O busto de Carlos Gomes entra no táxi reclamando da falta de humildade de seus amigos. O taxista interrompe:
“O moralismo anda bem das pernas, egoísmo é confundido com mesquinhez. Mas ouça bem meu chapa, o corpo acontece de dentro para fora, não está virado para dentro. Hoje parece que toda discussão quer ir para as profundezas invisíveis. Radiografia, ultra-sonografia, tudo isso traz o de dentro para fora mas como coisa incolor. Tudo indica: por dentro o corpo não tem graça. Aquelas microcâmeras que entram nas veias também estão por fora, a cor pode até estar oculta na ausência de luz, como animais marinhos bem no fundo, mas você morre de frio em busca do invisível. Querem te enrolar na idéia de que seu corpo é carapaça, mortalha nojenta cobrindo a verdadeira verdade interior: fazer do mundo tripas-coração. Mas é tudo o contrário, já está provado por cientistas da farmacologia utópica: coisas nojentas como tripas e profundamente escrotas como um coração existem em função das aparências. Tudo o que pulsa na impressão de dentro tem um único sentido: para fora, a luz, o encantamento. Como por dentro você não passa de espiral em ascensão, é exatamente isso o que a natureza fez de você: vaidade. Vazio interior circundado por belas aparências. Do mesmo jeito com a sua voz: é um lance sensorial que assalta o mundo (ouvir tem essa vantagem sobre ver: ver demanda atenção, você pensa que manda nos seus olhos, mas orelha não tem pálpebra). É isso então o que a natureza exige de você: que seja superficial.
Neste mundo de aparências, Deus está no contato das coisas. Seu nome é Éter, imatéria que cerca tudo e comunica os gestos ambíguos da menina diretinho nos seus olhos, aquela que diz sins e nãos, está lembrado? É como alguém disse: sol e chuva, parecem fantasmas as meninas de Campinas. Apesar da rima fora de hora, deve ser por aí, você precisa reaprender a rezar.
Agora veja: o problema dos shopping-centers não é o querer aparecer, mas a feiúra (sua falta de graça tem a ver com o desejo de possuir que traz a vontade de matar, anote aí, é a mesma arquitetura dos tanques de guerra). Aquela torre gigantesca sobre a qual gira um pássaro gordo verde-abacate não queria aparecer, é o superegomercado falando pelos cotovelos. Na hora de digitar a senha do cartão de débito, que tua mão esquerda não veja o que faz tua mão direita. E consumir é isso aí: assimilar as coisas, jogá-las para o invisível das suas tripas-coração. O consumidor é o inimigo das aparências, quer ver fundo o que se passa no coração do Big Brother, mergulhar-se, tornar o mundo tão insosso como aquela pasta de alimentos no estômago, matar tudo o que existe para depois morrer junto. Como tudo é superficial, quando você consome é isso que você é: uma espiral que deseja ser agradada, que só sabe dizer gostei e não gostei, que some, consome-se e quando morre mata as coisas, deixando nada sem antes ou depois.
As aparências não estão aí para o seu bel-prazer. Ser egoísta é uma arte.”
Carlos Gomes reclama que o taxista é inverossímil. Além de humilde, naturalista.