História e Literatura de Ficção
As Aventuras de Richard Sharpe, um herói no tempo das Guerras Napoleónicas
Manuela Catarino *
Quando se percorrem as páginas de suplementos literários ou se espreitam os escaparates das livrarias confronta-se o passante e possível leitor com a possibilidade de realizar diversas viagens entre tempos, espaços e vivências muito diferentes, através de uma intriga sedutora, movimentada, recheada de personagens entre o real e o imaginário. Capas apelativas, títulos engenhosos, dão forma a um género literário que, nos dias de hoje, ganhou novo fôlego: o romance histórico.
Herdeiro dos tão apreciados “contadores de estórias” que tanto marcaram a tradição oral, o romance histórico ganha mais intensidade quando se fixa no suporte papel e nas páginas que enforma. Os heróis, as paisagens, os costumes, as marcas de um quotidiano diferente são pretextos para incursões em temáticas que podem ir da política à arte, da religião à guerra, da mentalidade à música, mas deixando sempre ao leitor a perspectiva de , se o desejar, retomar a dimensão “real” dos factos que “reconstitui”.
Cabem nesta acepção os volumes que a Planeta Editora tem vindo a publicar sob o título As Aventuras de Richard Sharpe da autoria do escritor de origem britânica Bernard Cornwell, cujo cenário se desenrola nos campos de batalha peninsulares do século XIX. Neles encontramos os momentos decisivos das lutas entre as forças napoleónicas e a resistência organizada nos reinos de Portugal e Espanha, desde a Galiza a Talavera, da destruição de Almeida à batalha do Buçaco, para apenas referirmos alguns exemplos.
Não será difícil acompanhar as peripécias do tenente Sharpe e dos seus companheiros de luta em cada página que o autor tão vivamente nos apresenta. Emboscamo-nos, subimos os íngremes penhascos, acompanhamos o movimento das forças adversárias, atentos ao mínimo pormenor. Assistimos ao desespero das populações civis na iminência da destruição das suas casas, dos parcos bens que possuem, da perda da própria vida.
Mas também participamos de momentos ironicamente perfeitos como aquele que a imaginação do autor nos propicia no episódio que situa em 1809, no salão de recepções da ala oeste do Palácio das Carrancas, junto ao Douro, enquanto as forças de Sir Arthur Wellesley instaladas nas ruas de Vila Nova de Gaia disparavam os canhões por sobre o rio e os franceses se acantonavam na cidade do Porto – […] Um francês alentado, com um bigode enorme, entrara na sala. Trazia um avental manchado de sangue, com uma medonha faca de trinchar á cintura.
-Mandou-me chamar, meu Marechal? – disse ele, soando a contrariado.
- Mandei, pois.- Soult empurrou a cadeira para trás, esfregando as mãos. –Temos de pensar no jantar, sargento Deron! Vou ter dezasseis talheres e quero saber o que é que sugere?
- Eu tenho enguias.
- Enguias! – exclamou Soult, todo contente. – Recheadas com pescada em molho de manteiga e cogumelos ?Excelente.
- Eu vou cortá-las em filetes - disse, casmurro, o sargento Deron -, fritá-las em salsa e servi-las com um molho de vinho tinto. E, para entrada, tenho borrego, um borrego muito bom.
- Muito bem! Eu gosto de borrego – disse Soult. – Não pode fazer um molho de alcaparras?
- Um molho de alcaparras? – Deron parecia desolado. – O vinagre ia afogar o borrego – disse ele, indignado – e, trata-se de borrego muito bom, tenro e gordo.
- Podia ser um molho de alcaparras muito leve, talvez? – sugeriu Soult.
O som das armas aumentou para uma fúria repentina, fazendo estremecer as janelas e entrechocarem-se os pingentes de cristal dos dois candelabros suspensos sobre a comprida mesa, mas tanto o marechal como o cozinheiro ignoraram o barulho.
- O que eu posso fazer – disse Deron, num tom que sugeria que a discussão terminava ali – é cozinhar o borrego em gordura de pato.
-Muito bem! – disse Soult.
-E guarnecê-lo com cebolinhas, presunto e uns cogumelos.
Um oficial com um ar exausto, a suar, a cara vermelha do calor do dia, entrou na sala.
-Meu Marechal!
- Um momento – disse Soult, franzindo o sobrolho, e tornando a olhar para Deron. – Cebolas, presunto e uns cogumelos? – repetiu ele. – Mas talvez pudéssemos juntar umas tiras de toucinho, nosso Sargento? O toucinho vai tão bem com o borrego! […][1]
Sabe-se o destino de Soult na sequência das manobras militares que levaram à sua derrota e consequente saída de Portugal . Quanto a Sharpe prosseguirá as suas aventuras…
* Professora, Mestre e Investigadora
[1] Bernard Cornwell, Sharpe e a Campanha de Wellington. Norte de Portugal, Maio, 1809, Planeta Editora, 2004, p.205.