conversar no início era sempre difícil - muitas vezes, depois da tensão inicial a pessoa caía em prantos e a conversa se tornava por algum tempo impossível; porém, eram esses casos que eu mais gostava -, no entanto aos poucos a comunicação evoluía.

Em geral, eu conhecia mais garotas nesses locais. O papo com elas se desenvolvia sempre com mais facilidade, porque elas exprimem mais as emoções. É até uma oportunidade para eu testar tudo que aprendi autodidaticamente com tantos livros de psicologia. Só que também já conheci alguns caras. Um deles, o único com quem ainda mantenho algum parco contato, era meio metido a surfista. Nunca teve nenhuma meta na vida que passasse pelo vestibular, mas não deixou de ser um baque ser barrado no portão do local de prova. Raros são os que reagem normalmente. Alguns são até insossos, mas também sentem.

A minha última namorada, inclusive, eu conheci na porta do então Cefet-RN. Logo após ela ter sido barrada, fomos até o bosque que há ali perto e lá lanchamos e conversamos o dia todo, e no dia seguinte até umas dez semanas depois estávamos namorando, ainda que não fosse um namoro propriamente dito, mas que seja: namoros não necessariamente precisam ser tais como são propriamente ditos.

Os desatentos pensariam que eu gosto de ver as desgraças alheias; não, não gosto. Se dependesse de mim, não sofreriam desgraças quaisquer. É apenas que a pessoa nesta ocasião está sensibilizada, e de modo geral ela, no momento posterior a um tropeço desses, sempre esboça qualquer característica fundante ignorada, talvez alguns defeitos de personalidade desconhecidos ou mesmo virtudes até ali reprimidas. Eu vislumbro sempre este último caso.

Apesar de tudo, nenhuma dessas amizades durou muito tempo. Tratavam-se de relações cujo elo de ligação era a desgraça, o fracasso, a tensão. Eu gostava de conhecer a pessoa pelo que ela tinha de irresponsável. E, sobretudo, gostava de conhecê-la num momento de total ausência de humor, já que não tenho muito saco para besteirol. Só que após os primeiros dias, ou as primeiras semanas (quando sai o resultado do vestibular, sempre bate de novo aquela crise nos retardatários), elas sempre conseguem "superar" o problema. Suas vidas, passam, então, a se permear de novas boas coisas. As garotas começam a querer que eu vá com elas para uma balada insossa ou passar um fim-de-semana na casa de praia com sua turma, os caras começam a me chamar para churrascadas ou para jogos de futebol. A socialização a dois enterra-se, e a amizade só se sustentaria se eu topasse participar desses programas coletivos e chatos demais. Então eu desisto, todas as vezes, de maneira que essas relações nunca ultrapassam a barreira dos três meses. Depois, vem a espera por novas oportunidades.

Mas isso cansa.

Neste final de semana, bem que acordei com aquela velha vontade de fazer brotar mais um amigo e uma namorada; no entanto, assim que pensei no vazio que emergiria daqui a uns três meses - justo quando eu já estivesse desacostumado com ele -, percebi que valeria mais a pena voltar a dormir.



sexta-feira, 21 de outubro de 2011

As lembranças marcadas na mão direita

Eu estava pensando nos amigos que morreram este ano, em particular uma garota chamada Marta, que faleceu em fevereiro com a minha idade, 25, ou talvez tivesse um ano a mais. Não eram exatamente boas as lembranças que eu trazia dela; mas ainda assim as tinha.

Você é o cara mais sujo que eu já conheci, Deftones. Esta é uma sentença entre as muitas que me recordo terem sido emitidas pela Marta no tempo em que éramos mais próximos, sobretudo durante a adolescência, até uns cinco anos atrás, quando ela passou uns dias na minha casa e foram estas as últimas ocasiões que a vi. Deftones era meu apelido na época, e o que eu chamo de casa era, na verdade, um pequeno kit-net com dois vãos mal divididos e que se situava na subida da José Bernardo, perto do Viaduto do Baldo. Seria legal ter a paisagem daquele caquético viaduto pela janela, no entanto meu kit-net não tinha nenhuma abertura para o mundo lá fora. Era tapado, havia nele apenas a porta de saída e um acesso para o banheiro, este sem porta, minúsculo, tão minúsculo que tudo que eu lá fazia saltava pra fora: a urina, a água do banho e, sobretudo, o mal cheiro.

Quando penso na Marta, a imagem que me vem é de ficarmos umas horas deitados na cama - na verdade, ela deitada na cama, eu deitado no chão embebedado -, e enquanto proseávamos lentamente (não tínhamos pressa, não cumpríamos horário, não trabalhávamos nem estudávamos, não tínhamos famílias ou amigos no campo de vista), ela fazia rabiscos no meu livro Almoço Nu, aliás, fez tantos rabiscos que eu não quis mais o livro, disse que quando ela fosse poderia levar aquela droga, mas ela nunca levou. Como nos rabiscos tinha uma data, a data que ela veio a primeira vez, nunca mais esqueci. Essa memória de estar deitado no chão ao lado da cama permanece vívida na minha cabela, e se tornou uma das imagens mais presentes na minha vida. Aquela fase de modo geral é algo de que nunca me esqueci, dada a excrescência da situação, de modo que sempre que estava diante de dificuldades procuro me lembrar dessa época, para entender que já estive em situação pior. Isso porque aquele kit-net foi o pior lugar em que morei, abafado e asqueroso, não tendo nada que o procurasse embelezar; nele só havia uma cama de farrapos e um birô de quatro ou cinco gavetas, e o que eu chamara de tapete era, na verdade, um de meus lençóis que eu carregava na mochila para onde ia, na qual continha também um caderno, roupas, vários livros e alguns CDs quebrados, soltos e uns parcos bem guardados. O aluguel eu pagava com os trocados que recebia em certos bicos, distribuindo panfletos no meio da rua ou ajudando os camelôs da Cidade Alta a fazer o carregamento de seus produtos no fim da tarde.

Esse foi, repito, o pior lugar em que já morei. Pior que o kit-net da Rua Neópolis, onde faltou luz por um mês, pior que a prisão de Brejinho em que passei a noite com dois ou três velhos nojentos, deploráveis, pior até que o Hotel Nordeste, que nem toalete tinha no recinto e cujo ambiente claustrofóbico convidava os hóspedes a se atirar da janela rumo ao suicídio.

Quando não estava nos bicos, estava sentado no chão do kit-net, encostado na cama, tomando qualquer coisa num vidrinho ou ficava deitado no chão, dormindo, estático, pensativo, enquanto Marta, por sua vez, quando estava lá ficava na cama, mas nunca parada; ora estava deitada de bruços, ora sentada, ora mexendo nos meus livros, ora bebendo cerveja quente, ora se esforçando com a mão direita e os dentes para amarrar um pedaço de pano no braço esquerdo para prender a circulação e começar a picotar a si mesma.

Vai um também?, ela me perguntava, oferecendo a seringa.

Não gosto de agulhas, eu falei.

Então me ajuda aqui, seu viado.

Se vira.

Seu viado, se eu não estivesse dopada matava você.

Marta era uma viciada que não tinha rumo, nós estudamos juntos no distante ensino fundamental e nos encontrávamos vez ou outra nos círculos marginais da Cidade Alta. Neste dia, ela me viu num show de rock de quinta categoria que rolava na Rua João Pessoa e ficamos conversando. Pentelha como ela era, não saiu da minha cola nem quando tentei me despedir. Ela pediu pra dormir na minha casa só essa noite e eu não queria, mas decidi aceitar, ciente comigo mesmo de que se passasse 24 horas eu colocava pra fora sem qualquer receio, da maneira que fosse.

Vamos fazer amor?, ela perguntou assim que entramos no kit-net.

Fazer o quê?!, perguntei.

Fazer amor.

Dá um tempo, Marta. Olha pra você, eu falei. Ela realmente não era atraente. Não estava cheirando mal, mas não parecia exatamente limpa.

Mas é um viado mermo, disse.

Eu desconsiderei as palavras dela, não ia me aborrecer por tão pouca coisa. Mas Marta não ficou somente 24 horas lá comigo. Passou sete ou oito dias. Para mim era conveniente: ela saía e trazia comida não sei de onde, provavelmente conseguia com alguns caras sedentos de sexo com qualquer trapo feminino. Eu achava ótimo, pra ser sincero; só assim para eu comer três vezes ao dia naqueles tempos difíceis.

Certa vez, porém, eu estava deitado na cama, num fim de tarde, e ouvi Marta chegando. Só que ela não estava sozinha. Trazia consigo um outro cara, que eu tinha a impressão de conhecê-lo, mas nada que fosse além dessa vaga impressão. Eu continuei como estava, despertando gradativamente.

Quem é você?, perguntei ao sujeito.

Ele é meu namorado, disse Marta.

Seu o quê?! Isso é uma piada?

Meu namorado, eu também tenho direito, sabia?

Certo, é um prazer conhecê-lo, tchau.

Eu trouxe ele pra cá, ela disse. Aí eu não suportei. No entanto, ainda procurei ser calmo.

Vão embora daqui, eu falei.

É só um tempo, ela insistiu.

Marta, eu já falei: vão-embora-daqui.

Deixe de ser fresco, cara, disse o sujeito.

Eu me levantei e fui em direção a ele, que era da minha altura e parecia mais novo, mais magro, só que parecia bem corajoso, mantinha a face firme como a de um militar em formação. Cheguei bem perto do seu rosto e mandei ele repetir a merda que havia falado.

Deftones, pare de provocá-lo!, disse Marta.

Deixe de ser fresco, ele repetiu de maneira acintosa.

Agora vire suas costas, vá embora e nunca mais quero te ver na minha frente, eu disse. Marta a essa altura me xingava deliberadamente, ainda que eu não a ouvisse mais.

Tá com ciúmes dela, mané?, o sujeito perguntou. O clima pesou.

Suma daqui, agora, e leve essa louca com você.

Foda-se!, ele disse.

Na mesma hora eu lhe desferi um murro que me deixou até hoje com a marca de seus dentes em minha mão direita. A raiva acumulada me deu tanta força que o golpe fez o cara ser jogado pra trás, tentando se segurar na parede, porém cambaleando mais alguns passos de lado e finalmente caindo bastante tonto. Sua boca sangrou feio na frente.

Seu cretino!, seu selvagem!, gritava Marta.

Fui em direção ao cara e ofereci a mão pra ajudá-lo a levantar. Ele segurou, levantou e saiu com uma cara que buscava disfarçar sob um ar de firmeza a qualquer custo, a imensa dor que seus lábios friccionados e suas franzidas testes denunciavam. Ele se foi e a Marta foi junto, bem como eu queria.

Quando fechei a porta que me deitei na cama e peguei o livro que estava no birô ao lado, era exatamente Almoço Nu, cheio de rabiscos dela. Ainda dei uma pequena corrida até a porta e abri para entregar a ela. Os dois ainda estavam no final do corredor abraçados bem como um amoroso casal em início de relacionamento. Eu gritei para que ela viesse levar meu livro que ela tanto encheu de rabiscos inúteis, mas fui ignorado, ela logo puxou o rapaz pra saírem logo do corredor e enfim irem embora, em definitivo.

Eu só soube do falecimento da Marta três dias depois dela ter sofrido um atropelamento fatal na Hermes da Fonseca. Ouvi dizer que estava acompanhada na ocasião, mas não soube detalhes da história. Fui na missa de Sétimo Dia e lá encontrei o sujeito que tinha sido pivô de minha briga com a falecida. Pedi desculpas pelo murro que desferi nele e ele acatou. Depois da missa, ele ainda chamou pra beber alguma coisa. Eu não queria, mas ainda dividimos uma garrafa de cerveja. Ficamos contando um para o outro histórias torpes envolvendo a Marta, mas nos divertimos bastante nisso. No final da conversa, ainda mostrei pra ele as marcas dos dentes dele que carrego na mão; dentre as várias risadas que demos aquele dia, esta foi a derradeira.




sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Esse sono que demora a chegar...

Queria dormir, eu falei.

Mas você não dorme porque não quer, ela respondeu no ato. E continuou: quem manda ficar até tarde da noite na internet, fazendo não sei o quê, depois vai ler livros e revistas, vai escrever artigos, contos, vai ver tv, ver filmes, enche a cama de papelada e quando é de dia ainda teima em deixar a moto em casa e sair por aí de ônibus, fica fazendo passeios inúteis no supermercado, fica bebendo no bar, sentado na praça olhando pro poste de luz, bem ao seu estilo, e assim perdendo horas preciosas que poderia passar na sua cama, dormindo?

Quando falei que queria dormir não era exatamente dormir...



quinta-feira, 7 de julho de 2011

Salustino e depois Cibele

Como eu poderia te pagar?

Me vê o relógio, os óculos escuros e as botas, ele ordenou, já apontando.

Eu conhecia o Salustino só do botequim, mas já sabia de variadas histórias sobre sua figura, o suficiente para saber que tais ordens bem poderiam ser brincadeiras, bem poderiam ter sido ditas com a mais eminente seriedade. Mesmo assim tive coragem pra questionar.

Sem essa, não darei tudo isso por uma merda de conhaque. Nem consumindo todo o o bar inteiro eu pagaria com todas essas coisas.

Esse é o seu conhaque favorito, patife.

Deixo só o relógio, mas como garantia de que volto amanhã pra pagar e você me devolve.

Assim seja.

Passei meu relógio pro canalha.

Parece feminino, ele falou. E resmungou baixinho, talvez ironizando: Technos...

Osborne, disse eu, também baixinho...




Cadê seu relógio?, perguntou-me Cibele, uma garota com quem eu estava comendo um bauru no trailler de seu irmão - assim não precisaríamos pagar a conta - situado em algum lugar da Bernardo Vieira, horas depois do episódio no bar.

Lá se foi o disco voador, brinquei.

Não entendi, ela disse.

Bom, perdi.

Como se perde um relógio?

Apostei.

E você agora é apostador? Não tinha nada mais deprimente pra ser na vida?

Pra ser sincero, acho que não.

É a pessoa mais decadente que já conheci, ela disse, enquanto uma gota de maionese enfeitava a ponta direita da sua boca, balançando aos movimentos de sua face.

Claro. Mas é comigo que você está, comendo sanduíche no meio da rua, às onze da noite.

E o que que tem?, perguntou.

Nada.

Você é tão deprimente – ela continuou – que tava no cinema sozinho hoje.

Não somente hoje, eu falei.

E ainda admite, ela disse.

Estou aproveitando minhas férias. Hoje é o primeiro dia.

Grandes férias, ela ironizou.

Limpe esse troço na sua bochecha.

Ela de repente se calou e pegou um espelhinho, tirando com o dedo mínimo a gotícula de maionese no rosto. Depois, colocou tudo na bolsa e como se eu a tivesse xingado, disse:

Quer saber? Vou embora.

Fique aí, eu a deixo em casa.

Não, vou embora, tchau, e se levantou.

Como vai pra casa?

Ela não respondeu e se foi.

Não comi o bauru inteiro. A visão da maionese suspensa na bochecha dela foi me tirando o apetite, mas enquanto conversávamos eu me distraía e continuava comendo.

Depois desse dia, levei muito tempo até voltar a comer sanduíches. Fui pra casa dormir, e tanto dormi que não lembrei mais de voltar no bar para pagar a conta e recuperar o relógio.



domingo, 22 de maio de 2011

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Por fora do esquema

História real originalmente escrita para
a seção policial "No Esquema", da revista Tá na Cara!


GEANDERSON QUERIA EMOÇÃO, por certo. Só não sabia onde buscar. No estádio, nas tentativas amorosas, nas firulas do empreendedorismo? Necas. Achou por bem buscá-la na criminalidade. Quem sabe elas surjam com mais altivez. É isso – esse impetuoso dilema a respeito do que fazer, por que fazer, como fazer –, tudo o que se sabe de Geanderson até algumas semanas atrás. Dele e de seu parceiro, José Ricardo.

Não há qualquer outro registro fácil desses dois sujeitos por aí. Eram dois anônimos. Até pegarem nas mãos um revólver calibre 38; assim se transformaram. Assim se viram revigorados diante da vida. Geanderson poderia comemorar tardiamente o 31° aniversário – ou adiantar o 32°. O Zé Ricardo pegaria apenas carona nessa aventura clandestina, por falta de perspectiva ou de oportunidades outras, talvez. Poderia ser também por opção própria, irmandade; só que no pueril ambiente da criminalidade, falar de confraria é remeter a conceitos desencontrados num idioma estranho; como tentar pronunciar o substantivo “saudade” em inglês ou francês. Isso explica porque era somente a falta – de perspectiva ou de oportunidades – que movia o Zé a acompanhar o Gé.

No final das contas, ele trocou uma falta por outra; agora provavelmente lhe falta a liberdade. Isso porque o duo, provavelmente muito desentrosado e sem ter lá o tempo necessário para ensaiar, deixou-se levar na primeira peripécia profissional no mundo do crime. Há quem diga que cometeram pequenos furtos, desses que ocorrem com pessoas solitárias em paradas de ônibus. Coisas de principiante.

Desta vez, foram ambiciosos: tentaram assaltar um ônibus. Vá lá que tinha pouca gente, o que em tese deveria lhes facilitar o serviço; não facilitou. Mal contava vitória o dueto após reunir uma pequena porém considerável quantia em dinheiro e celulares numa mochila falsificada da Nike, logo o sucesso lhes mandaria lembranças. Se eles anunciaram o assalto nas proximidades da Rua Chile e foram interceptados pela Polícia Militar nas proximidades da Rodoviária Velha como disseram todos os noticiários, isto significa que mal chegaram no fundo do ônibus - se é que ainda lá chegaram -, o estrago já estava feito. Quando viram os policiais, sequer reagiram. Isto é, o Geanderson ainda sacou a arma, mas mesmo com o 38 em punho, ele permaneceu inofensivo, feito um adolescente estático ao saber que se ferrou...

É tudo e um pouco mais do que se sabe a respeito de Gê Garcia da Rocha.



segunda-feira, 7 de março de 2011

Com um nó no estômago

Acordei no sofá, com as costas doendo, como sempre. Era o prenúncio de um mau dia, como são todos os outros dias. A TV estava ligada, e eu vi o viaduto por onde passo todo dia em direção aos trabalhos, faculdades e outros tormentos. O viaduto estava em segundo plano, em primeiro estava uma repórter bonita mas totalmente sem sal dizendo que o tempo estava nublado, mas que não choveria. Eu me levantei com muito esforço, sendo meu sofá bem rústico e duro, é péssimo para dormir... todo o corpo estava em cacos... peguei um copo de água e fui para a janela ver as pessoas passando na rua... fico olhando a rua em frente, os estudantes, os operários, as mães com suas crianças, todos seguindo em direção a algum lugar, seguindo até o fim da rua, seguindo até sumirem no horizonte, e eu quase morri nessa falta de perspectiva.

Tomei um banho rápido e enquanto me vestia silenciosamente, o telefone tocou. O telefone residencial. Nunca havia passado o número para ninguém e ele agora estava tocando. Levei um susto, fiquei meio paralisado por segundos. Depois, ignorei. Continuei a vestir-me. Não queria atender. Não tinha nada a dizer, não queria ouvir nada, também não queria sair de casa. Por que era obrigado a atender essas exigências bobas? Tentei pôr mais pressa enquanto me arrumava, pois o telefone não parava de tocar e eu já estava incomodado. Mas antes que eu saísse de casa, ouvi o ônibus passando à frente. Foi-se rapidamente, e eu teria que esperar o próximo. O próximo, eu sabia, não passaria nos 40 minutos seguintes. Sentei-me no sofá com as mãos tapando o rosto... estava puto! Perdi a hora justo quando não devia... tinha uns exames de sangue para fazer. Tive que ligar para a moça do consultório.

O que deseja?

Quero remarcar o meu exame de sangue para amanhã.

Para amanhã não será possível, pois...

Então, interrompi, quero remarcar para depois-de-amanhã.

Também não será possível, senhor.

Tudo bem, quando há uma data disponível?

Infelizmente, não há mais datas disponíveis. O doutor fará exames até sexta e entrará em licença até maio. Você pode tentar...

Não, não vou tentar mais nada, obrigado.

Eu estava agora com uma pilha de exames incompletos, e para tê-los todos teria que esperar até quase o segundo semestre... Horas e horas marcando consultas e fazendo exames de raios X para terminar nisso... Desisti. Como já estava com a necessidade de sair de casa para compromissos outros, como dar aulas, e precisaria me deslocar mesmo assim até o Centro, decidi ficar vestido como estava, mesmo que só fosse sair depois do meio-dia, portanto dali a umas quatro horas. Cochilei no sofá enquanto isso e pus o despertador para alarmar exatamente ao meio dia.

Nesse dia, só dei duas aulas. Daria cinco, mas fiquei nas duas, já que o restante das turmas saiu antes da minha aula para participar de alguma atividade interativa fora da escola, e sendo assim fiquei livre mais cedo. Não sei se isso agradou ao meu dia. Era uma das últimas semanas que eu lecionaria; hoje já não sou mais professor, mas daria tudo pra dar aulas novamente. De qualquer modo, foi o jeito: saí de lá e fui para a parada de ônibus. Só que estava havendo uma passeata de uns servidores públicos, funcionários da Saúde, e estavam fechando a avenida pela qual os carros vinham. Como o trânsito estava desregulado, precisei pegar a condução em outro lugar. Escolhi uma outra parada, mas não tinha certeza de que o ônibus passava lá. Esperei dez minutos e saí. Fui para uma outra parada, onde esperei mais dez minutos e nada. Cheguei na Avenida Rio Branco, onde tem mais quase quinze paradas de ônibus, e eu tinha que adivinhar em qual delas o meu ônibus parava... Como vi que seria difícil, decidi aproveitar o tempo que estava no Centro para fazer algo. Fui à biblioteca do Sesc, ali por perto.

Apresentei minha carteira de sócio na entrada e fui procurar uns livros. Procurei, procurei e nada encontrei. Decidi ir para a mesa de revistas. Enquanto folheava lá algo sobre a rodada do Campeonato Brasileiro no fim de semana anterior, uma funcionária veio ao meu encontro:

Com licença, este é você?

Ela perguntou me mostrando um formulário que continha meu nome, foto, dados e uma listagem de dois livros que eu tomara emprestado meses antes.

Sim, sou eu. Apresentei minha carteira de sócio ao entrar.

Claro, senhor. É que há dois livros da biblioteca que estão emprestados a você, e estão atrasados.

É mesmo?

É sim, um do Rubem Fonseca e um do... deixe-me ver, Ernesto...

Ernest. Ernest Hemingway.

Pois é isso mesmo.

Olha, eu mandei um email recentemente para saber a quantas andava a minha situação aqui.

E não obteve resposta?

Claro que não... Ninguém responde nada. As pessoas só ouvem o que querem ouvir, e dizem o que querem dizer. Ninguém mais sabe perguntar nada, assim como ninguém responde nada também.

Mas, veja bem, os livros não são seus e...

Ué, lógico que são! Sou eu naquelas histórias! Hemingway me roubou, roubou a minha história e a minha personalidade para fazer aqueles contos! Acredite, minha querida, se ama mesmo a Literatura, aqueles livros estão melhores comigo do que aqui esquecidos nessa biblioteca decadente.

Você tem dez dias para trazê-los, não digo mais nada.

Ela sententicou e enfim me deixou em paz.

Depois que li todos os comentários sobre o futebol, a economia e os conflitos contemporâneos, saí, meio indisposto de continuar vagando, fui para uma parada de ônibus na qual sabia que meu ônibus pararia; para tanto tive que andar muito, cerca de meia hora. Peguei o ônibus e cheguei em casa, cochilei, bebi mais água, abri uns emails, li emails antigos, e percebi que havia muito mais emails ainda para trás... emails que nunca deletei em vários anos de uso ininterrupto de internet.

Comecei então a ler e a deletar, e deletar, e deletar. Enquanto deletava ainda relembrava muitos, ainda via neles boas e más lembranças, sentia que estava estourando bolas de encher, preenchidas de emoção. Enquanto deletava, imaginava isso como uma versão moderna da coisa de queimar cartas, lê-las e jogá-las na lareira enquanto o rosto expõe faces de alegrias e decepções. Passei coisa de seis ou sete horas nesse rito, do fim da tarde ao início da madrugada, e já me sentia muito pesado por tanta carga emocional reavivada nesse momento - uma carga pesadíssima, registrada em doses homeopáticas, agora rememorada em escala industrial. Desisti de deletar os emails, só sobraram alguns poucos do passado. Estava querendo dormir, e fiquei com isso na cabeça. Reconhecia o meu rosto íntimo, dissimulado, de quem sai para a rua disfarçado com o próprio corpo. Pensei em refazer coisas, mas era impossível, a vida é uma permanente construção; mesmo quando se destrói, ela se está construindo. Eu pensei nisso depois que li um deles, que escrevi há bastante tempo não lembro para quem e nem cheguei a enviar, ainda que fosse um email-resposta. Estava lá salvo na caixa de rascunhos do servidor. Em letras mal-formatadas, eu só adormeci depois de pensar bastante após reler tais palavras:

eu estava vendo e aprendendo algo sobre o escorpião, sobre a tendência regenerativa desse ser que se manifesta num impulso destrutivo, para reconstruir a vida permanentemente, e fiquei pensando nisso que você falou, que a vida é sempre um andar para a frente,mesmo que trôpego e cambaleante, e já não dá retorno possível para o passado. fica tudo se acumulando no altar do esquecimento. eu que só queria acordar sem esse nó no estômago. queria qualquer coisa doce, já que ando cada dia mais azedo. qualquer coisa que fosse como um deslumbramento ou um abraço. mas nada disso virá, a gente sabe. tudo se vai.

que merda.

até amanhã... quanto a depois, logo se vê.




terça-feira, 1 de março de 2011

A paz que me engana

Já vislumbrei a paz diversas vezes,
já arrumei a mala e parti por meses
com sentido fixo, em sua direção.

Perdi o prumo e o passo, perdi-me todo.
A paz que vi não era mais que engodo
a me ludibriar, mera tapeação.

Reencontrei a tal paz anos depois
e um novo dilema sobre mim se pôs:
se valia a pena tentar segui-la novamente.

Mas só uma coisa agora me vinha à mente:
eu não queria me ver de novo enganado.
Nessa vida, já não preciso de outro fardo.

Então o tempo passou e veja o que ocorre...
Certas coisas parecem que nunca morre,
como essa insistência dela em me flertar.

Agora penso no que vale a pena, no preço da paz,
penso no que preciso fazer pela virtude que ela traz,
mas mais uma vez ela parece me enganar.

Então eu me retiro, prefiro ficar aqui distante,
prefiro tentar fugir desse conflito delirante,
e pretendo anunciar minha completa indiferença.

Porém ela persiste e nunca pára, pois não pensa,
a mim caberá resistir à sua recompensa,
e eliminar o seu poder embriagante.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

53 reais a menos

Eu gosto das pessoas. Gosto de observá-las. Só não sei interagir, e também não gosto. Em geral, as formas de interação são tão pueris que nossa melhor companhia de repente pode perder toda a graça. Mas é por gostar apenas da companhia das pessoas e não da interação que me dou bem em lugares como estádio de futebol, fila de banco, ônibus, trem. Imagino-me pegando um trem lotado - há tempos não faço isso -, e dando de frente com todo aquele povo estranho. Cada um no seu lugar, uns sentados, muitos de pé, crianças chorando, mulheres com saco de compra, homens oferecendo lugares a idosos e grávidas e eu lá, no meu silêncio, observando tudo, sem que ninguém precise me falar - e esperar que eu fale de volta - nada.

É por isso que o lugar que mais gosto é o último banco do ônibus. Quando me sento ali, tenho uma visão panorâmica de todo o interior da condução, posso observar a todos, ainda que com as limitações daquele ângulo de vista, e sou também observado por aqueles que vão descer, mesmo que por lapsos de menos de um segundo. Todas as vezes que preciso me recolher em um lugar, o lugar que escolho é sempre nesse último banco.

Quando vou para algum jogo de futebol acompanhar o meu time, o ABC, não é diferente: gosto de ir de ônibus. Gosto da expectativa da vitória dentro de campo aliado ao prazer de ir observando as outras pessoas que estão no ônibus. Gosto de curtir o bom resultado ou amenizar a dor da derrota bisbilhotando os hábitos alheios, no retorno de casa.

Mas na semana passada, chovia muito e era noite; se eu quisesse ir para o amistoso internacional do ABC contra o River Plate, não poderia ser de ônibus, pois não tem mais ônibus depois das 23h00.

Saquei então a minha moto e me dirigi ao Frasqueirão. A chuva era intensa, muito mais do que eu esperava. Somente quando deixei a moto no estacionamento é que ela se elevou a tal ponto que eu mal conseguia me movimentar. Oh chuva para causar desgraças, será que não me permitirá nem chegar nas arquibancadas?!

Com muito esforço alcancei a arquibancada e lá assisti, mesmo debaixo da tempestade, uma partida meio sem graça. A chamada do evento engrandecia o que ele era de fato. Mas nunca se pode esperar um grande jogo da primeira partida do ano. O estádio parecia apenas metade cheio. As outras milhares de pessoas estavam se acotovelando debaixo das arquibancadas para se proteger da chuva. O primeiro tempo terminou sem gols. No segundo eu já estava trêmulo, apesar de a chuva ter diminuído. Mas quando pensei que o jogo melhoraria, o River marcou o primeiro. Quando pensei que o jogo melhoraria, o River marcou o segundo. Quando pensei, o River já estava marcando o terceiro.

Não gosto de ir embora antes do jogo acabar, mas essa soma de fatores foi determinante para me fazer tomar rápido o caminho de casa...

Só que no estacionamento a moto não queria pegar. Não adiantou eu tentar por dezenas de vezes. Não pegou. Saí empurrando, mesmo debaixo da chuva. Queria ver se fazia ela pegar no tranco, correndo. Só que ainda chovia, a pista estava cheia de água e havia muitos carros estacionados e outros saindo do local do jogo. não tinha condições de pegar no tranco. Pensei que podia ser a gasolina em falta. Levei no posto que fica em frente ao estádio e abasteci. Nada. Um amigo chegou e viu meu problema.

Será o cachimbo? Vela encharcada? Liga o afogador, de repente pegue, disse ele.

Fui tentando dando uma sacada em cada ítem, mas não resolvia. E não tinha mecânico para levar, sequer eu tinha como sair debaixo daquele pé d'água.

Nesse momento, ouvi uma gritaria da torcida no estádio. O ABC havia marcado o primeiro, eu sei. Mas nem comemorei. Apenas sentei e lá fiquei como se a solução dos problemas me fosse cair do céu.

Quando me dei conta, já havia bem menos gente pelas redondezas. O jogo já havia terminado há tempos. Deixei a moto ali mesmo, no posto, ciente de que no dia seguinte ligaria para o meu tio e lhe repassaria uns trocados com a mais límpida convicção de que ele iria fazê-la funcionar e descrever acertadamente o problema para que nunca mais venha a se repetir. Sendo assim, não havia mais nada a fazer. Iria caminhando para casa, até talvez aparecer um táxi. E apareceu.

Vai pra onde?, perguntou o taxista com o carro em lento movimento, seguindo minha caminhada.

Parque Industrial.

Onde fica?

Perto do aeroporto.

Tem quanto aí?

15, 20... sei lá.

Não tem mais?

Mais quanto?

Sei lá, bem mais. O aeroporto é longe.

Talvez.

Entra, se tiver mais.

Entrei.

Dentro do carro, pude ver o teor da chuva. Todo o trajeto usual que eu fazia estava completamente alagado, e a BR 101 havia simplesmente desmoronado por quase toda a via. Essas circunstâncias fizeram o taxista dar muitos arrodeios a mais para chegar ao meu destino. A conta deu exatos 53 reais. Eu não tinha tudo isso no bolso. Quando cheguei em casa, fui no quarto e catei umas últimas notas pra fechar a conta. Repassei a grana, ele sorriu e se foi.

Agora a chuva já era parca e rala, suficiente apenas para que se pudesse ouvi-la caindo sobre os telhados, a pavimentação e as poças. Estava escuro, e na rua somente os postes me faziam reverência em seu silêncio estático, luminoso, molhado demais. Eu fiquei ali parado até o táxi virar a esquina, e ainda continuei alguns segundos a mais, inerte, pensando nos impropérios daquele dia.

E dessa vez eu nem tive o último banco do ônibus para me recolher.



sábado, 15 de janeiro de 2011

Versos otimistas como não sei fazer

Hei, eu a chamei,
você me viu,
eu lhe mostrei, você abriu,
dei um livro e um abraço,
"A Conquista do Espaço".
Mas não me satisfaço:
Faço-lhe mapas e traços,
corto papéis em pedaços,
brincamos e imaginamos
e nesses descompassos
nós nos entrosamos.
Lembro como se fosse agora,
quando, onde você ainda mora,
brincávamos até cansar,
e íamos até o mar
contar, na praia, histórias
criando ritos e glórias
nas margens do oceano
que era nosso cotidiano.
A praia ficou para trás,
pois já não a levo mais;
fico na tola esperança
de que essa vaga lembrança
supra a minha vontade
de ir matar a saudade
de visitá-la e de levá-la
sem quaisquer troços ou malas
praqueles longos passeios.
Mas é que agora, creio,
não posso mais fazer nada
por você, minha afilhada;
porque estamos tão distantes,
diferente de como era antes,
que já não posso acolhê-la,
espero apenas poder vê-la
porque às vezes a tristeza
nos deixa sem qualquer defesa.
Mas não estou triste, prometo,
tenho em você um amuleto
que recheia minha memória,
que dá sentido à minha história,
que melhora um pouco tudo isso.
É uma espécie de compromisso.
E desde quando eu nasci
só agora de fato entendi
que em tudo reside uma lógica;
eu tenho enfim sobrevivido,
tenho buscado algum sentido
que ainda não encontrei,
mas ainda assim eu sei
o que você sequer imagina:
mesmo que haja um caminho certo
essa busca nunca termina.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A primeira noite

Já eram 23h e tantos e ele ainda não sabia para onde ir aquela noite. O centro da cidade estava esvaziado, e só se fazia presente a incômoda fetidez de mijo e cerveja que toma conta do lugar à noite. Embora a hora denotasse que já estava ficando tarde, parecia-lhe que muita coisa ainda aconteceria nos instantes seguintes. Mas ele não queria passar aquela noite na rua. Quisesse ou não, ela tinha algo de emblemático, de simbólico.

Depois de vaguear ante as pequenas lojinhas das ruas-beco que se acotovelam entre as principais vias da Cidade Alta, encontrou um hotel asqueroso, mas que oferecia a comodidade pela qual poderia pagar. "Ao menos uma TV ou um radinho deve ter", imaginou, consolando a si mesmo. O salão do hotel, com um balconista e outros quatro caras ao redor de uma mesa jogando cartas, era uma ebriedade só, e lhe trazia à sua memória os filmes vagabundos aos quais costumava assistir na infância - aquele lado escuro da vida, que nunca pensou em experimentar de fato. No entanto, o tempo corria e ele não estava chegado a reflexões. Pegou a primeira chave que o estonteado atendente lhe oferecera e foi ter com o primeiro quarto desconhecido que o acolheria. Lá, nada de radinho ou TV. Apenas uns beliches sujos, quase nenhum com estofado. Da janela, que ficava a quatro andares do chão, o que dava uns quinze metros de altura, sentia o forte vento frio que invadia o quarto e contemplava a decadência dos muitos mendigos, entorpecidos nas calçadas pequenas daquelas ruelas. A maioria das pessoas agradeceria por ter uma cama para dormir, ele pensou. "Sou um ingrato filho-da-puta".

Durante toda a vida, esperou por aquela noite. Contudo, não imaginava que passaria como um mundano, num hotel nojento qualquer. Não chegou a chorar; e se o fizesse não seria por saudades nem por desesperança. Aconchegou-se da forma que pôde, e, pela noite, leu um livro de Allen Ginsberg, mais um inconseqüente doutros tempos que o ensinara a desprezar a boa-vida vazia de sentido que recebera até ali. Apesar da leitura o absorvê-lo por um tempo, não agüentava o tormento daquelas horas e retirou da mochila uma garrafa de vinho pela metade, que o ajudaria a se aquecer e divagar o restante da madrugada, bem percebendo que estava longe de sentir sono. A certo instante, somente quando precisou do banheiro, foi que ele se deu conta de que não estava num suíte - não havia suítes ali, afinal. Caminhou até o fundo do corredor, mas o pouco de dignidade que guardava - que bobagem... - o impedia de usar o banheiro coletivo repugnante que era dividido entre todos os hóspedes do andar, composto de bêbados, prostitutas e, ocasionalmente, um ou outro adolescente fugidio, "igual a você", conforme lhe dissera um dos embriagados que conhecera na entrada do hotel.

Tudo se passou num misto de alegria e tristeza - mas uma tristeza jubilosa, quase uma constatação de que estava vivendo um lado mais sincero e honesto da vida, tal como ela deveria ser de verdade no seu imaginário. Estava, no final das contas, satisfeito. Nos vinte anos anteriores, fora sempre tido como um sujeito esquisito e ermo, mas os adjetivos inglórios até então recebidos pouco significavam agora. Já não pensava mais em nada depois de alguns tragos de vinho, quando reparou num crucifixo que ornamentava, solitário, uma das paredes do quarto, entre rabiscos de caneta outrora traçados por hóspedes canalhas e metidos a poetas. "Aprendi com você a ser um errante", foi o que disse, olhando para o crucifixo. Ou parece que disse, não tinha certeza.

Sua paz acabou quando bateram na porta, às 4h e poucas, enquanto filetes de luz matinal já começavam a iluminar o ordinário ambiente. Embora ele se mantivesse acordado, estava absorto demais para ter consciência disso. Estava drogado, diriam, como sempre disseram, os lugares-comuns que povoaram sua vida. Mas enfim percebeu que havia mesmo alguém forçando a porta no corredor. Quem seria? Ele não imaginava. Bem poderia se tratar de apenas um beberrão tentando entrar no quarto errado, ou até um serviço de quarto, mas isto ele sabia que não havia naquele antro. Talvez alguém que, após alguma procura, descobrira o seu paradeiro. Tentou não dar muita atenção, entretanto as batidas não cessaram. Num dado momento, contudo, sem entender muito bem o porquê e sem que se preocupasse com motivos ou razões, desceu-lhe uma minúscula lágrima pelo rosto, e um sorriso indolente desestatuou seus lábios. Pegou uma caneta que tinha no bolso para pôr uma sentença na parede, como tantas outras que já estavam ali expostas. Ele se viu quase completamente sem o controle dos próprios nervos, e, com muito esforço, escreveu: É possível alcançar a supressão do sofrimento que é a vida. Dito isto, não tinha muito mais a fazer. Então se dirigiu à janela. É bem verdade que quinze ou vinte metros nem sempre chegam a ser fatais, mas ele estava decidido a pular de cabeça para baixo, para não ter muitas chances. "Nunca tive segundas chances", pensou, no fim. "Seria muita ironia se tivesse agora".



domingo, 19 de dezembro de 2010

Diálogo existencialista (peça incompleta)

(Eu estava bebendo conhaque e olhando Júpiter pela janela com a luneta que havia comprado recentemente. Gabriela estava deitada na cama, fora de minha vista e de minha audição; mas como ela quisesse conversar, então me voltei em sua direção.)

GABRIELA

Você gosta de tristeza?

(Eu me fiz de desentendido.)

LEON

O livro? Um dos melhores que já li.

(Ela riu. Depois ficou com um pequeno sorriso, mas meio sem querer perguntar novamente.)

GABRIELA

Não é isso não...

LEON

O sentimento, é?

GABRIELA

Sim.

LEON

Não necessariamente gosto... Convivo com ele. Acho que a vida é triste. Os momentos de alegria são meros lapsos. (dei uma boa parada, coloquei mais um pouco de conhaque e bebi antes de continuar a falação.) A nossa condição existencial é a solidão, e não nos conformamos com isso. Porque fisiologicamente somos um animal social, mas existencialmente, somos solitários.

GABRIELA

Puxa. (parecia surpresa, mas não demonstrava ter nada mais a dizer.)

(Continuei como se não a tivesse ouvido.)

LEON

... Então, acho que quando se adquire mais percepção a respeito das vicissitudes, os dilemas que a vida oferece, cada vez mais se entende que tudo o que conhecemos por reconhecimento, conquista, é pueril e simplório demais, e não sustenta nenhum senso de grandeza. Sendo assim, é uma sensação (a conquista, a vitória, a alegria) que surge e tende a esmorecer rápido, antes que nos demos conta disso... Isso só perdura naqueles que ignoram o lado obscuro da vida.

GABRIELA

Acha mesmo?

(Fui sentencioso.)

LEON

Acho sim.

(Silêncio, por alguns minutos. Gabriela estava sentada com as pernas curvadas sobre a cama, então deitou e se cobriu; eu estava bebericando e olhando-a fixamente. Como se tivesse se lembrado de algo, ela virou o rosto para mim rapidamente, mas ainda ficaria alguns segundos calada.)

GABRIELA


Eu nunca parei pra pensar sobre essas coisas.


LEON

Eu sempre parei, era só o que fazia... não fazia mais nada, afinal. Agora continuo não fazendo muita coisa, eu me acostumei com essa condição.

(Ela fazia murmúrios, como se procurasse as palavras.)

GABRIELA

E antes de pensar tanto sobre essas coisas, você era mais alegre?

LEON

Não. Por isso, eu achava que havia algo errado comigo. Sentia-me desprezado, injustiçado, relegado... Achava que as pessoas eram más e esperava sempre algo delas que nunca me ofereciam, em momento algum.

GABRIELA

Continua.

LEON

Depois, entendi que não se tratava disso. Ainda é estranho aceitar, às vezes. Há ressentimentos e coisas assim. Mas eu passei a entender melhor o porquê de as pessoas agirem dessa maneira. De serem indiferentes a outras, de serem insensíveis, e tal...

GABRIELA

São motivos distintos?

LEON

De modo geral, o motivo é o mesmo... aí cada pessoa tem suas particularidades, que só se diferenciam do todo em alguns casos específicos...

GABRIELA

Entendi.

(Voltei a olhar para a janela. Júpiter ainda estava no campo de vista. Enchi o copo com conhaque e dei uma última olhada para Gabriela. Ela estava me olhando, mas como se não estivesse me vendo, como se eu fosse transparente. Fiz-lhe uma última pergunta.)

LEON

Uma grande bobagem tudo isso?

(Não me lembro da resposta.)




sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A estagiária

Uns meses atrás, quando a minha moto andou encostada devido a uma conjunção de pequenos fatores, eu teria que ir ao trabalho e à faculdade de ônibus. De certo modo, havia algo de positivo nisso, pois me permitia ter um mínimo de relação com outras pessoas, coisa que já não tinha mais, uma vez que nos dias comuns, em que uso meu próprio transporte para ir a meu destino, praticamente as únicas pessoas com quem converso são alunos e professores da escola onde dou aula, colegas e professores da faculdade em que estudo e atendentes de bancas de revista, de lojas, de padarias e coisas assim; a maioria destas relações, como se vê, regida pela insossa relação profissional-cliente, uma das coisas que mais detesto, tanto estando eu na situação do profissional como do cliente.

Decidi pegar o ônibus em três horários diferentes. Nas segundas e quartas, eu pegava o ônibus ao meio-dia na ida e às 22h00 na volta. Nas terças e quintas, eu pegava o ônibus às 13h00 e voltava às 23h00. Nas sextas, o horário era flexível, pois eu dava apenas um horário de aula, e como não havia faculdade nesses dias eu voltava cedo, geralmente ainda no final da tarde, de maneira que não pegava ônibus no mesmo horário.

No ônibus de meio-dia, certa vez ao meu lado sentou uma mulher bastante imponente. Eu estava no banco da janela e ela no do corredor. Era uma mulher grande, balzaquiana, de quadris largos, o que fazia com que, quando ela se sentasse, me imprensasse, deixando suas pernas bem coladas na minha. Como o ônibus nesse horário lotava rapidamente, aos poucos a mulher era obrigada a imprensar-se ainda mais sobre mim, o que gerava também uma reação contrária, caso contrário eu não teria sequer lugar pra sentar. A mulher passou a viagem toda falando no telefone até que enfim chegasse seu ponto; quando ela decidiu descer, um cara sentou em seu lugar e me puxou o braço pra falar algo que não entendi e pedi que repetisse.

Gostosa, a Marta, essa mulherona que tava aqui do teu lado, ele disse.

Ah, sim. Na verdade, não a notei muito, eu falei.

Como não notou?! Ela tava praticamente se oferecendo pra você. Ela é a dama do lotação versão Águas Claras, disse o cara, referindo-se ao conjunto habitacional em que ela morava.

Nem notei mesmo, quem sabe na próxima...

Tu não pode marcar bobeira assim, rapá!, ele dizia, como se fôssemos velhos conhecidos.

Me fale você, eu disse, tentando inverter o interrogatório. Que sabe dela?

E enquanto ele falava eu olhava pela janela.

No dia seguinte, uma terça-feira, eu saí de casa às 13h00. Nesse horário, o ônibus nem sempre lotava; frequentemente o banco ao meu lado ficava vazio. Eu ficava reparando ora no trajeto que passava irreversivelmente lá fora do ônibus, ora nas pessoas dentro dele, estudantes, vendedoras e coisas assim. Uma garota de feitio comum em particular chamava a atenção por ser bastante comunicativa, pelo visto conhecia bastante gente que pegava ônibus naquela hora (sempre a via falando com alguém). Notei pela sua farda que trabalhava na Companhia de Águas e Esgotos. Eu reparava nela como reparava nas outras garotas, às vezes prestando alguma atenção, mas sempre distante, despretensioso, como se as observa num romance de Scott Fitzgerald.

Em uma rara ocasião, essa garota sentou ao meu lado. Depois de poucos minutos de viagem, perguntou a mim as horas.

Bem... são 13h15, eu falei, sem olhar para o relógio.

Nem olhou para o relógio, ela disse, estranhando o fato de eu dizer a hora diretamente.

O meu relógio estava parado fazia alguns dias. Precisava levar em algum relojoeiro. Mas por força do hábito eu sempre o punha no braço, mesmo assim, inutilizável. Então tentei explicar a situação de alguma maneira.

Na verdade, meu relógio parou agora há pouco, notei só depois que saí de casa, falei.

Posso ver?, ela perguntou. E ao notar a data que marcava no relógio, disse mas ele parou há três dias, pelo menos é o que se vê aqui na data.

Bem, não ligo.

Como não liga?, ela insistiu. Ela ria enquanto questionava.

Relógio pra mim é mais um mero acessório, apenas.

Ah...

E se fez algum silêncio por um tempo. Até que eu retomei a conversa.

Você trabalha na Caern, não é?

Como sabe?, ela perguntou.

Já notei pela sua farda em outros dias (ela não usava farda nesse dia).

Ah, sim! Sou estagiária de lá, disse efusivamente.

E começamos a prosear sobre Caern e outras coisas. Quando eu disse que havia sido aprovado no concurso para trabalhar nessa companhia, ela havia ficado particularmente mais interessada na conversa.

Assim os dias se revezavam. Em uns eu falava com o rapaz que sentava ao meu lado, que se chamava Martins. Era um mauricinho, fora nossa idade semelhante nada de comum entre nós, mas a conversa às vezes fluia bem. De modo geral, falávamos de mulheres; aliás, quase sempre era ele quem falava, oferecendo histórias mirabolantes, cada uma com acessos de ousadia de sua parte na sedução de garotas que eram dignos de um Casanova. Pelo menos, assim parecia; nos outros dias, eu falava com essa garota que ocasionalmente sentava ao meu lado e íamos sempre conversando, que se chamava Luziana. Ela era bonita, da minha altura, tinha uns 18 anos e isso era visível na sua pele clara e delicada ornamentada por longos cabelos bem escuros. Seu sorriso de covinhas chamava atenção, até a mim que não ligo muito para sorrisos.

Um certo dia o Martins, que parecia saber coisas de todas as garotas do bairro, entoando sempre longos discursos nos quais eu nem sempre prestava atenção, falou por acaso sobre a Luziana.

Como assim, você conhece a Luziana?, perguntei.

Claro que conheço! A propósito, ela bem que gosta de caras assim como você, com esse ar astuto, metido, professoral, completou, meio ironicamente.

Às vezes eu converso com ela no ônibus das 13h00.

Invista nela, ele disse.

Não liguei muito para o que ele havia falado. Porém, dias depois, a Luziana me convidou para uma festa que haveria na Caern. Era aniversário da empresa e a festa seria aberta para a comunidade.

Venha, você vai gostar, aproveita e vê um pouco como é o ambiente lá, dizia ela, insistindo para que eu fosse.

Certo, eu irei.

O Martins ficou especialmente interessado quando falei do convite da Luziana.

Bote quente!, ele falava, imperativamente.

Nesse período, eu já havia consertado minha moto, mas continuava indo ao trabalho de ônibus só para manter essas prosas cotidianas. Só que para a festa da Caern em particular, não fui de ônibus. A Luziana não entendeu o fato de eu ter ido de moto, provavelmente achou num primeiro momento que ela fosse emprestada de alguém. Havia bastante gente na festa, como havia bastante comida e bastante bebida. Depois de passarmos umas duas horas lá, a Luziana deve ter cansado do lugar.

Vamos sair daqui?, ela pediu.

Abandonamos o recinto. Como eu estava de moto, saímos passeando pela cidade. Antes do final da tarde, a Luziana estava quase implorando para vir à minha casa, e eu mesmo a contragosto - nunca trago ninguém para cá -, acatei. Fizemos sexo por várias horas e ficamos de papo furado outras tantas - sexo e papo, aliás, sempre interrompidos por telefonemas de sua mãe e justificativas pueris da parte da Luziana -, e eu a deixei em casa por volta da meia noite.

O que você pensa depois de transar com alguém?, ela me perguntou na hora da despedida, já em frente à sua casa. Sorria, como sempre.

Daqui a quantos anos será a próxima vez?, eu pensei. Mas não falei.

Isso na verdade nunca foi uma preocupação minha. A depender de mim, aquela noite nem teria existido.

Depois dessa ocasião, sempre que a Luziana me encontrava no ônibus, pressionava mais para sairmos outras vezes. Aliás, ela sempre pressionou, desde o princípio. A única coisa que eu queria era uma prosa cotidiana; ela queria provavelmente um namorado novo e uma transa a cada dois dias. Exigências demais para um sujeito sem saco pra nada disso como eu.

Acho que na semana que vem em diante não pegarei mais o ônibus, eu lhe disse, o que não a agradou.

Como assim?

Vou trabalhar de moto, falei.

Não entendi. E por que você está indo de ônibus todas essas semanas?

A moto estava quebrada.

Mas faz dias que você consertou!, disse a Luziana. Ela parecia gradativamente mais irritada.

É, só que preferi continuar indo de ônibus.

Meu Deus, que maníaco é você?! Imagine como deve ser louco um cara que usa relógio parado como acessório e anda de ônibus pra descolar garotas!!

Daí por diante, os seus comentários seriam ainda menos simpáticos. Apesar disso, ela ainda me telefonou uma ou outra vez, bem esporadicamente. No entanto, não demoraria a me esquecer em definitivo; é provável que outro cara já houvesse entrado na sua rota.

Numa das últimas viagens de ônibus que fiz ao meio-dia, encontrei o Martins, com quem não falava há algum tempo. Ele andou com atestado médico, então não havia ido trabalhar naqueles dias.

Ei, mas e a saída com a Luziana??, ele perguntou.

Ah, nada, não rolou nada.

Como assim nada?!

Nada.

Nem um boquetezinho?!, ele insistiu.

Não.

Ah meu irmão, você é muito mole, muito sem futuro. Quer saber? Vou é parar de falar contigo, tava me deixando mal, fazia um tempão que não comia ninguém, foi só ficarmos distante esses últimos dias que eu fiquei com duas morenaças!

Eu não sei se ele falou tudo isso ironicamente, mas decerto tornou bem mais fácil o fim do contato.

Na semana seguinte voltei a usar minha moto para ir ao trabalho e à faculdade, e ela até hoje não quebrou mais. Melhor assim.



segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Anoitecer na estrada

Eu tocava adiante na estrada, vendo somente os raios de sol cortarem o tronco das árvores que se punham em sequência como se fosse uma cortina natural, situada ao longo do meio fio, fazendo um jogo de luzes e sombras que desenhavam formas bastante peculiares no asfalto e que ganhavam um visual bem singular quando visto por detrás de meus óculos escuros, e a tudo isso eu cortava ao mesmo tempo em que sentia a brisa pincelando meu rosto.

Era o final de uma tarde de verão e eu estava viajando de moto com a viseira levantada, em algum lugar do norte de Alagoas, num trecho não muito movimentado, permeado de estradas sinuosas e pequenos morros cobertos por uma vegetação verde e litorânea, no qual o único sinal de movimento além dos meus sobre a moto eram treminhões que levavam carregamentos pesadíssimos para os latifúndios da região, e, talvez, um ou outro mochileiro de bicicleta viajando no sentido contrário. Eu pretendia passar a noite em Maceió; ficaria alguns dias por lá, mas durante a viagem de moto imaginei que, em algum momento, eu tivesse pego o caminho errado, pois estranhara o fato de seguir já há muito tempo naquela estrada enfiada num cenário meio paradisíaco, sem jamais encontrar qualquer vestígio da capital alagoana.

No meu trajeto, eu procurava apenas uma placa que indicasse Maceió a XXX quilômetros, mas não encontrava. As únicas placas que apareciam no correr da estrada diziam em letras grandes CUIDADO COM OS TREMINHÕES.

Em um certo momento, notei que atrás de mim vinha outro motociclista. Bem que pretendi solicitar ajuda, mas ele vinha numa moto superesportiva e passou por mim em tão alta velocidade que num espaço de poucos segundos eu já o perdera completamente de vista, a ponto de duvidar de mim mesmo se alguém havia passado por mim naquele instante.

Enquanto o sol descia ainda mais, eu encontrei um garoto encostado ao pé da rodovia, mexendo numa bicicleta. Parei ao seu lado e lhe perguntei para que lado ficava Maceió, se eu estava seguindo no sentido correto.

Maceió?, ele perguntou.

Tinha uns 12 anos, mas provavelmente não fazia a menor noção de para que lado ficava Maceió.

Eu segui adiante, ainda na esperança de encontrar placas que indicassem a distância ou o sentido para o qual eu devia seguir para achar Maceió, mas todas as placas que apareciam se atinham a me avisar CUIDADO COM OS TREMINHÕES.

Como eu andasse já há tanto tempo e naquela estrada deserta não houvesse posto de gasolina, esperei chegar a primeira cidadezinha e decidi que dormiria nela, para pegar a estrada e continuar a viagem na manhã seguinte. A cidadezinha de fato apareceu, com feitio aconchegante. Ao lado de um barzinho que ficava às margens da rodovia tinha um motel, pensei em dormir ali. Antes de ir no motel, entretanto, fui no bar, queria beber alguma coisa. Entrei, sentei no balcão, e fiquei conversando com o atendente. Era o próprio dono do bar, que inclusive, no decorrer da conversa ofereceu gasolina que ele tinha estocado para que eu pudesse prosseguir.

Você é matador?, perguntou-me um bêbado barbudo da mesa em que estava sentado, interrompendo minha conversa com o dono do recinto. Eu não ouvira a pergunta, ou não me houvera dado conta de que havia sido feita para mim. Somente quando ele repetiu - você é matador? -, eu virei o rosto e notei que era mesmo comigo.

Por que a pergunta?, questionei.

Por causa dessas roupas aí, ele disse.

Eu usava uma calça jeans meio surrada, e um colete de motoclube, além de um bracelete punk. Usava também uma bandana, mas havia tirado logo que tirei também o capacete. Provavelmente corria para ele a lenda de que motociclistas nesse estilo eram assassinos e saqueadores. Mas eu estava sozinho, por isso ele e os demais se sentiam seguros.

Não, eu lhes disse. Não sou matador, sou escritor.

Escritor? O que faz um escritor?, perguntou outro cara que não cheguei a ver, apenas ouvi.

Acho mais fácil você ser matador do que escritor, sentenciou o barbudo.

Que seja, eu falei. Mas eu sou escritor.

Eu também acho mais fácil ser matador, disse uma voz feminina que se aproximou de mim, pelo outro lado, sem que eu notasse sua chegada. Apenas balancei a cabeça para ela. Era uma morena de pele clara e cabelos negros mas com umas mechas loiras, bem baixinha, com roupas que denunciavam o que ela fazia; era nitidamente uma mulher muito usada pelos caras da região.

Mora aqui nessa cidadezinha?, perguntei.

Durmo no motel, ela disse.

Dorme no motel?

Durmo, mas não apenas durmo.

Ah, sim, eu falei. E comecei a pensar na ideia de gastar uns trocados com aquela miudinha. Mas quando dei-lhe uma vista geral, notei algo que não havia visto na primeira vez, que eram as suas pernas expostas; eram até bem grossas e ficavam realçadas pelo shortinho que mais parecia de pijama, mas que, pelo que se via, há muito tempo não haviam sido depiladas. Quando eu olhava melhor, ela bem poderia ser confundida com pernas de homem. Aquilo não me animou muito. Ela continuou dando mole e pedindo algumas bebidas que prontamente paguei, mas achei melhor não ficar naquela cidade, sob risco de passar a noite sendo perseguido por essa baixinha peluda.

Saí do bar, ouvindo pela metade os comentários da mulher e do bêbado barbudo e fui em direção à minha moto, que estava rodeada por umas três ou quatro crianças que nunca haviam visto motos naquele estilo custom; provavelmente achavam que era uma moto de brinquedo.

1 real se alguém me disser quanto tempo falta pra Maceió nessa direção, ofereci.

Maceió?? Maceió fica praquele lado!, disse um dos moleques, apontando no sentido contrário.

Só então me dei conta de que estava o tempo todo viajando no sentido contrário. Que grande merda, pensei.

Demoro muito para chegar lá? É longe?, ainda perguntei.

É quase longe, disse um deles. Acho que entendi.

Tomei rumo de volta, e a essa altura o sol já houvera se posto por trás dos morros verdes, e diante de mim só restava a estrada sinuosa que eu acompanhava com o farol alto da moto, recebendo como comunicado somente as mesmas placas de CUIDADO COM OS TREMINHÕES. Eu já estava cansado de ver tais placas, sobretudo porque ainda não havia visto nenhum treminhão por ali. Reclamava, de dentro de meu capacete, de todas as instâncias governamentais que não colocavam uma mísera placa apontando para que lado ficava Maceió.

Depois de duas horas de viagem em pleno breu, encontrei uma encruzilhada de três direções que passara batida na minha viagem, mais cedo. Decidi tomar o rumo que houvera ignorado. Nesse rumo, somavam-se mais curvas, mais montanhas, e mais placas de CUIDADO COM OS TREMINHÕES. Segui em frente, confiante de que chegaria em Maceió antes da madrugada. De repente, no meio daquele breu infinito, eu vi luzes acumuladas algumas centenas de metros à frente, na estrada. Diminuí a velocidade, vi que havia bastante movimento. Eram luzes de carros. Estavam estacionados vendo um estrago na rodovia. Era um ciclista que, ignorando os anúncios para tomar cuidado com os treminhões, havia passado rápido demais numa área de risco. Foi atropelado pelo treminhão, tendo sua bicicleta estraçalhada e seu corpo dilacerado e espalhado na estrada. Eu, um matador de araque, fiquei meio desconfortável quando vi braços aqui e pernas ali. E fiquei apreensivo também com aquele treminhão, cuja imponência justificava as tantas placas que alertavam para o risco de me encontrar com um deles.

Mas a viagem não duraria muito tempo depois dali. Bastou mais vinte e cinco minutos adiante para que eu chegasse em Maceió.