O ano de 2015 está a revelar-se um ano muito feliz em leituras. Ainda não vivi uma desilusão propriamente dita com um livro e os três últimos, curiosamente todos eles da QUETZAL, foram abismais. O livro de Manuel Jorge Marmelo, o livro que hoje vos trago, foi a cereja no topo do bolo.
Um autor que há muito queria conhecer. Depois de numa estante ter avistado "O Amor é para os Parvos", despertou-me uma curiosidade enorme em conhecer o autor. Não foi com aquele livro, não calhou. Foi com este, que foi um presente. Um grande presente.
«O Tempo Morto é um Bom Lugar» é uma severa crítica a este nosso Portugal. A uma crise que se instalou como as térmitas que se instalam na madeira e vão roendo, mordazes.
Também mordaz é o autor, na forma como usa o dom da palavra escrita para atacar, no sítio certo, que é obviamente na ferida que mais dói.
Sempre vi o nosso país, antes da crise, como um adolescente no auge da sua adolescência: ansioso pela sua autonomia, um dizer adeus aflito e urgente aos pais, que já não precisa e até se envergonha. Agora com pelo na venta, precisa de respirar o ar da rua por ele mesmo, sacar do dinheiro do bolso (assegurado pelo trabalho da mãe e do pai, mas isso não interessa nada porque uma vez que já sai sozinho à noite, já se sente e é independente!) e beber umas quantas cervejas, conquistar amores que lhe inquietam o corpo. Num resumo barato: ser autónomo sem questionar.
O nosso Portugal foi assim, antes de colapsar. Um adolescente inconsequente que saiu à rua, para ir à discoteca, beber uns quantos copos, embriagar-se nessa dança de autonomia assegurada por pais que temem pela sua segurança. Até ao dia em que é, mesmo, preciso crescer. Em que é, mesmo, preciso ser verdadeiramente autónomo. Em que os pais se passam, já não querem saber mais. Em que a chamada aranha em que as crianças aprendem a andar, lhes é tirada. Por alguma coisa os médicos não a recomendam. Mas isso, aqui entre nós, são meros acrescentos.
Agora, é preciso caminhar pelo próprio pé e Portugal sente, então, que é realmente pequeno e indefeso. Surge em si, assim, uma pequena crise que só vê em si mesmo a tendência a crescer. Até rebentar pelas costuras.
Manuel Jorge Marmelo, com Herculano Vermelho, um jornalista desmotivado e descrente em si mesmo e no mundo, transfere na personagem todas as definições de um país infeliz, fora de validade e as consequências disso mesmo nas pessoas que nele habitam.
Consequências essas em que o tempo morto que se vive numa prisão começa a sentir-se como feliz e libertador:
"(...) aproveitando este calmo lugar para pensar na vida e meditar sobre assuntos que, lá fora, nem sequer nos ocorrem, tão distraídos andamos com o constante rol de obrigações e contas para pagar." (p.58)
Onde se vive um tempo morto que suscita na mente adormecida pensamentos concretos, de quem se revela agora numa outra realidade, afinal, tão próxima da que vivia antes:
"(...) mas a experiência do confinamento não é, afinal, muito mais constrangedora do que as apresentações quinzenais na junta de freguesia a que os desempregados estão obrigados. Para todos os efeitos, o sujeito a quem o patrão tenha despedido é culpado do crime de ócio passivo involuntário conforme o artigo décimo sétimo do decreto-lei numero 220/2006, de três de Novembro, e, deste modo, objecto de um regime de liberdade condicionada como outro meliante qualquer." (p.69)
Há momentos em que sentimos, no argumento mordaz do jornalista, que viver nesse tempo morto nos fará muito mais felizes. A vontade de sermos verdadeiramente presos. O paradoxo de viver a realidade tal como é. Como se fossemos umas pequenas peças de Lego, a brincar ao faz de conta, com um Deus estranhamente irónico que nos prende sob a falsa promessa de uma (condicionada) liberdade.
Mais do que uma crítica ao país que vivemos, o livro sublinha as escolhas. Serão as escolhas consequências do lugar onde vivemos? Será o país pequeno e encolhido que condiciona as escolhas fáceis e a vontade de fama instantânea? Como as mousses de chocolate, que é misturar e já está? Será toda essa mistura consequência dos caminhos que tomamos? Será esse contexto o útero de pequenas mentes que anseiam por reconhecimento apenas por se enfiarem numa casa enquanto comem e se comem à vista de todos? Será?
Manuel Jorge Marmelo permite-nos, dessa forma acutilante e inteligente, questionar sem parar até tentarmos encontrar a resposta que, pelo menos, acalme a inquietação em que nos coloca.
"Preciso de que as mulheres gostem de mim, mesmo se não chego a entender muito bem a pulsão que as leva a entregarem-se a um tipo como eu, capaz de se envolver apenas parcial e frivolamente, e que não tem mais nada a partilhar que não seja esta estranha angústia e o fracasso que carrego como uma nuvem escura sobre a cabeça." (p.118)
E há esse, pois há. Há o amor. Ou o desejo dele, em nós. A sua procura, apesar de cansada. Desmotivada. Descrente.
Também Herculano Vermelho o procurou em Soraya Évora. Também Soraya Évora o procurou em Ricardo, em Maria e, por fim, em Herculano.
Mas as dúvidas, essas, parecem permanecer como aquele tempo morto, afinal, o melhor lugar de todos. Que não questiona. Que não pede. Que entorpece.
Mais do que recomendado!
Boas leituras.