12/29/2008

Eu, Mazagão (refeito).

Advertência: isso não é lirismo, é história (mito). Mazagão foi uma cidade-fortaleza na guerra contra os infiéis. Não deu certo. O Imperador decidiu transferir a cidade, inteira, da África para a Amazônia. Os habitantes não podiam escolher, eram sujeitos ao (súditos). Até que Dona Maria, a Louca, dez anos depois de viagens e muita escrotidão, decretou: vocês estão livres de Mazagão. Depois disso, deles (os súditos) não se tem mais notícia.

Isso aqui também foi escrito segundo os parâmetros da metodologia da resenha surrealista, resenhei o livro de Laurent Vidal. E pensando bem é lirismo sim, o velho esquema romântico de despertar/simpatizar/confundir-se com os mortos. Correspondências.



de repente você acorda
há menos de cinco minutos pensava que desta vez sim
conseguiria dormir,
mas de repente você acorda,

abra a janela e
observe o rebanho que mastiga o capim
e o som dos dentes e da saliva no verde: rio fluindo
rio de pedras polidas fluindo no esquecimento,

mas você não
você não consegue dormir porque sabe que se esconde
numa fortaleza, tão complicada e delicadamente construída,
que se tornou sua prisão desconhecida, em que você trafega como um rato,
um rato com memória,
um rato com nome próprio.

a infantaria ainda não foi inventada, você tem que se virar
com estes canhões enferrujados e um crucifixo

fodeu,

eles estão lá fora, mais maneiros e manjados que você
desta vez você se fodeu.
você vegeta como um cão de guarda entre os muros de pedra

- e só agora te avisaram.

eis o plano de fuga:

o Imperador ordena, não a dor, a dor de cada um
que se foda, dançando entre os dentes, a dor, o grito que silencia,
o silêncio que se grita, foda-se, o Imperador ordena
tome conta dos seus pertences, do seu álbum de fotografias,
guarde com zelo o nome da família, vele pela memória de Mazagão,
tome a canoa e saia pela porta minúscula que se insinua
à beira-mar. e não exulte, você não vai afundar no Lethes.
você vai é parar no meio de ruínas
numa cidade bolorenta, sangrando à virgem que se arrombou
num terremoto daqueles, uma puta caçada por Sacerdotes,
uma órfã sem eira nem beira, um convento derrubado,
a porra de uma cidade fodida, é pra onde você vai.
e não se misture com seus habitantes,
até nesta merda de mapa você só está de passagem.
eis o plano de fuga.

- e só agora te avisaram.

depois, agora você vai se cagar no meio do mar,
rumo aos trópicos, aqueles mesmos
em que centauros comem o verdadeiro fruto proibido,
lá permitido (as mangas-rosas altas e saradinhas),
terra das grandes cachoeiras e dos carimbos.

mar, que belo e verde!

só se for na beira da praia, lá dentro
a pura monotonia, os dentes da maresia,
que absolutamente não canta, saltam do verde e liso mar
e ferem seus olhos, lambem seus dentes, apodrecem sua boca,
uma cloaca, lábios de labirintite.

me fodi de novo.

oh, quanto sal, são lágrimas de um boçal.
finalmente você chega à nova morada:
madeira podre, infestação de formigas, casas caindo,
chuva torrencial, medo dos canibais que inexistem
mesmo assim te mordem, roem dentro de sua cabeça,
e você ainda a preserva, a memória de seu passado
presente de rato com nome próprio.

- Dona Maria, a Louca, mudou de idéia,
reconhece em você a triste marionete nas mãos do destino,
esta bosta de metáfora com luvas negras e frases-feitas desenhadas,
há de liberá-lo, pode ir, o mundo é seu.

12/23/2008

Meus votos para 2009, ou Bira em 2009 totemize o Jô (refeito)

Totemizar o teu equivalente, o teu semelhante, é coisa cotidiana, tarefa constante para te assegurares da posse dos objetos-fetiche sem os quais perderias a crença na realidade. A realidade! Precisas dela como o filtro solar das ondas televisivas, como o endereço dos livros nas bibliotecas, como as estatuetas de couro, em forma de vibradores inspirados na semana de arte moderna, carregadas em glória por teus inimigos que te nomeiam de O Ressentido.
Não te esqueças que outros escreverão teu nome na história e não como a biografia de um aristocrata do século XVIII vestido à moda Cauby Peixoto e sua máscara de creme e sua peruca de concreto armado, mas sim como um ponto indefinível e excremencial nas curvas de natalidade e mortalidade, o querido anônimo das ruas. Pensa na voz do Cid Moreira falando sobre ti, “o anônimo das ruas”.
Eis que totemizar o próprio objeto-fetiche é ato de revolta, de re-animalização, de criatividade. Não há liberdade, libertação é o que há e se o objeto-fetiche então passou a usar barba para posar de escritor com cara de Ernesto Hemingway, se ele espalha aos quatro ventos que é anarquista quando quer te transformar em tema de riso e escárnio para a platéia com cara de Itaú cultural diplomada nas Facus do Brasil afora, se ele se repete como quem foi levado a sério por anos a fio e precisa se repetir como as focas treinadas na decepção dos templos neobarrocos, então Bira! É hora de totemizá-lo com um sonoro vá tomar no cu! A pátria agradece, Bira.
Não te esqueças que és a massa de modelar informe dos festivais coordenados por William Bonner (sim, ele também é Jô e disse que não passas de um Homer Simpson analfa de pai mãe e Beto sentado no sofá), não te esqueças que és a cadela Baleia chutada pelos Fabianos das vielas sentimentais e viscerais de Gotham City (sim, também és um cão e sarnento por sinal, ainda bem Bira, ainda bem!), não te esqueças que és o joão ninguém exemplar.
Bira, por ti, por mim, por todos nós, manda o Jô praquele lugar!

Um abraço,

12/19/2008

Jornal de dezembro (é meio besta, mas vale pelo "espírito da época")

Mal as árvores começavam a fazer sombra e o pequeno circo, na praça central da pequena cidade, começava os trabalhos. Seus três funcionários, o mágico-trapezista-amestrador-de-pulgas, a assistente-dançarina(vai, ordinária! era o bordão da música)-atiradora-de-facas e o palhaço usavam a manhã pra limpar a sujeira do espetáculo noturno. O som de “Guerra dos Meninos” tomava a cidade de assalto, tão poderosamente que parecia subir dos paralelepípedos com o mormaço.

- Você sabe o que é dor? Ouça a “Guerra dos Meninos” de manhã cedo. O resto é metafísica (dizia o Sábio da Montanha).

Após a faxina, iam os três tomar seu banho no açougue (a única instituição da cidade que tinha água em abundância e que, por isso, alugava o chuveiro a visitantes).

Nisso tudo havia um porém. O palhaço era cabeludo. Detalhe que não seria perdoado pelos jovens do local.

- Os fetichistas do real sempre prefiriram totemizar o que já vem previamente rebaixado, agindo como antropófagos às avessas, treinados nos pontapés contra formigueiros. Mas é isso o que mantém o mundo em curto-circuito e o que garante que os senhores, coçando o queixo ou abanando a cabeça em sinal de aprovação, depois aplaudam minha palestra (dizia o psicanalista na Campanha Cultural da Cia Elétrica Exclamações!!).

O palhaço era cabeludo, como o Rei Bob Carlos. Imperdoável. Cansado com a mangação dos jovens da cidade, um dia ele resolveu ir ao banho com uma peixeira escondida na calça colorida. Nem esperou a primeira risadinha, foi logo furando o primeiro que alcançou.

O palhaço assassino fugiu correndo pela praia. A peixeira na mão. Ainda sujo de sangue, depois de muita correria, acabou batendo em minha porta. Fechei os olhos por causa da luz intensa.
Então uma canção ele me ensinou: lalalalalala, lalalalala, lalalalalalalalá, lalalalalala, lalalalalala, lalalalalalalalá

O tubarão da abjeção moral, o caracol monstruoso do idiotismo

No dia do martírio
Cristo ri
Aliviado

Os romanos inventaram
Uma cruz
De cristal líquido.

12/11/2008

A Alma é cheia de mistérios



A Alma é cheia de mistérios
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“São estranhos os atalhos noturnos do homem”. Eu abri aleatoriamente o livro de Trakl e havia esse verso escrito. Vi o adiantado da hora, e como o tempo agora também me corrói. Em plenos 40 anos de idade, vejo que percorri aqueles mesmos quartos marrons e púrpuras, e fui assombrado por aquelas mesmas borboletas mortíferas. Os poucos meses para um homem desempregado com tanta energia nas veias e um olhar mordaz na captura é quase um convite ao enforcamento. Então, num ATO de DESESPERO, coloquei um anúncio no jornal para simplesmente buscar uma forma de sobrevivência. O anúncio era simples e objetivo, eu havia colocado que procurava uma mulher mais velha que me sustentasse, disposto a satisfazer seus mais íntimos desejos. É verdade, que não houve muitas cartas a mim endereçadas. Cartas físicas, cartas eletrônicas, todas. Mas, por fim, escolhi uma carta que me chamou a atenção: - eu a havia escolhido e ela, a mim. Seu nome era Agda, uma mulher loura, 60 anos, um pouco mais, ainda atraente, com agudos olhos azuis. Seu corpo não era delicioso como de uma mulher jovem, mas o mais monstruoso eram seus notáveis caprichos. Ela me olhou, pela primeira vez, e disse-me: Você tem certeza? Disse a ela, que um homem sem rumo, é um homem sem coração, e vive de forma a bailar entre o penhasco e o punhal.
Ela riu discretamente e perguntou quanto tempo eu disporia para tê-la, os dias da semana, os feriados, as comemorações estúpidas. Ela sabia que eu era casado com uma mulher mais jovem, atraente. Disse que o tempo suficiente. Suficiente. Foi desse dia em diante, meu mais incrível inferno, onde já antes mergulhado, só recomeçaria a me afundar. Agda morava em uma casa suntuosa, tinha vários empregados, mas isso tudo, era como uma névoa em meu olhar, isso, simplesmente para mim não importava. Seria pago uma quantia medíocre mensalmente para os meus nobres serviços. Ela começou dizendo com uma voz grave, meio arrastada pelo fumo e álcool: - Primeiramente, quero que me dê um banho, lave-me bem, gosto de me sentir limpa, e gargalhou. Seque-me atentamente e enfie delicadamente a toalha em minha vagina. Corte minhas unhas dos pés, e beije cada dedo dos dois. Antes de eu dormir, penteie meus cabelos, e faça tranças bem miúdas, para eu parecer uma garotinha mimada e idiota. Agora vá, quero dormir. Dia seguinte, disse-me que os cheiros de uma mulher mais velha, ficam mais acres, e que o banho que lhe dei tinha sido uma obra porca. Você é um porquinho, deve se arrepender de ter feito um serviço mal feito. Estou com fome, sabe preparar algo para eu comer? Mas não como qualquer coisa, é melhor não se aventurar. Afinal, aqui quem come e bebe é você. Disse-me para ir até um grande armário e abrir uma porta mais escura. Eu abri e lá havia uma espécie de uma bacia de prata, larga e funda. Traga-a. Levante minhas saias, abaixe minha calcinha. Assim o fiz. Então, com destreza impressionante para idade, ficou de cócoras e mijou farta e quente na bacia. Meu porco imundo, agora beba. Eu a olhei e perguntei: - tudo? Ela disse, tudo que puder agüentar. Pus-me de joelhos e bebi aquele líquido amarelo, entre espesso e aguado. Levantei-me, enxuguei meus lábios e fixamente olhei em seus olhos azuis de monstro. Algo mais para hoje? Não, hoje você foi um bom menino. Ainda nesse dia fui à praia e vi que tudo era questão de sal, de sais, assim como o mar urina na boca dos surfistas, das sereias e das musas. E o natural, é bem verdade, é que pensamos, somos humilhados pela boca, assim como a fome, a privação, a dor e a perda. Num feriado santo, ela, sacrílega, queria que eu satisfizesse um capricho especial. Ordenou: meu nojento e servil parceiro, hoje a iguaria é especial. Após vários pratos que hoje comi, com condimentos picantes, variegadas bebidas, tantas sobremesas, tanto enfado, mentira e solidão, quero fazer uso do meu cu em sua boca bonita. Naquela posição, já antes verificada por mim, então do seu cu frouxo e terrível, jorrou sua merda entre sólida e diarréia líquida, e rápido, rápido, disse, venha pegar direto daqui, nada de bacia. Os jorros alcançaram-me boca, rosto, olhos. As golfadas que me vieram, após, foram tão pujantes quanto às dela, com meu vômito escuro e infinito.
Na praia, uma vez mais, eu via que na verdade as estrelas, e aquele azul de céu, era uma afronta de beleza, e que todo o céu vomita sua indiferença para nós, pobres diabos.
Durante meses, meus serviços foram rigorosamente cumpridos, não havia mais novidades. Tudo caiu na rotina. Antes era o vazio, e agora o vazio se reafirma. Não estava mais feliz, ou nunca estive, na verdade. Tomei a decisão lentamente, inexorável. Já conhecia todos os caminhos da casa da bruxa. Fui até uma gaveta da cômoda, onde ela guardava a afiada tesoura que eu cortava suas unhas. Lâmina longa, aguda. Enquanto ela dormia, fui até o centro da cama, sentei em seu ventre e desferi o golpe certeiro em seu coração. O sangue jorrou escuro, longe, demente. Então, calmamente, comecei a destripar inteira, cortando órgãos, a máscara fria do rosto, nervos, ligamentos. Aos pedaços, milhares, colori aquela casa mórbida. Sabia que não iria mais à praia. Dela, ficaria apenas a lembrança de um mar balouçando, ígneo ao sol, e como os poemas morreram, no bater de asas de gaivotas. Na outra gaveta, o revólver. E me dei um tiro na cabeça.




Anderson Dantas
Dezembro 2008
Eu moro numa Ilha.

12/08/2008

Não devemos reabrir velhas feridas

“Não devemos reabrir velhas feridas”[1]

1. A Universidade de Brasília tem dois monumentos horríveis: um em homenagem a John Lennon e outro em memória de Honestino Guimarães. Honestino é lembrado por ainda ser o único desaparecido político que estudou na UnB.

2. Há uns dez anos atrás, eu e alguns colegas estudantes da UnB gravamos uma entrevista com a mãe de Honestino, dona Maria Rosa. Na entrevista, ela nos falou sobre a mudança da família de Taberaí para Brasília, quando a cidade ainda estava em construção. Falou com orgulho do filho estudioso e promissor. Mesmo depois de tudo o que aconteceu, dona Maria Rosa ainda parecia se surpreender com a invasão da universidade por forças militares, em 1968. E já parecia cansada quando chegou a hora de nos contar a história da morte de seu marido num acidente de carro, quando Honestino já era um foragido. O enterro do pai de Honestino se converteu numa emboscada, o cemitério foi cercado por militares, mas o então jovem presidente da UNE conseguiu assistir à cerimônia e escapar ileso. Eu, numa demonstração de insensibilidade e inquietação justiceira, sugeri que a morte do pai de Honestino podia não ter sido casual. Dona Maria Rosa disse que achava impossível, mas com gestos que na verdade significavam não quero pensar nisso, tudo seria ainda mais absurdo. Fiquei envergonhado e resolvi não fazer mais comentários imbecis.

3. Minha família também saiu de Taberaí para Brasília. De fato, as duas famílias se mudaram juntas, a de dona Maria Rosa e a de Orayde, minha avó. Minha mãe conta que o meu avô quebrou algumas taças de cristal no chão da nova casa, na W3 Sul, porque esse ritual garantiria a felicidade dos recém-chegados.

4. Honestino era apaixonado por uma tia minha. Ela se casou com um latifundiário de Formosa. Minha mãe também fala sobre a visita que fez a Honestino na cadeia, numa de suas primeiras prisões. Ele estava com o corpo todo engessado por causa dos espancamentos. Quando eu era mais novo eu achava que ela era covarde, por ter visto a situação e nunca se envolver com política. Mas hoje eu conheço a minha covardia. Além disso, é fácil me imaginar um guerrilheiro de um passado para mim quase imaginário. E, principalmente, não sou nada pragmático. Estou mais para um zero à esquerda.

5. Outra história sobre Honestino, esta contada por meu pai. Mas, para entendê-la, é importante pensar numa universidade pequena, no meio de uma cidade em construção. E se ver na situação em que, num lugar com poucos estudantes, um colega simplesmente desaparece. Desaparecer podendo ser tanto uma hipérbole como um eufemismo. Morrer além da morte ou estar por aí, quase vivo como um zumbi. Pois bem, os estudantes de medicina se reuniram para decidir sobre uma greve em solidariedade a Honestino. A esmagadora maioira votou contra, sob o argumento de que isso atrapalharia sua vida profissional. Fico em dúvida entre duas alternativas: os piores sobreviveram, até mesmo os piores sempre sobrevivem; ou, numa saída à la Brecht, é mesmo lamentável um país que precisa de heróis.

6. Na entrevista, dona Maria Rosa e nós agíamos como se o Honestino tivesse sido o único torturado. Ela tinha motivos fortes para pensar assim, mas a gente não. Algum tempo depois, ela publicou um livro sobre a história do filho, com o mesmo teor. No livro, dona Maria Rosa conta que logo após o desaparecimento de Honestino, ela iniciou uma peregrinação em sua procura. Até que finalmente conseguiu o direito de visitar o filho no natal, na suposição de que ele estava preso em Brasília. O General Comandante do Primeiro Exécito concedeu o privilégio, depois de verificar uma série de documentos. Dona Maria Rosa ainda teve o direito de levar outros familiares, comidas e roupas para a ceia de natal. No momento da visita, porém, todos foram chamados, um por um, menos eles, os parentes de Honestino. Então, o oficial deu uma olhada nos papéis e verificou o erro. Honestino não estava lá.

7. Isso tudo tem a ver com despersonalização, destruição pela via do absurdo, aniquilação da vontade. É uma falta de sentido construída tecnicamente, com o auxílio de psicólogos.

8. Honestino gostava de poesia. Numa de suas cartas ao pai, publicadas no livro de dona Maria Rosa, ele copiou aquele poema do Drummond, “a injustiça não se resolve / à sombra do mundo errado / murmuraste um protesto tímido / mas virão outros”. Em outra carta, já na clandestinidade, ele cita o Torquato Neto “não era um anjo torto / era um anjo muito louco / com asas de avião.” Alguns anos mais tarde, dona Maria Rosa reencontraria seu filho, numa experiência espiritual. Guiada por doze espíritos orientais vestidos com túnicas brancas, ela chegou à cela em que jazia o espírito desencarnado de Honestino. Nas palavras de dona Maria Rosa, os guias teriam ordenado: “- Faça com ele o mesmo que fez com os demais. E assim procedi, pois tinha consciência de que se não o fizesse, eu poderia prejudicá-lo e você perderia a oportunidade do socorro. Dei-lhe o passe e você despertou, como se acordasse de um sono profundo, porém natural. Abriu seus olhos e voltei-me, sorriu e me abraçou, deitando sua cabeça no meu ombro – gesto natural seu. Parecia que estava acordando depois de uma longa noite de sono; anulara-se, finalmente, o grande espaço de dor e de terror.”



[1] Trecho de uma nota expedida pela Comunicação Social do Exército.

12/07/2008

nº 93

Dias que se erguem feito muros, muito
altos, diques, e o chão
calcinado ao rés dos movimentos
da memória, longo caminho
a pé, só lhe restou
beber o veneno, mergulhar
no veneno, sem antídoto
à mão, sem cartas
na manga, e depois mijar o veneno de volta
nos muros misturado
às secreções do corpo,
seu corpo, um dia
depois do outro, esperando
minar as bases, contaminar, os olhos
acorrentados no dever
de ver. “Tudo
está aí
”, ele disse, “pura rasura”,
quando escrevia, o coração
a nu, ruína
da paixão de grafitar a paisagem, seu apocalipse
portátil.

(das "Notas Marginais")

12/06/2008

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações


Sentido (s.m.)
Miragem.

Sublime (adj.)
Na contabilidade geral que você possa fazer de tudo que o cerca, não há conta onde possa ser lançada esta incrível elaboração da ficção.

Valor (s.m.)
Ilusão. Nada vale nada. Nem você.

12/04/2008

Mais notícias de Udi, ou Aí é que você se engana







Um rio foi picotado e circula debaixo do asfalto com dificuldade, os canos são suas pernas
Mecânicas ao passo que ele anda em Udi
Como quem se despede.

O nome do rio é método e tem comigo uma porção de citações convenientes pra nos fazer acreditar que nascemos na pior das eras já que você não pode se contentar com a irrelevância e o merecido esquecimento, e o outro assunto sério além da teoria é a política e aí é preciso admitir que mesmo não sendo fracassado Hugo Chávez não tenho o charme das derrotas de Che Guevara e eu não me convenço dele mesmo com o boné venezuelano trazido pelo seu amigo, o último comunista
Depois da morte de Aldo Rebelo (você morreu engasgado com os trechos de Gilberto Freyre e Eduardo Prado, mais ácaros de plenário e a hemorróida na língua).

Mas, falando em filosofia barata poderia dizer que isto não é um charuto e que nossa última revolução foi implantar o comunismo no colégio dos tarados salesianos e do professor de religão que queria ver o “terceiro olho” dos alunos,
Pelo menos o ateísmo livrou meu rabo.
Depois disso a queda foi visível e minha verdade
É a farsa, revolvida por pequenas e cirúrgicas
Auto-sabotagens, deixar claro que não tenho meu estilo
Meu estilo é cheio de si (quer dizer, de uma terceira pessoa, do alheio).

Mas nem isso dá pra se levar a sério, a sua consciência perversa é uma profissão
De fé como outra qualquer, um amontoado de clichês, nada mais, literatura não é o álibi perfeito e ressentimento não é autenticidade, não sou eu aqui, entendeu?, é a cópia da minha cópia e você também é a cópia de uma idéia qualquer.

Complexo de Max Weber, Melancolia Uspiana com o Fim dos Tempos, Neurastenia do Escritor que só Consegue se Repetir, Megalomania Deuleziana, Esquizofrenia do Legislador Platônico, Blogueiros Abúlicos, Histeria do Reacionário Afônico, Euforia do Ego Dilacerado pelos Mil Acessos, Nacional-Desenvolvimentismo Congênito Ambidestro, Fobia de Todos os Tipos,

Alguma coisa se salva entre a gente.

12/02/2008

Notícias de Uberlândia II e I

Performances Performáticas ou Notícias de Uberlândia II (ou melhor, de uma ida à Uberlândia)

Sou um terrorista com ética? (há algum sem?)

Assim com o fundador do monoteísmo eu pergunto a Ele:

Quem é você? Eu sou?

Paro na bomba: não há gás! Só explosão!

Estradas de andarilhos solitários, esmos: a esperar a próxima batida?

Sou um ser(tãozinho) em (de)composição? Afinais-nos o Senhor(es)! Não nós leve as batidas! Ou será neste caminho o nosso fim? De quem será hoje?

Talvez um ser musical!

Se alguém matou deuses e deus eu tenho no meu íntimo

A pretensão de matar a filosofia!

Delírios de um iconoclasta:

Contra o pensar e o não pensar!

Contra o racionalismo irracional e o irracionalismo racional!

Contra a superficialidade profunda e a profundidade superficial!

Contra o nomadismo sedentário e o sedentarismo nômade!

Viva os jogos de linguagens? Os jogos poéticos? Os jogos? Aprendendo a jogar? (A amar com certeza não?)

Contra Apolo e Dionísio!

Viva o Aleph, Lete, Funes e o Perdão

Ou simplesmente o céu azul: horizonte da salvação do viajante!

E eventualmente o sexo dos pássaros...

Viva a per(ser)

Forma

mance

Se kant pergunta: o q. é o pensar?

Se Heiddeger (ou algo assim) pergunta: o q. é o pensar?

Se Foucault pergunta: o q. é o pensar

(Fonte: Mundo de Sófia)

O pastiche, o ladrão, bricoleur e o caminhoneiro perguntam:

O que é o dançar?

Dança de boleais (que tragicamente podem cair sobre nós)

O que falta ao mundo é a dança!

Menos pensar, mais poesia, menos celular G3 e mais o quê (pergunto aos românticos céticos e aos céticos românticos)?

Talvez uma das faltas seja mais gás do dançar

Dervixe-capoeira e da capoeira-dervixe!

Nós pós-intra-modernos e pós-intra-iluminista e pós-intra-murodeberlim

Somos todos uns porras-loucas?

(meu inconsciente me diz que na verdade sou um egoísta-narciso pós-moderno!)

Porras-loucas dançantes em busca de novas fecundações?

Dervi (xes)res porvires

Loucos

Homens-tempo: o delírio se encarnou em mim? Ou ninguém confessa? (São João da Cruz me salva se você existir!)

Não consegui chegar onde queria...

Mas estou contente afinal não penso e não ando de carro: faço performances, rs.

Pô, pó(?)

Iiiiiiiiiii

É ê e

Zesssssssssss.

Ps1: o problema é que a minha ex e minha psy dizem q. eu não levo nda a sério. A começar por mim.... Só rindo?

Ps2: escrito e psicografado por meio de metodologia quase-kamikaze atrás de caminhões na 262 postado no Blog Língua Epistolar por meio de um lap tope dell(rei?) através da tecnologia 3g na churrascaria Santa Catarina em Araxá.

Ps3: ainda falta 200km.

Para quem chegou até aqui e não leu o I:

Procura-se novos amigos

sou um escritor

sou um escritor?

escrevo o quê?

vivo do passado

mas vivo no presente

aproveito e sofro

desta condição

só e otário?

solitário mas não só?

descobrindo, encobrindo e

indo para os extremos

oestes

eis eu hoje

bebendo uma cerveja

em Uberlândia: Udi et orbi!

M.

Chover no molhado

E é só
Chover no molhado.

As palavras escorrem
Na luz líquida
Do meu computador,
As palavras evaporam
E eu não tenho guarda-chuva
Pra te proteger das gotas
Que caem sobre o desde sempre molhado
Tecalque, teclaque, teclhado, brincadeiras
Redivivas de uma vanguarda que desde meus avós
Só chove no molhado, baby.

Já vi um lugar em que as gotas
De água batendo na água do rio
Faiscavam como se os peixes
Fossem de prata, e não foi
Num filme de walt disney.
Agora, Madame de Saint-Ange
É síndica do meu prédio & me
Diz que sou um anjo e com asas
Porque digo bom dia aos mendigos
& Dolmancé é meu vizinho de parede
& coordena a comissão de diárias
E passagens aéreas e me faz uma reserva
Num hotel de João Pessoa
Pra que, entre conversas sobre a destruição de Pompéia
E a questão cultural do rolete de porco
Eu possa dormir no auditório
Debaixo da mesa do orador, leitor
De Sun Tzu, Paulo Coelho e Washington Olivetto
& Dolmancé que é meu vizinho e meu aluno
E organizador do natal da família
Me diz que por isso eu sou um santo do tipo
Otário que dorme no auditório,
No supositório da cadeira giratória,
Ó simbolistas do apocalipse sem fim...

Mas, menina, molhe seus cabelos
Nessa tela que é sempre e sempre será
Chover no molhado e me esqueça
E de vez em quando se lembre
Que me esqueceu e me deixe
Chover no molhado e me esqueça
De suas palavras abrasivas, e só
Não me diga que dessa água não beberei
Porque tudo é chat, tudo é comments
E a dona poesia anda ensopada
Por temporais de neoparnasianos, neobarrocos,
Pós-concretistas e viscerais
De fim de fila.

11/30/2008

Fantasia fantasmagórica

você é um fantasma
e uma fantasia
em minha vida.

sonho e pesadelo,
você dorme e ressuscita.
desperta e me assusta: ressuscita o passado,
o sentimento guardado e adormecido.

como um tufão, furacão, terremoto
eu tremo
me perco em minha perdição

você surge inesperada esperando
a minha espera
espera dormida, sonhada e silenciosa.

você surge me assusta
me move, mergulho

você tem ritmo
vai e vem

eu e meu coração a deriva

11/29/2008

Algumas brincadeiras com palavras (ou um adolescente aprendendo a escrever)

1º. Ato

O tempo dos Ipês

Em pleno ritual sagrado
as palavras seguintes baixaram
como uma pomba-gira.

Hoje de supetão minha filha perguntou:
"o que é o tempo"?
ela disse que para ela o tempo era o relógio
mesmo antes do relógio mecânico já existia o de
sol ela me disse.
O tempo é o relógio? (acho que ela queria me perguntar também)

Tentei explicar que sim e não. Fiquei sem saber o que fazer
foi aí que disse: o tempo são as flores do Ipê amarelo.
O tempo é relativo: qual é o tempo das flores do Ipê amarelo?
Acho que ela pensou: as horas do relógio do Ipê amarelo duram um ano
para florir,
os minutos uns meses florindo e os segundos são as flores caindo.

Fiquei com a imagem e a pergunta:
qual é o tempo dos Ipês?
qual é o tempo das suas flores?
belas flores
que florem o céu e a terra

Não há palavras e explicações!
queria ensiná-la a sentir os tempos
queria sentir os tempos

Pelo menos aprendi a desconfiar
e desconfio que o tempo caleidoscópico
dos Ipês é:
amarelo, branco, roxo e madeira.

2º. Ato

Me pedes que fale

Fale de sonhos

Vale a pena ter esperança em sonhar sobre ruínas?

Sem dúvida, o que são dos sonhos sem ruínas

E das runas sem ruínas.

Esperar a esperança, "desesperar jamais".

On toujours sait bien et n'est sais rien.

J'ai sais pas.

On moins il faut essayer d'être vivant.

C'est toujours : tous jours

Jolie la poésie en français mélange ( ?) avec le portugais ?

Ô pessoa e Pessoa ! essa alma minha partida, quer partir

Quer retornar a aparência. O devir me chama pela chama presente ausente

De um ser sendo ou nada.

A angústia do viver me contagia de forma a não saber o que sonhar.

Sonho os sonhos. Talvez meus sonhos sejam esperanças de pesadelos melhores?

Estou fora da morbidez. Estou dentro da espera, expectativa.

O problema é que não sei o que sou, nem vou saber.

O problema é que não sei o que quero.

Às vezes acho que não poderei ser feliz com expectativas pequeno burguês (também minhas) de uma família feliz.

Talvez a esperança resida, como você disse (dizendo das minhas indecisões, da minha incompletude completa),

Nos gatos.

Gatunamente para dentro e para fora. Vivendo o devir temporal da existência, felinamente com um simples e irônico

Só riso.

Só rindo mesmo!

Essas palavras a esmos são o que sou agora, hoje. Um homem

Um projeto de homem perdido com as palavras, a fim de ser

Apenas um pequeno burguês.

Em busca da felicidade da família.

Mas, sobretudo em busca do amor. Da completude incompleta eternamente do amor.

Amor: onde encontrá-lo? Em mim? Em ti? No universo?

Não sei, mas sairei pelas ruas agora em busca da resposta dos gatos.

Miau!

Desejaria ser

Mais irresponsável? Mais centrado? Mais eu? Cuida-te de ti: ô pobre mortal!

A mesma poesia que corre

Falta

Eterna falta!

3º. Ato

tem jeito que quer
acreditar
creditar
no amor

amor eu te perguntaria: vc é uma deusa traiçoeira?
vc é algo que se possa acreditar?
o que distingue vc da paixão?
por alguns amam e outros só tentam?
é preciso deixar nascer?

me dizem que é karma dessa vida e de outras
não tenho tino para o amor (a paixão me domina?)

quem queria acreditar no amor?
me falaram que queriam acreditar em ti: é possível?
é preciso ser crente?

não sabemos quase nada de ti amor,
mas sabemos que quando vc aparece
é a coisa mais linda que se viu passar

mas vc só passa? ou é possível permanecer?
parece que há alguns segredos que só alguns sabem
será que se eu for a terapia poderei começar a amar?

me diz aí amor pois tem uma amiga
que diz que quer
acreditar em ti

eu pelo menos to precisando saldar minha dívida contigo
para só então começar a usufruir de algum crédito
ho vida justa injusta me pq quero tanto descobrir
os segredos amor

se que é que há
haverás?

4º. Ato

> ENCONTRO COM O INSTANTE
> 
> tem certos dias que se encontra
> tem certos dias que se desencontra
> e, ainda, tem certos dias que se reencontra.
> 
> o melhor, quase sempre, é quando se encontra
> desencontra
> e reencontra
> de um só vez (dans seule coupe e couple!).
> 
> o sol que nascia com minha chegada ( à la maison)
> indicia que sim.
> indícios são os detalhes que tornam a beleza da vida tão
> bela como as muitas e relativas renascenças.
> 
> porém, só tempo
> universal, absoluto, humano e relativo
> dirá algo sobre o devir.
> 
> por enquanto:
> foi bom esse encontro
> quase-marcado.
> 
> o instante, essa partícula de tempo,
> é que faz que os encontros sejam simplesmente.
> eles (instantes e encontros)
> não são eternos como as especulativas bolsas femininas
> são apenas o vento a solfejar um perfume.

5º. Ato

O retorno da grande narrativa, ou as 3 ordens da cultura e da política

XIX Utilitarismo[1]



XX Utilitarianismo[2]



XXI Futilitarismo[3]













[1] Marx, Manifesto Comunista: “Rasgou o sentimentalsimo feudal com a tesoura do cálculo egoísta. Agitação permanente nas pirâmides do Egito, artlharia pesada a preços módicos, construção inacabada da Utopanopticopia”
[2] Alceu amoroso lima. “O suicídio da burguesia”: “Olhares furtivos e acrobáticos flertando com a morte, durante e depois da missa. Cirurgiões usando serrotes e anestésicos”
[3] Washington Olivetto, Google. “Mais difícil do que ter uma grande idéia é reconhecer uma grande idéia. Especialmente se for dos outros!” (rsrsrs...)

11/21/2008

Santidade a preços imperdíveis. Confira!

Melhor não ter nascido seria
Melhor ser esquecido, historiadores
Do futuro vomitarão este miasma
Pra cima dos inocentes?

O encanamento enferrujado sob
As avenidas rasgadas como planícies
No meio de um vale desértico
Se misturou como um enxerto
Em suas veias, querida.

Quantas derrotas até chegar aqui,
Você vive nos parâmetros
Dessa metodologia, ancorada.

Mas, se você guarda as ofensas
Como um tesouro? Como você gosta de dizer
Elas te permitem fazer um gancho
Com o mundo & se quando você
Abre a boca se nota que a saliva
Foi substituída pela lama que restou
Da devastação do cerrado, querida,
Em suas lentas, pegajosas palavras?

Eu sei, não é você
Nem sou eu, a culpa é do tempo,
Fazemos bem em ser esquecidos
Enterrados em pleno deserto, ao invés
De cemitérios.
Nunca foi tão fácil ser confundido
Com anjos, você suspira, parece ter se esquecido
Que você mesma cuspiu lama
Nas asas encardidas de uma coisa parecida.

11/17/2008

O retorno de Maria Bentham

Você não leu Jeremy Bentham? Leu sim. Se você passou por uma escola, hospício,
hospital, quartel ou presídio, acredite: você já leu Bentham. Mais ainda, se você acredita que felicidade tem a ver com a máquina de calcular prazeres e dores que você carrega no bolso e se espera a felicidade à sombra do Legislador, você é Jeremy Bentham. No caso tropical, com uma pitada de sentimentalismo, você migrou para outra identidade, a de Maria Bentham. Apresento aqui a tradução do poeminha mnemotécnico que, segundo Bentham, todo bom governante deveria saber de cor. Pense no sentido amplo de governo, uma pessoa sem governo, um carro desgovernado, ou para seu governo você já leu isso e aquilo.


O poeminha:

“Intense, long, certain, speedy, fruitful, pure –
Such marks in pleasures and pains endure.
Such pleasures seek, if private be thy end;
If it be public, wide let them extend.
Such pains avoid, wichever be thy view
If pains must come, let them extend to few.”




A tradução:

Intenso, duradouro, certeiro, fecundo
Que venha logo o prazer, e puro.
A dor, assim, exconjuro!
Pra seu governo a punheta
Não deve passar de dez minutos
Se não, na certa é sarjeta.
No tempo ótimo, a punheta
Combate o câncer de próstata
E limpa do cabelo a seborréia.
Punheta não causa gonorréia
E acalma os nervos do apóstata

Punheta cura a fúria do capeta.

(Incuráveis, ao bêbado
E aos fornicadores
Que misturam os prazeres com as dores
De nada vale o bom panótico).

11/16/2008

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Óculos (s.m.)
Artefato destinado a corrigir a visão. É, portanto, uma poderosa metáfora sobre a apreensão do real. Se você faz uso de lentes para perto e necessita olhar para longe, vê um horizonte distorcido, nebuloso. Se está portando lentes para longe e deseja ler, as letras resultam incompreensíveis (para aqueles que já apresentam este importante sinal de decrepitude chamado presbiopia). Se, para evitar esta situação dialética, você opta por lentes multifocais, tem que abdicar de olhar para os lados: qualquer coisa fora de um estreito corredor ao centro das lentes se lhe afigurará como um estranho baile de espectros, e aí tem que conformar a realidade a esta visada estreita, eliminando uma enorme parcela de informações que, muitas vezes, fazem a diferença. Depois de considerar cuidadosamente estas três opções, você percebe que está sempre enganado. Deve ser por isso que muitas pessoas terminam por sucumbir a formas variadas de anestesia, do ópio à programação televisiva, passando pelo álcool, pelo consumismo, pelo sexo ou pela literatura - como Flaubert, quando dizia que o único meio de suportar a existência é aturdir-se na literatura como numa orgia perpétua. Alguns tentam polarizar os efeitos de determinados anestésicos, associando-os dois a dois, ou mais. Todo o referido acima vale também para as lentes de contato, com o desconforto adicional de ter que enfiar o dedo no olho.

11/11/2008

O curso-fantasma

Um fantasma ensinando conceitos
Vazios a outros fantasmas,
Na boca do estômago de um grande fantasma, ou seja

O grande fantasma habitado
Por fantasmas contabilistas, fantasmas coletores de palavras
Mortas na respiração de um deus quase morto,
O grande animal envenenado
Com carne e vidro moído, ou seja

Vidro moído, a matéria-prima transparente
Na fabricação dos fantasmas, a multidão
Delirante dos fantasmas, a hemorragia divina,
As pessoas de vidro,
Os conceitos vazios, as palavras
Mortas na ponta da língua do fantasma
Orador e suas palavras de vidro moído, ou seja

Tudo isso
Colado no suor das pequenas metrópoles delirantes
Fantasmas, pesadelos de fantasmas herdeiros
De um fantasma que enterra fantasmas.

11/05/2008

nº 92




Fatos, só eles
são sagrados – “por isto aspiro
ao profano
”, ele disse, negociando
outra vez no intervalo
entre o espírito e a carne, nas margens
do corpo, ali
onde o desejo pulsa desesperado por fazer
sentido , lugar
abandonado tanto
tempo atrás, num dia
que envelheceu junto ao seu registro, história,
lembrança, memória de dor
degenerando células em alguma parte
do seu corpo, enlouquecendo
outra vez algumas doses acima, bem acima
do real.

A memória tem seu preço

A memória não mora
Na cabeça, é na boca
Do estômago
Que se come a memória.

Pergunte ao gato
Que persegue um besouro
A lógica da alegria –
Ele sabe o motivo.
Mas logo esquece o que sabe
E esquece que esquece
E vive fora do tempo
Das suas perguntas e não entende
Porque você lambe o osso
Das lembranças, como uma besta
Faminta.

É no vômito
Criado pela bílis dos mercenários
Injetado como soro intravenoso
Em seu fígado
Que se respira a memória, e tem mais

Você nunca vai se esquecer disso:

Por um precinho camarada os mercenários jogarão o gato morto num aterro qualquer de Cuberlândia, em troca você leva um buraco pesado como chumbo entubado em seu esôfago

como recordação.

11/03/2008

Um cão agoniza na rua, em frente à janela da sala coletiva da unversidade onde uso o computador. Até me esqueço da tagarelice em pequenos chiados que me cercam aqui, em meio a esta estética decadente de computadores velhos como vestígios arqueológicos precoces, usados por muitas mãos. Porque o cão tem os olhos amarelos, a língua esbranquiçada e a respiração funda de quem morre lentamente. Dolorosamente. Sua pele lacerada deve estar cheia de carrapatos, eles têm o dorso tatuado com listras negras que formam pequenos roteiros geográficos, pontilhados de flores amarelas. A pele do cão está grudada no asfalto. Sei que nas poucas vezes em que ele tentou se movimentar, o asfalto arrancou um bom pedaço de couro, e mais uma ferida se abriu na pele do cão. Eu sinto a dor deste cão porque seus nervos se misturaram aos nervos do asfalto e o asfalto está ligado a mim por meio dos raios de calor constantemente jogados na minha cabeça. Eu sinto a dor deste cão e por alguns momentos sinto que sou este cão. Da mesma forma que o asfalto, o sol também brinca de arrancar a dor da minha pele. Também vivo lentamente, ou morro lentamente o que dá no mesmo.

11/01/2008

nº 91


Lugar nenhum. “Se as palavras tocassem
o real (servido sempre
em postas
”, ele disse, “às vezes
quente como os hormônios turbilhonando
pelas veias) só me achariam
nas entrelinhas, fora
de tudo, ou
nem aí, deslocado
qualquer sentido que se deposita
sobre as coisas
”. Foi quando,
abraçado aos fatos, você formulava
outra religião com os estilhaços que lhe vinham
olhos adentro, cravados um a um
na carne da alma, carne
de um nome, palavra, se isso for
a alma – desprezando
as distorções da imaginação até devastar
todas as cenas, até
não sobrar outra escolha a não ser o deserto
para erigir o templo, num
prolongado silêncio entre
as miragens.
(das "Notas Marginais")

10/30/2008

lugar



AQUI,
margem de tudo
trono apodrecido de juncos
absurdo de águas

não posso escrever limpidamente
pois meu pensamento
é uma mistura
de mar, ressaca e lodo

meio deitado
ou de joelhos
na areia, presumo
azuis roxos e lábios

ave em esgar,
um ramalhete de peixes.

sem emprego
sem nome
sem espada

nem guerreiros para comandar
sem escudo
sem estupro

nenhum olho de rei
para comer.



Ilha, 29 Out. 2008.

10/27/2008

Coisa à toa

Mastigando perdas
Como se fossem pedras
Dentadas, lâminas polidas
Em cristalina
Água de esgoto, ou

Entre peixe e refração,
Anzol banzo
Quando estou onde estive
E não sou, &, enfim

Aquário de canibais
Ornamentais
É a cidade submersa
Em pensamentos alheios,
Cheia de si, e daí
Saio de mim.

Caio na real. E daí.

A cidade está fora de si.

10/25/2008

nº 89


Recriar o mundo à sua imagem, delírio,
câmara escura, tempestades
de sinapses, a 140 pelo asfalto ou
entre os espelhos do paraíso, o chão
do seu pensamento batido
como uma lua (superfícies
geladas) por detritos
em dispersão, no vazio
das coisas, quando não há
saída ou passaporte neste exílio
de desertos, via expressa sem
acostamento.

(das "Notas Marginais")

10/24/2008

O criador de galinhas (mais sobre cidades)

Este aqui já tem uns anos. É sobre a cidade de Franca
+ leitura das cartas do Maquiavel.



1.
O dia esmigalha a noite
a noite retalha o dia
num vapor perfuro-cortante
insones olhos de areia,
lunaquáticos sob a névoa,
saindo pra dentro do lado de cá,
enquanto o criador de galinhas
parece vergar sob o peso da mala
como se mãos saídas de alguma caverna
algum poço de escuridão e palavras
e notas de rodapé e citações entretecidas
puxassem a mala ao chão,
como se a sombra, o pó e o nada
que preenchiam a mala
quisessem morrer, numa espiral
sangrar por ali mesmo
sobre o asfalto ou o chão com cheiro de flores químicas:

“papel sobre papel pesa mais do que pedra
mais do que chumbo
e não é por causa das palavras, que são etéreas,
mesmo as mais piegas,
é a matéria-prima vegetal,
sua capacidade de se espalhar no espaço,
de tomar tudo de assalto;
não é o saber que torna grave
o coração do pensador
é a brutal gravidade das coisas:
não são sem sentido os pesadelos de velhos bibliotecários
morrendo soterrados em livros
que despencaram das estantes”

matuta aquele que bem gostaria
de ser um mero criador de galinhas
enquanto conversa com o porteiro do hotel,
conversas simples e bucólicas
sobre um filho viciado, outro advogado,
a família de médicos e dentistas:

“Que a morte caia sobre todas as múmias egípcias!
E a professora maldita que me fez decorar
a lista dos malditos presidentes desta Merdepública!”
Como é bom falar com o povo simples,
saído das neo-pastorais policialescas puritano-paulistas,
embora este,
diz pra si mesmo o criador de galinhas,
não passe do figurante de cocheiro no Banquete dos Canalhocratas.


2.
Uma mula
Mais a mala
Uma roupa de veludo
E uma faca catalã
Um sobretudo
Mas sobretudo um porém,
esta cidade detona o meu desejo:
em cada esquina um príncipe maquiavélico
de cabelo nem preto nem branco, mas cinza turvo,
com pulgas passeando sobre a calvície evidente,
e no meio da testa uma cicatriz vermelha,
(marca visível dos proscritos enforcados nos postes públicos)
os olhos úmidos, de tamanhos diferentes,
o nariz protuberante, cheio de muco,
a boca torta como a de um tirano qualquer,
Um Lorenzo de Garrastazu Medici Vargas da Silva Bush,
de queixo pontudo e curvo,
acusando-me da conspiração
de que sou vítima
entregando-me a brutal carcereiro
intitulado macunaíma.

- Bom mesmo era criar galinhas...

Suspiro com saudade ao porteiro do hotel.
Mas de noite, fechado em meu quarto sujo,
quando abro minha mala
ela ganha a leveza de pássaros brancos
folhas de papel ao vento
munidas de telescópios pra imaginação,
cheias de vozes de antigos incendiários mortos,
pássaros conspiradores, sabotadores, bêbados,
exilados,
malditos como um príncipe esquecido num pedaço de papel.

10/22/2008

nº 88





Toda cidade tem os abismos que você necessita, olhos
errantes, bocas, labirintos, mapas de engano, cada vez
mais fundo, abandonadas
pra sempre todas as ilusões de quem vê
metafísica na pedra – paredes
não são coisa do espírito, cara, são
carne sem hormônios, mero cenário, fundo
disperso, e no palco a cena é do sangue que pulsa e invade
os tecidos, sem direção, aleatório como os cardumes,
como as moscas.

10/19/2008

2 anos


Pessoal, salvo engano fazemos dois anos de blog este mês. Masé reaparecendo com um poema dos bons, Anderson e Eliana meio longe (tudo bem com vcs?), Löis desaparecido. Daniel e eu teimosos como nunca.

No entanto acho que vou comemorar, dois anos são dois anos. E estamos indo para a marca de 15000 acessos, a maioria dos quais de nós mesmos, fora os nossos 2,5 inusitados leitores espalhados pela blogosfera - eram 3,5, mas um parece que, caindo em si, desistiu....Estes sim -os 2,5- merecem um troféu.....
Proponho que eles se cadastrem (se é que se revelarem leitores desta espelunca não vai lhe queimar irremediavelmente o próprio filme...), para que enviemos mensalmente para seus endereços uma mariola especial, daquelas de tacho, sem açúcar grudadinho por cima. Pensei também num picolé "Dragão Chinês", mas chegaria derretido...


abraços/beijos a todos os epistolares e leitores.


nº 21




Confessar, agora você pode confessar
que nada estava claro.
Discreto, mascarado, deu rasantes sobre o pântano
de sinais até beber a água escura,
lodosa, e ainda traz lama
em sua asa.

Pode ser que seja ela a cura.

(das "Notas Marginais")

10/18/2008

Relatório de mais um colóquio (ou, Porque trabalhar como caixa bancário deve ser mais gratificante)

“Começando pelos verbos: atravessar, repensar, instigar, inserido e focar.”

“é legal que o Vesúvio tenha inserido suas lavas em Pompéia, porque agora temos um sítio arqueológico intacto e instigante”

“a lava preservou o salão das pinturas eróticas”

“mas focou a pica do prefeito de Pompéia, pão e circo de auditório cultural”

“e se o Vesúvio tivesse estourado sobre Uberlândia, repensaríamos os vestígios que restariam, por exemplo a lista telefônica (o instigante mapeamento da cidade)
AÇOUGUES/ACRÍLICO AÇÚCAR/ADVOGADOS
ADVOGADOS/ALARMES AR/AREIA BISCOITOS/BLOQUEADORES BOMBAS/BOUTIQUES CABELEIREIROS/CAÇA
CAMINHÕES/CAMISETAS CHURRASQUEIRAS/CIRURGIÕES COFRES/COLCHÕES CONTROLE/CÓPIAS CÓPIAS/CORTINAS DEDETIZAÇÃO/DEMOLIÇÕES DESENTUMPIMENTO/DIGITAÇÃO ENTULHO/ENXOVAIS ESCOLAS/ESPUMAS
EVENTOS/FACULDADES FACULDADES/FANTASIAS
FERRO/FESTAS FLORICULTURAS/FOGÕES
FRANGOS/FUNERAIS GUINDASTES/HOSPITAIS

LIMPEZA/LINGERIE MÉDICOS/METAIS
MOTOCICLETAS/MOTOSSERAS NOIVAS/ÓCULOS

PAPELARIAS/PÁRA-CHOQUES PROTÉTICOS/PSICÓLOGOS
SELF/SEX TANQUES/TATUAGENS TERAPIA/TERRAPLANAGEM TURISMO/ULTRASSONOGRAFIA

VIGILÂNCIA/ZÍPERES”

“os cus carbonizados de Pompéia. Mas, como um buraco pode ser carbonizado? Tem aí um problema de método.”

“O cu é uma mistura de carne e veias extremamente sensível, você só focou no buraco. É isso o que aconteceria se o Vesúvio explodisse em Cuberlândia”

“O sonho do hospital próprio”

“Boca inserida na cloaca do caixa eletrônico: finalizando, finalizando, finalizando.”

“E nunca perder o gancho de vista”

10/12/2008

A viagem de Jean-Marie

Rio. Ipanema. Começo de agosto.
Ele chega
de avião.
O esforço da máquina
as rodas raspam o chão
a borracha adere ao asfalto.
Depois o carro atravessa
a cidade engarrafa as minúsculas
os casebres. O túnel
os grandes edifícios em torno
freiam o ar o som dilata
ao longe as montanhas iluminadas invadem
estraçalham a placidez
da lagoa.
Ele carrega o centro em si uma luz branca atravessa seus poros.
Ele ainda não chegou. Carrega sua
lógica intacta. A mala
cada peça de roupa usada guardará por um tempo o suor.
O trabalho com as mãos. O corpo. Perturbado.
E quando ele voltar
os olhos para trás
suas mãos trêmulas
resto de areia sob as unhas.
Quando ele voltar
então não haverá mais nada
entre ele e nós.


Quando ele voltar
a cabeça ainda para trás
O corpo que atravessou as ruas
passou as pernas pela água
salgada.


Quando ele voltar
retomará sua vida regular
seu croissant molhado no café
com leite.
Sua vida regular estará ainda
mais regularizada
a cabeça já estará virada
a origem.
Quando ele voltar
a cabeça ainda um pouco para trás
a enorme foto no metrô
a água azul
a areia branca longe
pelas mãos.

10/10/2008

pulp poetry

1.
Entre os meus planos mais secretos está o de me tornar assassino serial. Sei que isso não encontra eco nas teses de Freud, segundo as quais todo homem deseja (e precisa, metaforicamente) matar o pai – o meu resolveu aliviar este trabalho para mim: se suicidou, lenta e dolorosamente, como se estivesse coadjuvando um filme B. Anos depois descobri que todos estão, mesmo eu e você.

2.
Numa de minhas vidas paralelas escrevo e publico revistas populares com informações rápidas, banais e desnecessárias. Como quase toda literatura.

3.
No capítulo “Ditados Cretinos” escrevi à mão: “os olhos são as janelas da alma” e “os olhos são o espelho do mundo”. Para o primeiro caso soterrar cuidadosamente cada órbita. Para o segundo, furar os olhos, vazar os olhos, esfacelar os olhos. Como uma recusa.

4.
Furtivamente penetrar esferas privadas – se necessário lamber as partes mais sujas, como quem reconhece algo, pois é aí que se concentra qualquer história.

5.
Já fui também elefante, pantera, ornitorrinco. Agora me dedico às artes da sombra e emulo bichos peçonhentos.

6.
Ela escreve por aforismos, como se fundasse civilizações na bruma. Persigo encantado, sem chance de aproximação.

7.
Foi quando adotei o “Método das Realidades Paralelas”. Não posso dizer que o desenvolvi, não seria exato nem honesto, embora o tenha construído a partir de indícios que recolhi e sem qualquer auxílio exterior – mas esta revelação não possui qualquer relevância, uma vez que aquilo que apreendemos do real é quase sempre distorcido mesmo se nos movermos dentro dele como num plano único. Cada um de nós é um feixe de esforços que atravessa a sua superfície verticalmente, num sítio aleatório, e daí não se pode observar com precisão muito mais do que o entorno circundante e aparente. Como se não bastasse, o real se move: daí que o explodi em planos paralelos que se podem atravessar sucessivamente, não sem esforço. Apesar de fragmentar nossa já limitada percepção a um ponto praticamente insuportável, amplia fantásticamente a visão.

8.
Num plano sou um homem comum, refém do destino. Em outro penso sobre mais esta limitação. Num sou quem domina, noutro sou domado. Ora sou o que se esquiva. Num dos últimos sou “O Cisne”, mas este plano é nublado de modo intermitente pela metafísica.

9. Ainda na série Ditados Cretinos: “As portas da percepção etc...”.

10.
Não há regras aqui, e isso já foi dito.

10/09/2008

nº 9

Isso não vai durar-
foi uma (cena) roubada, eu sei.
Você não vai chegar a nada, nada”, disse um anjo que caiu
e não se recobrou do estrago.
Retirando (o passado) do gancho: “isto não vai doer” diz
outro anjo entre sorrisos,
e o silêncio agora vicia (e incomoda) tanto
quanto aquele frio
na espinha do amor que nunca se rende.

O ocaso, esse não: ele apenas emerge das cinzas, um navio
aponta no horizonte ('menos se espera'), um espocar de auroras
entre um gozo e outro tatuado no reboco.

O amor gravura um claro-escuro nos intervalos rasos do que não vai ser dito.

(das "Notas Marginais")

10/06/2008

Pobre lobo

Vou por em link, pra não ocupar muito espaço no blog. Não que seja longa, pelo contrário, é uma fábula curta, mas mesmo assim achei melhor.

O autor é Mikhail Saltykov-Schredrin. Cheguei a ele porque num dos raros textos lúcidos sobre o Graciliano Ramos, o Otto Maria Carpeaux disse que o Graciliano escrevia como um fabulista russo do século XIX.

Já pensei que a fábula poderia ter a ver com o estresse do senhor mercado. Mas é claro que vai muito além disso, é sobre a condição humana. Então também é sobre o estresse do senhor mercado.

Lê aí, Aldemar, leiam queridos sumidos epistolares: Pobre lobo.

(Traduzi do inglês, não do russo. Ou seja: é a tradução amadora da tradução da tradução. Ainda assim acho que vale a pena).

10/02/2008

N. 87




A cidade é de carne
Seu sangue é lodo, tubulações
Subterrâneas onde circula
O rio canalizado
(Assassinado), o rio onde nada
Meu avô, que morreu delirando
Com pescarias.

A cidade é a terra
Das minhas pernas
Crivadas de raízes e pequenas plantas
Que arranco, pacientemente.

Se tento fugir
Da cidade é em mim
Que encontro refúgio, e se completo
Minha saída do labirinto
De carne e lodo e musgo que sou
Eu me encontro novamente
Na cidade.
Sou um emaranhado
Infértil
De lodo urbano, mas
Que minha carne seja salva
Junto com a carne da cidade
Que me habita, que eu seja
Condenado como um verme
Roendo sua carniça, qualquer coisa
Menos a ilusão de um nome próprio.
E só
Mais um detalhe:
Traços negros, linhas negras amarrando
Um pedaço de carne, da carne
Da minha carne não é uma imagem
É um pesadelo, dolorosamente
Real.

9/30/2008

nº 86




Cidades são reais, o pensamento
não se sabe, cidades são
reais, meu chapa, sejam fossas
geladas ou panelas de pressão, chapa quente,
tanto faz, ruas emaranhadas ou largas
avenidas, são labirintos (“algumas toneladas
de pedras ao alto
”, ele disse)
porque espelham o que se forma
por dentro por precipitação (aqui você
repete o delírio recorrente
de encontrar explicação
onde não existe, de arremessar fora de si
a paisagem da imaginação – não, estas
paredes que o pensamento ergueu
por dentro são outra
formulação alucinada
do seu desespero, o mesmo
que arriscou metamorfoses, uma
atrás da outra, até
desembocar no espanto de ser
outra vez não mais que o mesmo
do princípio).


(das "Notas Marginais")

9/29/2008

N. 85. Ou, o sonho de Gregor

1

Anuncio ao interfone uma carta
Num envelope tão branco,
Quase translúcido.

Na carta, ainda que num texto
Repleto de linhas negras
De um plástico indecifrado
Ofereço o seio canceroso
De minha mãe:

A ser levado num tupperware,
A qualquer funcionário dedicado
E indiferente.

Ou quem sabe
Ofereço trechos da minha carne
Ao grande açougue
Dos robôs sanguíneos –

Tanto faz, afinal
Qualquer carne é branco-rosa
E repulsiva,
Como a dos peixes
Quase podres entre as pedras
De gelo.

O envelope, contudo,
É quase translúcido
E tem que passar pelas mãos
De Oito-Olhos (desta vez
Convertido numa velha de cabelos vermelhos,
Responsável pela comodidade
Do condomínio).




2

Oito-Olhos interrompe o laborioso serviço de faxinar o asfalto com torrentes de água, aperta a vista como o senhor de sua atenção que ele é, tenta desembaraçar o conteúdo, as linhas negras que amarram a carne da carta.

Oito-Olhos sorri com indisfarçável alegria:

Ali,
Onde não sou digno
De confiança
É onde sou fraco.

nº 84








Nenhum amor pela cidade, muito
pelo contrário, rancores
cuidadosamente cultivados como
flores, feridas
expostas ao mesmo ar que alisa
a superfície de tudo, contínua,
como se a beijasse, ar
que nunca ampara ainda que envolva
gelado ou turvo, tanto faz, neste mundo
estreito – você formula
absurdos como erguer paredes contra o ar
tornado vento quando imagina
ele trazendo mensagens do passado em forma
de lâminas ferozes, mas lembra
que paredes são memória
dura; formula então
torná-las labirinto, emaranhado
onde se possa encapsular
esta brisa que lhe arranha
a pele, e pensa mais, grafites
que apontem vertigens onde perder
o corpo,
grafites por toda a superfície
alçada contra o ar, pura
vertigem, nenhum
amor pela cidade, nenhuma cidade
possível.




(das "Notas Marginais")

9/27/2008

nº 83




Retirados os sonhos você se ergue sobre o nada, eles eram
uma escada alucinada de apoio
sobre o real, e agora
quando representa seus papéis-
moeda, vendendo barato
o que quer que seja (“tenho os dias contados
como notas velhas na carteira, fora os inconfessáveis delírios
de absoluto
”, ele disse,”à espreita,
até que o destino se distraia
”), vê tão claro
no espelho uma embalagem seriada, anônima (“e prolixa”, ele disse)
enquanto luzes frias como a razão que se esquiva lembram
que palco e platéia, lado a lado, estão juntos
dentro do mesmo
teatro, mundo.


(das "Notas Marginais")

9/24/2008

O olhar oblíquo do mundo virtual

Só espero que não
Estejamos construindo o novo
Arranha-céu
Sobre um abismo,
Palavras melodramáticas do engenheiro
Sobre a cratera do World Trade Center.

Na fossa gelada
De Uberlândia, jamais pensei que aqui
Precisaria de um casaco,
Penso nisso enquanto leio a notícia
Distraído e depois
Me desculpo teorizando sobre o nosso
(meu, seu e dele) egoísmo, sobre a arte de representar
Que é como andar armado,
Um canastrão justiçador, fazendo sermões
Inócuos, online, e como foram
Necessários 500 anos de aporrinhações & palmatórias
Pra que os ocidentais aprendessem a regular
Seus peidos.

E me esquivo novamente assim:
No dia em que as torres gêmeas
Ruíram, futuros cientistas
Sociais celebraram, virando ruidosamente copos
De cerveja sobre as mesas de plástico
Vermelho, é mesmo um mundo de ponta-cabeça
Quando ficamos bêbados
Logo de manhã.

9/22/2008

nº82


Estende um infinito entre você e a paisagem, tão perto,
cortinas de vidro se liquefazendo à frente
dos seus olhos e de camadas de asfalto: cada uma
contém em seus mapas impressões do absurdo
que teve por destino transportar, surdamente,
na treva ou sob o sol – “seu corpo”, ele disse,"não ouvia
as coisas todas gritando em desespero
à sua passagem, as coisas
aturdidas diante da agressão
dos seus olhos
”. Limites, exílios, silêncios,
viagens sem retorno, abismos
entre as coisas e as palavras, você
pulou porque quis.


(das "Notas Marginais")

9/19/2008

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Vida (s.f.)
Relaxe, é apenas um jogo e, de forma geral, em função da natureza da maior parcela dos jogadores envolvidos, tem um cunho absolutamente banal, supérfluo e superficial. Tem ainda contra si os seguintes aspectos: você não pede para jogar, quando dá por si está no meio do jogo, e geralmente perdendo; por um dispositivo desconhecido (provavelmente sua limitadíssima percepção), você nunca sabe se é jogador ou uma simples peça, ou os dois, simultanea ou individualmente; você não escolhe em que parte do tabuleiro será lançado no início da partida, o que pode significar enorme desvantagem, o que acontece na maioria dos casos (ou seja: você pode ser um príncipe encantado ou um sapo, sem que para isso concorra o mérito ou escolha sua). Como se não bastasse, só há um resultado possível: você vai perder, amigão, não importa o que faça – pode até estar, provisoriamente, em vantagem sob um ou outro aspecto, mas no final você se fode. Talvez o melhor que se possa fazer seja aproveitar as vertigens circunstanciais e igualmente provisórias que certos lances proporcionam.

La Boetie (Ou Network Canastrões Iltda)

O segredo do Um
Está escondido nas festas
E jogos que ele promove, está
Escondido nas sentinelas
Que o protegem, contudo
O segredo do Um
Não é o mesmo que suas armas
Por bem dispostas que estejam
Nem o mesmo que seus cavalos,
Por mais velozes, o segredo do Um
Não tem a transparência das taças
De vinho, nem é plano
E frio como os tabuleiros de xadrez;
O Um sempre é servido por 4 ou 5
Que o sustentam
Como os canhões de ar
Que mantêm o suspense
Dos números nas loterias nacionais e
Estes 5 ou 6 são os favoritos do Um,
Os sócios dos bens de suas pilhagens,
Cúmplices de suas crueldades
E estes 5 ou 6 são sustentados
Por outros 600 que crescem às suas sombras
E são coletores de impostos, corsários
Em miniatura
E quem se divertir em tecer esta rede
Logo chegará aos 1.000 aos 100.000
Aos milhões que com estas cordas
Se agarram ao Um, quando um simples
Não bastaria,
E assim visto ao revés
5 ou 6 suportam os males
Causados pelo Um para poderem
Causar outros males aos 600
Que calam o sofrimento para causarem
Outros males aos milhares que restam
E estes se entredevoram
Em torno do espólio que lhes sobrou, enfim
Este é o segredo do Um,

Sua lastimável fraqueza e seu (quase)
Indevassável poder.

9/18/2008

nº 80

Interpretando em erro a chama do instante, o mesmo
instante que cai, passa, muda, rompe, incinera, avança, some, perde-se
e já não é mais e seu brilho
ainda na curva acende o olhar de quem fica largado
olhando feito um pacote entregue no endereço
errado a orla do presente e as ondas
de vida batendo, batendo, batendo, tombando contra a membrana do corpo,
tão frágil,onde cada poro, aberto ou não, quer
dizer ao mundo e não diz: sublimação feroz, passagem
de um estado a outro, do peso
ao que flutua, gás, fumaça, décadas hostis,
asfixia.

(das 'Notas Marginais')

9/16/2008

Seu Mercado tem problemas psiquiátricos (manchetes do dia)

Bovespa sofre com a percepção &

A crise financeira muda o foco &

O mercado monitora os desdobramentos

Para aliviar o estresse do mercado.




É sintomático que

Bancos injetam milhões para acalmar mercados &

Hurricane also hits financial markets

An obviously desperate seller

In a sign of significant stress.



Maybe, only a tropical storm, ou

Un lunes negro en el mercado sigue golpeando hoy

Las malas expectativas sobre la situacion del gigante.




(Fazendeiro questiona como é possível manter a espécie piripkura se os 2 índios
são homens, "não tem índios não, são só dois moleques lá", "um indigenista
disse que tinha que preservar a espécie, mas índio não cria, como vão reproduzir
se são dois machos?")

9/15/2008

descartes

a obscuridade das distinções
e dos princípios de que se servem
é a causa de alguns poderem
falar de todas as coisas
como se as soubessem
e de sustentarem o que dizem
contra os capazes e os mais sutis
sem que se tenham meios de os convencer

por isso
tornam-se comparáveis a um cego
que para lutar sem desvantagens
contra alguém que não é cego
levasse o adversário para o fundo
de um subterrâneo
muito escuro

9/14/2008

Uma fábula

O mundo é um jovem
Desajustado, precoce
E ao mesmo tempo
Um velho imaturo e ao
Mesmo tempo uma garota
Que passa os dias
Trancada numa biblioteca,
Não gosta, não tem, não quer ter
Amigos, a tola esclarecida.

A vida é uma senhora lúcida
E rebelde, por tudo,
Quase nada, qualquer coisa,
Um êmbolo e ela se sente
Sufocada, a vida sofre
De mania de perseguição.

A vida enterra sementes
Com raiva e brotam
Folhas verdes e ruidosas que dizem não
Dizem sim, dizem sim ao não,
Dizem não à liberdade, dizem sim
Ao libertário, dizem não ao anarquismo,
Dizem sim a tudo o que é anárquico &
Da terra revol
vida e revoltada
Brotam frutas selvagens
Pequenas feras doces e coloridas


O tempo, por sua vez, está grávido
De anacronismos. É um jogo,
Mortal, de crianças.

Mas as crianças não, estas
São insatisfeitas,
As crianças querem os cães
Domesticados, as crianças são pacientes
Quando o assunto é a ordem
Visível, evidente:

As crianças fabricam
Usando seus próprios corpos como engrenagens
Um imenso boneco, cheio de balas
Não, cheio de porretes &
Relógios & tesouras de jardinagem, mas
Esse boneco é um tirano
Vazio, chamado Oito-Olhos.

E ninguém sabe, ou finge não saber,
Num faz-de-conta, como o oco
Pode ser assassino, de onde vem
O pequeno
Poder de matar se
O boneco é um morto, mas
À sua sombra
As crianças dormem
Tranqüilas e livres
Do mundo, da vida e do tempo.


Moral da história: é de meter medo.

9/10/2008

Novo Pequeno Dicionário das Aproximações

Mundo (s.m.)
Conjunto indistinto de forças cujo único objetivo é deixar você com cara de babaca, custe o que custar. Possui o dom de penetrar na mente das pessoas e através delas imprimir sua marca, seja na pele, na memória ou em sua biografia (quando assim é possível chamar a seqüência de fatos sem sentido ao longo de sua vida e se pode chamar de vida a seqüência de fatos sem sentido ao longo do tempo que lhe é concedido). Suas maiores armas são o dinheiro, o poder, a libido e instintos derivados, como o de matar, geralmente em grupos de dois ou mais. Escritores mais ou menos geniais têm a mania recorrente de compará-lo a labirintos, o que dá a perceber sua natureza não muito amigável (labirintos são, em geral, freqüentados por minotauros e outros tipos de caráter duvidoso...). No século XVII, um escritor tcheco, Comenius (1592-1670), representou-o como um caminho que se bifurca em seis outros, sendo que estes desembocam sempre no mesmo lugar, onde se alcançaria o conhecimento sobre a razão última de todas as coisas, e por isto torna-se evidente que tal poema foi escrito sob o efeito de algum poderoso alucinógeno ou meramente faltavam-lhe elementos mais objetivos para análise – talvez porque no referido poema o “herói” fazia-se acompanhar por outros dois personagens denominados “Engano” e “Sei-tudo” (o que demonstra serem duas faces da mesma moeda) e utiliza em sua odisséia lentes que lhe distorcem a compreensão das coisas. Como na vida, assim como ela é.

O dom de ser observado

O sol te fisgou
No flagrante delito
De caminhar pelas ruas.

O sol tem dedos
Azuis, e unhas afiadas
No ofício das sanguessugas.

O sol se retorce por dentro
Do meu couro cabeludo
Como se o seu cérebro
Fosse massa de modelar.

O sol é uma puta, ou melhor
O sol é um olho vigilante
Que joga o clarão sobre você,
Imigrante ilegal, atrás
Dos muros da cidade qualquer.

O sol está grudado em sua pele
E nas paredes quentes do meu apartamento.

O sol torrou meus olhos
E se esconde no capuz preto
Porque sabe que é culpado
Porque, no íntimo,
Reconhece que o sol é um justiceiro
Cheio de razão, apesar

De você ser frio e verde escuro
Por dentro.

9/03/2008

Um poema só links (em esperanto)

Apresento aos senhores a mais nova realização do neo-inutilismo. Com pitadas de ultra-regionalismo, é bom que se diga.
Assumir a mais completa e definitiva inutilidade da cultura, dedicando-se a uma tarefa suficientemente estúpida: aprender esperanto, por exemplo. De preferência usando o dinheiro suado do contribuinte, que talvez preferisse mais policiamento, mais clubes, asfalto mais liso etc etc etc. Mas, por que não esperanto?
Isso ainda não é suficientemente inútil. Renegar os avisos dos inventores desta bela língua e escrever um poema em esperanto. O ideal seria apresentar ao Mais! Ou à revista Bravo, pra sair com aqueles comentários: “mais um livro sobre o desespero”, “uma história de amor fracassado”, “a angústia, o nada, a desistência, nem a morte como consolo, a dor cultivada, a estética da miséria humana, o fim das esperanças, o mais desgraçado dos livros etc etc etc”, com uma foto do autor na página ao lado (um rosto pensativo e triste pra caralho atrás de um pouco de fumaça, a melancolia profunda dos cachimbos e por aí vai).
Não vai rolar, então faça você mesmo.


Taí o poema:


Nulo nokto estis, sed Noktuo.


Dio!

Mi marsas, sed la Hundoj kuras.

Cu la infantoj amas?

Sercu la pomjn tuj!

Mi estas varmeta, li estas varma
Li estas tre varma, sed neniu estas varmega.

Kie diablo no povas, tien viniron le sovas.

De peko kaj mizero estas pleno la tera.