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1 de abr. de 2010

Dia Internacional do Homem?

O  Elcio Tuiribepi me convidou para participar de uma brincadeira nesse 1 de abril. Seu blog está promovendo uma blogagem coletiva em homengagem ao Dia Internacional do Homem:
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Escolhi uma crônica de Fernando Sabino para animar essa festa:
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Aldemir Martins - Menino
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Menino
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Menino venha pra dentro, olhe o sereno! Vá lavar essa mão. Já escovou os dentes? Tome a bênção a seu pai. Já pra cama!
Onde é que aprendeu isso, menino? Coisa mais feia. Tome modos. Hoje você fica sem sobremesa. Onde é que você estava? Agora chega, menino, tenha santa paciência.
De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe? Isso, assim que eu gosto: menino educado, obediente. Está vendo? É só a gente falar. Desça daí, menino! Me prega cada susto... Pare com isso! Jogue isso fora. Uma boa surra dava jeito nisso. Que é que você andou arranjando? Quem lhe ensinou esses modos? Passe pra dentro. Isso não é gente para ficar andando com você.
Avise a seu pai que o jantar está na mesa. Você prometeu, tem de cumprir. Que é que você vai ser quando crescer? Não, chega: você já repetiu duas vezes. Por que você está quieto aí? Alguma você está tramando... Não ande descalço, já disse! Vá calçar o sapato. Já tomou o remédio? Tem de comer tudo: você acaba virando um palito. Quantas vezes já lhe disse para não mexer aqui? Esse barulho, menino! Seu pai está dormindo. Pare com essa correria dentro de casa, vá brincar lá fora. Você vai acabar caindo daí. Peça licença a seu pai primeiro. Isso é maneira de responder a sua irmã? Se não fizer, fica de castigo. Segure o garfo direito. Ponha a camisa pra dentro da calça. Fica perguntando, tudo você quer saber! Isso é conversa de gente grande. Depois eu dou. Depois eu deixo. Depois eu levo. Depois eu conto.
Agora deixa seu pai descansar - ele está cansado, trabalhou o dia todo. Você precisa ser muito bonzinho com ele, meu filho. Ele gosta tanto de você. Tudo que ele faz é para o seu bem. Olhe aí, vestiu essa roupa agorinha mesmo, já está toda suja. Fez seus deveres? Você vai chegar atrasado. Chora não, filhinho, mamãe está aqui com você. Nosso Senhor não vai deixar doer mais.
Quando você for grande, você também vai poder. Já disse que não, e não, e não! Ah, é assim? Pois você vai ver só quando seu pai chegar. Não fale de boca cheia. Junte a comida no meio do prato. Por causa disso é preciso gritar? Seja homem. Você ainda é muito pequeno para saber essas coisas. Mamãe tem muito orgulho de você. Cale essa boca! Você precisa cortar esse cabelo.
Sorvete não pode, você está resfriado. Não sei como você tem coragem de fazer assim com sua mãe. Se você comer agora, depois não janta. Assim você se machuca. Deixa de fita. Um menino desse tamanho, que é que os outros hão de dizer? Você queria que fizessem o mesmo com você? Continua assim que eu lhe dou umas palmadas. Pensa que a gente tem dinheiro para jogar fora? Tome juízo, menino.
Ganhou agora mesmo e já acabou de quebrar. Que é que você vai querer no dia de seus anos? Agora não, que eu tenho o que fazer. Não fique triste não, depois mamãe dá outro. Você teve saudades de mim? Vou contar só mais uma, que está na hora de dormir. Agora dorme, filhinho. Dê um beijo aqui - Papai do Céu lhe abençoe. Este menino, meu Deus...
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Fernando Sabino
Elenco de cronistas modernos. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1978
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28 de out. de 2007

TRÊS parceiros, meus amigos para sempre ...

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TRÊS parceiros, meus amigos para sempre...
A amizade com Hélio Pellegrino começou no Jardim de Infância em Belo Horizonte, ambos com seis anos de idade. Depois fomos colegas de grupo escolar e de ginásio. Embora ele tenha ido então estudar Medicina e eu Direito, continuamos amigos a vida inteira, conforme narrei no livro “O Tabuleiro de Damas”.
Com Otto Lara Resende, o primeiro encontro foi na adolescência, em casa de João Etienne Filho, do jornal católico O Diário, que nos emprestava livros. Otto me revelaria mais tarde que ficou impressionado comigo porque eu conhecia marcas de automóvel, era campeão de natação e só falava futilidades. Já havíamos estado juntos anos antes: foi no meu tempo de escoteiro. Ele também era escoteiro em São João Del Rei, e veio numa delegação a Belo Horizonte nos visitar. Na sede da nossa Associação havia um fio elétrico desencapado junto ao soalho: a brincadeira era pisar onde dava choque e passar o choque para quem nos segurasse a mão. Otto costumava dizer que levou a vida inteira tentando lhe dar esse choque... Passamos a nos ver quase toda noite na Folha de Minas, onde eu já trabalhava, ou nos bares vizinhos, juntamente com o Hélio, de quem ele também se tornara amigo. Logo o Paulo se juntava a nós.
A primeira vez que vi Paulo Mendes Campos foi na varanda da casa do cônsul inglês, durante uma festa em que havia entrado de penetra (provavelmente ele também) para namorar uma menina. Eu já havia reparado naquele rapazinho de cabelo caído na testa, que passava o tempo todo de lá para cá na varanda onde estávamos (se não me engano já meio triscado), empatando o nosso namoro. Acabamos os dois iniciando ali mesmo uma discussão sobre literatura, cada um querendo mostrar mais conhecimento que o outro, para impressionar a menina. Um de nós (como já tive ocasião de contar, sem revelar qual dos dois para não ser deselegante) sustentava que Dom Quixote era escrito em versos.
Ficamos amigos, e a discussão, como o choque no Otto, se estendeu pela vida afora (não sobre Dom Quixote, é claro).
Andávamos dia e noite juntos, os quatro (ou três, para falar mal do ausente), conversando sem parar – éramos o que se poderia chamar de peripatéticos. Havia um banco na Praça da Liberdade, o nosso banco, onde invariavelmente encerrávamos a noite, às vezes já nascendo o dia. Era ali que “puxávamos angústia”, espécie de ritual daquilo que chamávamos, parodiando Unamuno, de “sentimiento trágico de la vida”
Nossos sentimentos não diferiam dos que nos podiam inspirar outros amigos. A singularidade talvez estivesse na espontânea convivência diária em Belo Horizonte e depois no Rio (com viagens de permeio) durante cerca de cinqüenta anos. Uma convivência nem sempre muito tranqüila - às vezes sujeita a chuvas e trovoadas. Mas ao longo da vida me dei bem igualmente com todos os três, cada um a seu jeito. Hélio, o apaixonado, o possuído, o destemperado – eu, mais contido e organizado, mas ao mesmo tempo desastrado e obsessivo (ou obsedeque, na linguagem pellegrinesca). Paulo, arisco, enigmático, reflexivo – eu, mais solto aberto, desabusado. Otto, indeciso, pessimista, deprimido – eu, extrovertido, otimista, intempestivo. Tínhamos pouca coisa em comum, além da paixão literária. E do senso de humor.
O meu otimismo um tanto exacerbado costumava provocar reações, principalmente face ao pessimismo declarado do Otto. Vivíamos todos em estado quase permanente de discussão. Discutíamos tudo, não importava o tema : da Nova República à Assunção de Nossa Senhora. Discussões tão acaloradas que mais de uma vez aconteceu trocarmos de lado só para continuar a discutir:
- O que você está dizendo é uma bobagem . Vou mostrar como devia defender o seu ponto de vista.
-Pois então mostre, que eu mostro o seu ...
Com isso a discussão jamais teria fim. Mas se me perguntem “E vocês se entendiam?”, eu diria que sim. Embora as divergências fossem fundamentais. Éramos sempre implacáveis, por exemplo, no julgamento da produção literária de cada um. E acredito que esse rigor crítico nos foi extremamente valioso: impediu que a gente escrevesse muita bobagem.
(Ou não impediu...)
Rebeldes, inconformados, nos insurgíamos contra a ordem constituída e tudo que representasse instituição, fosse a direção do Colégio , o Governo, a Cúria Metropolitana. Uns mais, outros menos, éramos católicos. Todo ano fazíamos a Páscoa dos Militares, recebendo Comunhão no meio deles. Por que dos militares? Idéia do Hélio – talvez para desafiar os donos do poder, que não podiam nos impedir.
Cada um evoluiu a seu jeito. Houve época em que Paulo andou tangenciando o Partido Comunista – talvez fosse apenas agnóstico. Hélio foi militante do PT – em matéria de fé, sempre era uma convulsão da natureza: reivindicava a aceitação do dogma da ressurreição da carne como postulado do seu Partido. Otto, voltado para um catolicismo mais vivenciado espiritualmente – nenhum de nós no fundo perdeu a fé, que eu saiba.
O que predominava mesmo vinha a ser a irreverência... Éramos intransigentemente contra as convenções e conveniências, a começar pela institucionalização de nossa amizade. Tanto assim que nunca conseguimos como amigos fazer juntos nada de útil, com a graça de Deus. Nunca fomos sócios em coisa alguma. Sempre fizemos questão de não tirar proveito de nossa tão espontânea amizade.
Deu trabalho a revisão destas cartas, já meio esfrangalhadas de tão antigas. Trabalho insano, tão somente justificado pela insanidade do remetente (e por extensão dos destinatários). Haja vista o tom descontraído do texto em geral, com as suas incorreções, distrações, distorções, repetições, contradições, alguns palavrões e outros senões. Ainda assim (ou por isso mesmo), é possível que o conteúdo da minha correspondência a eles dirigida ao longo de tantos anos dê pelo menos uma pálida idéia de como a relação que nos unia foi fundamental para cada um de nós.
Para mim, pelo menos. Posso mesmo afirmar que, se eu não tivesse conseguido fazer mais nada na vida, esta amizade tão intensa, duradoura e valiosa, já teria sido o melhor que eu poderia desejar.
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Fernando Sabino - CARTAS NA MESA - Editora Record
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