Sobre escrever com o coração

domingo, 30 de abril de 2017


 
Em "Tudo sobre livros" Virginia Woolf desafia-nos a refletir sobre a relevância do amor em tudo aquilo a que nos dedicamos e propomos.
O que será mais importante: escrever sob as bases teóricas da literatura, na ponta da língua, ou escrever com o coração na garganta?
A autora elogia as camadas mais jovens do mundo da literatura ressaltando, no entanto, um aspeto que se assemelha a uma espécie de impressão em massa. Nada há que os distinga nas obras que, afincadamente, escrevem. Todos eles, segundo defende, baseiam a sua arte de escrever na sombra da educação.
Que quer isto dizer, concretamente?
Que se moldaram às leis de um ensino padrão, fieis ao professor que ensina, modela, orienta e corrige. Fiéis na crença, ilusória e como tal muito cega, de que essa orientação os levará ao fim de ambicionada jornada de escritor.
 
Para Virginia, faltará sempre algo muito mais relevante porque com base nesta perspetiva, lança a questão:
"Mas, perguntamos nós, virando as páginas honestas, admiráveis e inteiramente sensatas e nada sentimentais, onde está o amor?"
Falta amor.
Uma história para ser real, tem de ser escrita com amor, tem de ser visceral, tem de ser autêntica, genuína, pura, pessoal. E tudo isso, e muito mais, resume-se a um pouco de amor. Mas que seja próprio de quem escreve. Só dele. É dessa forma que a sua história se poderá repartir, perpetuando-se por cada um dos leitores que, também genuinamente, se lhe dedicarem.
 
 
Virginia, bem haja mais uma vez.
 

Canção doce (Leïla Slimani)

quarta-feira, 26 de abril de 2017


O dicionário diz-nos que solidão traduz o estado do que está só. Isolamento. Um ermo. Um lugar despovoado.
Leïla Slimani tem solidão impresso em cada canto da sua «Canção Doce» e Louise, a ama perfeita aos olhos de todos, personifica esse lugar despovoado das pessoas mal amadas.
«Canção Doce» é a história de um casal, dois filhos pequenos e a sua ama, Louise. A junção de todos eles revelará ao leitor a urgência dos dias atuais, o tudo querer, a pressa das horas, as ambições desmedidas e as prioridades distorcidas. O resultado sairá, claro está, enviesado nas leis do que seria suposto. Eu chamo-lhe a teoria do elástico: vá puxando, até ao dia.
Myriam e Paul são um casal aparentemente feliz, que após o nascimento dos filhos, viverá a conhecida fase de adaptação e reorganização que tal implica. Os horários não serão os mesmos, os encontros com os amigos serão adiados muitas vezes, o descanso passará para um segundo ou terceiro plano e, depois, as aspirações profissionais parecem elas, também, sofrer um rumo diferente.
Myriam, mãe preocupada, decide então dedicar-se de corpo e alma à arte de ser mãe. Esticou o seu elástico até não poder mais, com prioridades circunscritas à maternidade quase patológica de que apenas ela seria a pessoa indicada para assegurar o bem-estar da menina. E do menino, nascido pouco tempo depois.
Um dia, porém, no reflexo de Paul, cada vez mais de encontro às suas próprias aspirações profissionais e ao delineamento do seu próprio caminho, Myriam quis o mesmo. Exigiu o mesmo. Afinal, tinha tanto direito quanto Paul a exercer as suas excelentes competências de advogada, outrora a melhor e mais dedicada aluna de Direito.
Não pretendo crucificar o leitor com as mazelas que o nascimento de um filho traz, inevitavelmente, à vida de um casal mas é, precisamente, nesse seio disfuncional de prioridades e anseios que Myriam e Paul decidem ter chegado a hora de contratar uma pessoa para cuidar das suas crianças enquanto estes pudessem, na mesma medida, dedicar-se às suas carreiras profissionais.
Louise surge nas suas vidas como a verdadeira fada do lar. E como diria Fernando Pessoa, se primeiro se estranha, acreditem, que depois de uns dias com Louise, o ambiente tranquilo, arrumado e sereno entranhou-se facilmente em todos eles.
O problema das pessoas aparentemente perfeitas é andarem de mão dada com uma espécie de invisibilidade. Não há espaço ao erro, a delicadeza de cada gesto é tanta que, por isso mesmo, nem se nota. E espera-se, por isso mesmo, apenas mais e mais perfeição.
Gradualmente, numa espécie de vórtice aterrador, Myriam e Paul assumem Louise como parte integrante dos seus dias, da perfeição da casa e inclusivamente, da disciplina exemplar transmitida aos filhos. Quanto mais Louise fazia, por um amor incondicional que lhe cresceu pelos meninos e pela família, mais o casal assumiu a implacabilidade da frágil mulher. A perfeição tem destas coisas.
O que ninguém sabe, porém, é que a perfeição veste-a Louise como um desses escapes a olhos desatentos, de quem tanto procura um lugar que a dignifique pelo que é, não pelo que faz, e muito menos por um passado a que não se apega. Que não deseja. Que não sente seu.

Um livro brilhante sobre o descaramento do egoísmo, os afetos distorcidos, os estatutos engavetados,  a solidão e a necessidade de amor. No fim, essa necessidade, quase sempre, caminha no sentido oposto daquela que seria uma verdadeira canção doce.

Recomendo com todas as mãos. Recomendo a todos os bons leitores. Recomendo a toda a gente!
 
 
Seja feliz, aqui

 
O meu enorme obrigada à Penguin Random House, pela oferta.

 

O Senhor Camilo

terça-feira, 25 de abril de 2017



"Que animal é este?
Um camilo?
Não será camelo?
Ah! É capaz de ser...!"
 
Uma pérola de 6 anos a revelar o poder de uma única letra.


Nada (Carmen Laforet)

segunda-feira, 24 de abril de 2017



















«Nada» é o romance que revolucionou a literatura e agitou a sociedade espanhola do pós-guerra.

Com a intenção de estudar e mudar de vida, Andrea parte rumo a Barcelona, hospedando-se na Rua de Aribau, na casa da sua avó e tios.
Esta será a sua história. E a história dos outros. Que contempla, apreensiva, desprendida de si mesma, ausente e presente simultaneamente numa dor que desconhece. Mas que lhe procura a origem nos passos, deambulantes, que dá pela cidade.

Carmen Laforet vai encher-lhe a alma. A sua escrita soa a uma espécie de desconsolo. Um desconsolo quente, que tudo diz numa leveza tal, que comove e promete fidelidade até ao fim da história.
“(…) apesar de todos aqueles seres trazerem consigo um peso, uma obsessão real dentro de si,  à qual poucas vezes aludiam diretamente.”

O ambiente na casa era pautado pela fome, pela secura dos gestos e amargura de afetos, que não se dizem, em todos eles. Desde a avó, pequena, frágil e em constante pranto, ao tio Juan e Gloria, Angustias e o enigmático Róman.

No fim da Guerra Civil Espanhola, aquele contexto azedo e autoritário está espelhado fielmente em cada personagem. Também a fragilidade e o cansaço. A fome de Andrea, dentro e fora.

Mais do que uma história sobre uma jovem que decide estudar em Barcelona, largando tudo para tal, Carmen Laforet, desenhou dentro daquele contexto histórico, personagens personificadas de um período ideológico autoritário como foi o Franquismo. Falo de Juan mas, particularmente, de Román.

As personagens viverão os seus temores, e na sombra, Andrea crescerá sem qualquer alicerce que não seja correr por si mesma, aprender por si mesma:


“Parecia-me que de nada vale correr, se vamos sempre pelo mesmo caminho, fechado, da nossa personalidade. Alguns seres nascem para viver, outros para trabalhar, outros para ver a vida. Eu tinha um pequeno e mau papel de espectadora. Para mim, era impossível sair dele. Impossível libertar-me. Uma tremenda angústia foi, nesse momento, a única coisa real para mim.”

 

Uma história onde o desejo de vingança impera, mas também o amor dará os ares saudáveis da sua graça. Uma história de superação, de resiliência e de crescimento.

Andrea, personagem inesquecível, mostra-nos um mundo triste, solitário e muito sombrio, mas ainda assim, com brechas a dias novos, carregados de promessas.
“Desci as escadas lentamente. Sentia uma viva emoção. Recordava a terrível esperança, o anseio de vida com que as subira pela primeira vez. Agora partia, sem ter conhecido nada daquilo que, confusamente, esperava: a vida na sua plenitude, a alegria, o interesse profundo, o amor. Da casa da Rua de Aribau, não levava nada comigo. Pelo menos, assim o julgava eu, então. (…) Barcelona inteira ficava para trás.”  

 
Boas leituras.

Dia Mundial do Livro

domingo, 23 de abril de 2017
























A minha proposta para este Dia Mundial do Livro passa por um dos meus livros da vida:
«Gente Independente» de Halldór Laxness.
Curiosamente, este senhor faria hoje 115 anos.

O Regresso de João Tordo

sábado, 22 de abril de 2017



















Uma das melhores notícias do mundo editorial: João Tordo está de volta. 
Pela mão da «Companhia das Letras» (Penguin Random House) teremos, agora, a ambicionada oportunidade de conhecer o fim de uma história, asseguro-lhe, inesquecível.

Faça um favor a si mesmo e reserve já o seu, aqui

Palavras mal colocadas #6

quinta-feira, 20 de abril de 2017

 
 




Esta é mesmo um pequeno ódio de estimação. Desde a fonética, ao contexto usado, a tudo. Tudo me irrita na colocação, habitual, da dita.

"Olá! Como estás?"
"Estou no relax..."

(que bar é esse filho?)


Não me perguntem porquê, mas esta resposta irrita-me solenemente.
Como diria a querida Beatriz, todos nós carregamos as nossas cruzes ;)

Respeitem o Mickey!

segunda-feira, 17 de abril de 2017

 
 
 


O Mickey é um rato.
Não é nada!
Claro que é, não sejas chato.
(Já em berros)
Não é. Olha o meu dedo a dizer que não!
Então o que é?
(Os berros continuam)
O Mickey é uma pessoa!!!
 
 
Discussões acesas entre os dois Principezinhos.






Contos de Assis #1

sábado, 15 de abril de 2017

O «Alienista» é um dos contos, ou o conto, mais conhecido de Machado de Assis. Muitos acabaram por o enquadrar na novela, no entanto, conto ou novela, a verdade é que estamos perante uma história que o irá cativar não só pela comédia que lhe assiste mas, também, pela crítica social, pelo egoísmo e pela mancha humana impregnada e assumida em primeira mão pela personagem do Dr. Simão Bacamarte.

É a história do Dr. Bacamarte, médico dedicado, que ao focar-se na Psiquiatria, abrirá um manicómio para o efeito, conhecido então pela «Casa Verde».
Começará então uma espécie de internamento em série pois, prepare-se leitor, em cada detalhe, em cada frase ou trejeito dos moradores, inclusivamente da própria esposa, o Dr. Bacamarte, fará um diagnóstico diferenciado no quadro das doenças mentais.
 
Toda a população passará alguns dias na «Casa Verde», uns mais, outros menos. Nenhum, ou quase nenhum, perceberá o motivo do internamento. Aparentemente, apenas o Doutor saberá. Ou não.
 
A azáfama que se viverá naquele lugar, as fúrias que se acenderão em torno daquela Casa, em torno daquele médico e em torno das aparentes doenças mentais terminarão, afinal da maneira menos pensada inicialmente.
 
Cansado de, afinal, errar diagnósticos, decide que a loucura reside do seu próprio lado, internando-se a ele próprio na Casa Verde, vivendo os seus últimos dias entregue àquela que fora, sempre, a sua grande causa.
 
 
O conto de Machado de Assis, em certas passagens, relembrou-me «A Montanha Mágica» de Thomas Mann, pelo receio dos moradores, pelo tempo que ali parecia não passar, bem como aquela passividade que ninguém parecia, aparentemente, controlar. Paralelamente, o conto de Pirandello, «As Sete Casas», num confronto direto com a morte, surgiu-me também ao longo da leitura de Assis. Juntam-se assim dois temas que considero essenciais na história do Dr. Simão: o tempo enquanto matéria prima para fazer dele o ouro que brilhará diretamente do seu umbigo, enquanto médico conceituado, que tudo sabe e nada permite questionar. E a morte: depois de uma jornada meritória de pesquisas, de diagnósticos, de loucuras distorcidas, o que seja, houve todo um percurso que se colou, inegavelmente na memória dos moradores e por isso mesmo, a morte na Casa Verde será um mero acessório a uma vida que foi, e teimará em ser, para sempre, vaidosa e tão dona de si.
 
Muito bom!
Boas leituras.

Psicologia(s) #9

quarta-feira, 12 de abril de 2017

 
Dica: continue a tentar.
Falhou? Continue.
Sempre.
 

Há Relógio no correio!

terça-feira, 11 de abril de 2017


Chegou ontem no correio, esta pequena beleza.
Um livro que, aposto tudo, garante não apenas uma, mas muitas viagens.


 
Obviamente, o Mirtilo no seu melhor.
 
 
 
Bem Haja Relógio D'Água por esta fantástica oferta.
 

Palavras mal colocadas #5

segunda-feira, 10 de abril de 2017



 
Ou sou eu que sou muito romântica ou não percebo os "amo-te" ditos, aparentemente, sem pensar.
Haja corações grandes, mas vá, não exageremos.
Digo eu, que não sei nada.
 
 

1933 foi um mau ano (John Fante)

domingo, 9 de abril de 2017

Bukowski sempre disse o quanto Fante o havia influenciado. Disse inclusivamente que era o seu Deus, relembrando as visitas às bibliotecas e livrarias onde o desagrado sempre imperava até ao dia em que, finalmente, se cruzara com Fante e ali estacara, embrenhado na leitura daquele que viria a ser uma espécie de mentor.
 
Vai apetecer-lhe dizer uns quantos palavrões no passar de cada página, pela genialidade da escrita estupidamente simples, e que dessa simplicidade faz coisas tão brutais que apenas lhe restará a resignação à humilde condição de leitor voraz.

Vai conhecer o italiano Dominic Molise, um jovem de 18 anos, a terminar o liceu, e a desejar pôr em marcha o sonho de um dia se tornar uma estrela de baseball, com o seu Braço abençoado, mas confrontado diariamente com a realidade amarga da sua família, naquele que é o silêncio de uma mãe traída e um pai apenas dedicado ao trabalho duro das obras, e pouco rentável.

No contexto da Grande Crise Económica dos anos 30, a obra de John Fante, personificada neste Dominic Molise, vem mostrar o confronto entre sonhos que se tentam conquistar e o mundo, agreste como só ele sabe ser, a defraudar-nos cada um dos momentos pelos quais tanto ambicionamos.

Com momentos de escrita absolutamente espetaculares e personagens hilariantes (jamais esquecerei a avó Bettina), desafio o leitor a pegar neste livro imediatamente: mais do que uma história sobre um jovem que deseja alcançar os seus grandes sonhos, esta é também uma história de sobrevivência, de laços familiares e capacidade de superação num mundo virado do avesso.


O meu enorme obrigada à Penguin Random House pela simpatia e consideração para com os seus leitores.
 
 
 

A tua segunda vida começa quando percebes que não terás outra (Raphaëlle Giordano)

sexta-feira, 7 de abril de 2017


O primeiro livro de Raphaëlle Giordano, publicado em Portugal pela Penguin Random House (Suma de Letras), conta-nos a história de Camille, com 37 anos, aparentemente com tudo para ser feliz mas nada que a faça sentir-se dessa forma.
Na verdade, a vida de Camille parece ter estagnado desde o seu casamento, o nascimento do seu filho, a adaptação aparente (ou resignação) a um trabalho povoado na maioria por colegas que não respeitam o papel de mulher e mãe que, também, é capaz de trabalhar, entre outros aspetos que em muito foram ganhando terreno à passividade da sua vida.
Num dos muitos dias iguais entre si, Camille tem um acidente de carro que a impede de regressar a casa quando suposto. Conhecerá Claude, o rotinólogo.
Da incredulidade ao espanto, e da desconfiança à necessidade de tentar, o leitor acompanhará a doce Camille numa aventura enternecedora na reconquista de uma vida que ambiciona, erradicando de si a grave rotinite de que padece. 
Um pouco a relembrar os ditames da felicidade dinamarquesa, a autora, coaching de profissão, fez-se valer dos seus conhecimentos técnicos para, entre ficção, frisar aspetos que, apesar de basilares na vida de cada um, nem sempre são prioritários.
É que o tempo é severo e na pressa de se chegar, acabamos por perder as sinaléticas que, eventualmente, nos estariam destinadas.
Camille optou por ignorar esses apelos da pressa e decidiu parar, pensar, questionar e mudar.
Parece ridiculamente simples para si, caro leitor cético, que neste momento se bajula e se congratula por esse conhecimento que tem sobre a sua fantástica forma de viver. Parabéns. Continue.
E você, desse lado, perdido pela pressa dos dias, não ligue a quem já tentou e se perdeu, nem tão pouco aos bajuladores: tente por si, as vezes que forem necessárias. Só por aí, valerá a pena.
 
Uma nota muito interessante quanto a este livro: a autora tem o cuidado de, nas páginas finais, explicar em detalhe as técnicas de modificação comportamental e técnicas motivacionais que o Claude promove junto de Camille. Ao ler, o leitor terá também, a feliz oportunidade de refletir sobre si mesmo e por aí, acredite, o lucro compensará sempre os minutos dispensados.
 
Boas leituras.
 

Já que insistes...

quinta-feira, 6 de abril de 2017

(...)
A tua atividade preferida é estudar?
Sim... é.
A sério? Eu quando era pequena adorava brincar!
Eu prefiro estudar...
Ah está bem, ... eu adorava brincar com os meus amigos, à apanhada, às escondidas...
(Silêncio)
Sabes, não digas a ninguém, mas eu às vezes achava a escola aborrecida...
(Silêncio)
Hum...pois. Eu também acho a escola um bocadinho aborrecida.
Gosto tanto de brincar!
 
 
Quando as crianças nos tentam conquistar ignorando o coração.
Uma pérola de 7 anos de idade.
 

Time

quarta-feira, 5 de abril de 2017

 

Virginia Woolf e o Anjo do Lar

terça-feira, 4 de abril de 2017













Dos vários ensaios de Virgínia Woolf, este "Profissões para Mulheres" é especialmente bonito e motivador.
Nele encontraremos as impressões da autora quanto à posição da mulher no mundo laboral e é realmente bonito de se ver, correndo o risco de me repetir, como a autora se coloca no seu papel, como aligeira a fama que lhe é sua por direito e de como foi traçando o seu caminho enquanto escritora.
Do nada, pegando na caneta e desatando a escrever, decidiu um dia enviar os seus artigos pelo correio. Estariam os dados lançados e o resultado daquele que viria a ser o seu primeiro salário.
Se todos, eventualmente, esperariam o investimento em compras de mercearia e outros que tais, Virgínia preferiu comprar um gato. Mais tarde, precisaria de um carro. E assim foi.
Ao longo do ensaio, mais do que a sua jornada até se estabelecer como escritora, Virginia partilha aquele que foi, porventura, o maior dos seus monstros, alargado provavelmente a muitas outras mulheres, não necessariamente escritoras (a beleza dessa partilha de pensamento reside, precisamente, aí): o anjo do lar.
O anjo do lar é aquele que na mulher lhe diz e lhe prova a sensatez dos seus atos que se querem, sempre, sensíveis e serenos. Mostrar ao homem que a mulher não tem ideias próprias, limitando-se a escrever só e apenas o factual. Uma soma de um mais um de um dois previsível, vá. Talvez lhe permitam, porque faz sentido e não induz pensamentos profundos, para lá das paredes do seu quarto.
Daqui muitas reflexões surgirão. Uma das premissas de um ensaio, creio, assenta nisso mesmo e este pequeno ensaio tem ombros largos para abarcar questões sem um fim à vista.
Será que volvidos tantos anos, a mulher está finalmente livre dos estereótipos incutidos pela diferenciação de género? Estará, de facto, um livro isento do seu real valor apenas e só pela história que invoca? E quem o escreveu, homem ou mulher, ditará tendências, preferências?
Virginia defende que o caminho já foi desbravado. A mulher, aparentemente, conquistou já um quarto só seu.
Faltará, certamente, um recheio requintado e firmado por mão de mulher. Sensível mas, nem por isso, menos capaz.
 
Obrigada, Virginia. Pelo bem que me fazes.

Os Adeuses (Juan Carlos Onetti)

sábado, 1 de abril de 2017


Li este livro em Dezembro do ano passado. Até então nunca escrevera sobre ele e acredito que a razão seja, precisamente, pela nebulosidade que ele encerra em si mesmo.
A história de um desportista no culminar da sua carreira, um sanatório, pessoas, comentários e duas mulheres. Misture tudo e ponha à prova a sua capacidade de discernimento, de compreensão mas, acima de tudo, essa capacidade de isenção perante o que se vê como prova e dado adquirido. Se viste aquilo, é porque é assim. Tenho a certeza. Será mesmo?
Na verdade, pode ser tudo menos aquilo.
Esta novela, envolvendo essa personagem peculiar, um vaivém de correspondência que incendeia a curiosidade alheia, prova de uma forma absolutamente genial, a vulnerabilidade de que todos somos feitos. Há uma necessidade visceral de acreditar em tudo aquilo que é real para nós: a nossa realidade torna-se legítima, logo, é assumida para todos como tal.
Parece simples demais, mas o livro de Onetti acaba por nos dar um ponto de reflexão muito interessante: é que na vida nada é estanque, nem absoluto. E o mais importante de tudo, num livro tão pequeno, é essa capacidade de abarcar em nós o sentimento profundo de que, muitas vezes, a vida não nos vai trazer as respostas pelas quais tanto ansiamos.
 
Desafio-o a ler e a conhecer um pouco mais de uma história que vale cada minuto do seu tempo.
Boas leituras!

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