O dicionário diz-nos que solidão traduz o estado do que está só. Isolamento. Um ermo. Um lugar despovoado.
Leïla Slimani tem solidão impresso em cada canto da sua «Canção Doce» e Louise, a ama perfeita aos olhos de todos, personifica esse lugar despovoado das pessoas mal amadas.
«Canção Doce» é a história de um casal, dois filhos pequenos e a sua ama, Louise. A junção de todos eles revelará ao leitor a urgência dos dias atuais, o tudo querer, a pressa das horas, as ambições desmedidas e as prioridades distorcidas. O resultado sairá, claro está, enviesado nas leis do que seria suposto. Eu chamo-lhe a teoria do elástico: vá puxando, até ao dia.
Myriam e Paul são um casal aparentemente feliz, que após o nascimento dos filhos, viverá a conhecida fase de adaptação e reorganização que tal implica. Os horários não serão os mesmos, os encontros com os amigos serão adiados muitas vezes, o descanso passará para um segundo ou terceiro plano e, depois, as aspirações profissionais parecem elas, também, sofrer um rumo diferente.
Myriam, mãe preocupada, decide então dedicar-se de corpo e alma à arte de ser mãe. Esticou o seu elástico até não poder mais, com prioridades circunscritas à maternidade quase patológica de que apenas ela seria a pessoa indicada para assegurar o bem-estar da menina. E do menino, nascido pouco tempo depois.
Um dia, porém, no reflexo de Paul, cada vez mais de encontro às suas próprias aspirações profissionais e ao delineamento do seu próprio caminho, Myriam quis o mesmo. Exigiu o mesmo. Afinal, tinha tanto direito quanto Paul a exercer as suas excelentes competências de advogada, outrora a melhor e mais dedicada aluna de Direito.
Não pretendo crucificar o leitor com as mazelas que o nascimento de um filho traz, inevitavelmente, à vida de um casal mas é, precisamente, nesse seio disfuncional de prioridades e anseios que Myriam e Paul decidem ter chegado a hora de contratar uma pessoa para cuidar das suas crianças enquanto estes pudessem, na mesma medida, dedicar-se às suas carreiras profissionais.
Louise surge nas suas vidas como a verdadeira fada do lar. E como diria Fernando Pessoa, se primeiro se estranha, acreditem, que depois de uns dias com Louise, o ambiente tranquilo, arrumado e sereno entranhou-se facilmente em todos eles.
O problema das pessoas aparentemente perfeitas é andarem de mão dada com uma espécie de invisibilidade. Não há espaço ao erro, a delicadeza de cada gesto é tanta que, por isso mesmo, nem se nota. E espera-se, por isso mesmo, apenas mais e mais perfeição.
Gradualmente, numa espécie de vórtice aterrador, Myriam e Paul assumem Louise como parte integrante dos seus dias, da perfeição da casa e inclusivamente, da disciplina exemplar transmitida aos filhos. Quanto mais Louise fazia, por um amor incondicional que lhe cresceu pelos meninos e pela família, mais o casal assumiu a implacabilidade da frágil mulher. A perfeição tem destas coisas.
O que ninguém sabe, porém, é que a perfeição veste-a Louise como um desses escapes a olhos desatentos, de quem tanto procura um lugar que a dignifique pelo que é, não pelo que faz, e muito menos por um passado a que não se apega. Que não deseja. Que não sente seu.
Um livro brilhante sobre o descaramento do egoísmo, os afetos distorcidos, os estatutos engavetados, a solidão e a necessidade de amor. No fim, essa necessidade, quase sempre, caminha no sentido oposto daquela que seria uma verdadeira canção doce.
Recomendo com todas as mãos. Recomendo a todos os bons leitores. Recomendo a toda a gente!
O meu enorme obrigada à Penguin Random House, pela oferta.