Kiss me to build a dream on
Na sala, uma mesa redonda ocupada por um grupo de indivíduos distintos.
Uma comissão da Comissão Especial para a Vigência da Inteligência. Cada um
deles exibia o orgulho por estar ali, eles não tinham se dedicado tanto à
toa - aliás, por uma promessa que lhes
fora feita quando ainda nem sabiam que diabos era uma escola. Desfrutavam da
vitória após terem sido aprovados em concorridíssimo concurso, montado por
outra comissão de especialistas em selecionar os mais capazes, os mais aptos,
os mais confiáveis, após análise detalhada das curvas de desempenho num
requintado exame de conhecimentos específicos. Pelo menos viviam numa sociedade
aristotelicamente meritocrática, em que os iguais reconheciam seus iguais.
Naquele momento, eles
analisavam uma fotografia projetada na parede da sala escura (diga-se entre
parêntesis: tratava-se da foto de um homem nu, com jeito de prostrado, olhando
para o chão – não como os humilhados bíblicos, por que estes olham candidamente
para o céu – por simples e puro cansaço, aparentemente não pensando em nada, e
sobretudo não em ser erigido como herói alguns anos depois – porque se fosse
isso ele estaria pagando um preço alto demais – e muito menos pra contribuir
com a circulação de algum jornal sensacionalista. A foto apontava ainda para
outro alguém, este atrás da câmera, atrás da lente, focalizando a coisa, uma
espécie de olho que devassava o homem nu, situado no mesmo ponto de observação
que os futuros observadores da fotografia, dentre os quais a dita Comissão
Especial para a Vigência da Inteligência, os leitores de jornais e os
historiadores do futuro).
A pessoa que presidia a
Comissão, ajustando os quatro óculos de invulgar modernidade, iniciou a sessão:
- Hoje espero que vocês
me apresentem seus relatos e relatórios, reitero apenas minha única exigência:
sobretudo não me venham com o óbvio, vocês não são pagos para isso. Um
intelectual nunca deve dizer o óbvio, isso é o que a Academia nos ensina, o
óbvio não é digno de crédito, desqualifica e denega a nossa especialidade. Se a
mediocridade imperante também não diz o óbvio isso não é problema nosso, mas
como diria o grande assessor de Capanema, e nas horas vagas poeta Carlos
Drummond de Andrade, deixemos pra lá os inocentes do Leblon.
- Eu observei um
detalhe intrigante na fotografia em questão (aqui o leitor visualiza uma pessoa
especialista em relojoaria). Mas o homem visado pela câmera usava um relógio
antiquado, mesmo para os dias em que se passou a sessão fotográfica: ou ele era
um desleixado completo, ou alguém vindo das classes proporcionalmente mais
desfavorecidas pela sorte. Tudo o que pude então concluir é que não se trata de
um milionário, uma vez que este reúne duas qualidades que nosso objeto de
estudo não traz, riqueza somada à preocupação com a imagem pública.
A pessoa especialista
em nutrição pede a voz;
- Não pude calcular
exatamente a quantos dias o sujeito alvejado pelas lentes não se alimentava.
Isto porque ele apresenta um curioso estado de magreza, que não se sabe se
correspondia a seu estado natural – é lamentável que não possamos vê-lo ao
vivo, porque então uma simples olhadela em suas pálpebras nos revelaria se ele
estava ou não anêmico – enfim, não sei se ele era magro ou se tinha sido
emagrecido.
Tomou a voz a e vez a
pessoa especializada em história, admiradora que era da obra de Foucault:
- Não acredito que
vocês se percam nestas especulações irrisórias, e nem sequer toquem no foco da
questão. Por coisas como estas que sempre afirmo que nossa sociedade iria à
falência não fossem os historiadores. O mais importante é o cenário meus caros!
Vejam aquelas paredes rachadas e úmidas, aquelas traves de metal sobre as janelas,
em estado evidente de enferrujamento! O lugar, naquela época - e já se vão
muitos anos aquela, eu ousaria dizer, pré-história – já era histórico, já tinha
as marcas do tempo, imaginem o que ele seria hoje! Chego a sentir o cheiro de
musgo e mofo que emanava naquele ambiente. Precisamos descobrir imediatamente o
local iluminado pelos flashes pra construir um museu histórico, um
espécime em estado bruto da engenharia do passado longínquo, pra que nossas
crianças conheçam seu passado. Êta povinho sem memória!
A pessoa que presidia a
reunião retomou a voz:
- Hora do intervalo!
Peraí pessoal, deixa eu resumir nossas conclusões técnicas (amanhã vou
mandá-las pros jornais, senão as pessoas vão ficar sem assunto quando forem ao Beirute):
a pessoa em questão não era nem pobre nem rica, não era gorda nem magra, não se
pode dizer se estava ou não passando fome, estava num lugar histórico mas que
não sabemos exatamente onde ficava... Tem mais alguma conclusão a que não
chegamos?
Diante
do silêncio, a reunião deu-se por encerrada. Todos saíram da sala, mas
esqueceram ligado o aparelho que projetava a imagem fotográfica na parede. Após
longos minutos, o homem nu começou a se mexer – como fazem os peixes num
aquário muito pequeno – até que conseguiu sair da fotografia. Então, dirigiu-se
ao aparelho projetor, apertou um botão e desapareceu da sala.