Quarta de
uma família de sete filhos, minha mãe aprendeu logo cedo a cozinhar, enquanto
os outros irmãos se dividiam nas demais tarefas da casa. Assim, a cozinha
sempre foi o território que minha mãe mais dominava, aprendendo a fazer pratos
para o sustento e deleite da família. Eram comidas simples, mas caprichadas e
que foram sendo aprimoradas no decorrer dos anos, nas aulas de culinária do
Sesi, no casamento, na maternidade e nas receitas que passou a acumular vida a
fora e que se tornaram um de seus maiores prazeres, mesmo que anotadas em
lugares cada vez mais estranhos - desde que ao alcance das mãos -, como um
ingresso de show deixado na estante e que não tinha sido usado.
Essas
lembranças me chegaram com força ao ler Uns
Cheios, Outros em Vão, da escritora carioca Heloísa Seixas. O livro traz
receitas da mãe da autora, dona Maria Angélica, e contam histórias da família,
uma saborosa viagem por lembranças e pratos que evocam a infância tanto da
autora, quanto do leitor em si. E foi assim que me identifiquei de imediato com
a leitura, indo às lágrimas, especialmente no trecho que Heloísa fala do velho
livro de receitas da mãe, encontrado ao remexer no armário da casa:
“(...) Fazia quase tudo de cabeça,
inventava, acrescentava ingredientes -
como costumam fazer todos os bons cozinheiros – e não sabia explicar muito bem
como tal e tal prato era feito.
Talvez por isso seu livro de receitas
seja uma loucura, com doces e salgados misturados, palavras remendadas, páginas
faltando e também dezenas de folhas soltas, incluindo anotações de receitas em
pedaços de papel de pão, no verso de folhetos com anúncios ou nas bordas dos
manuais do liquidificador ou da batedeira de bolo. (...)”
Era bem
assim o caderno de receitas da minha mãe, a dona Nair, que, diferente do da
escritora, acabou se perdendo, infelizmente. No entanto, minha irmã, quando se
casou, passou a fazer um caderno de receitas também, anotando os pratos que
minha mãe ensinava, que ainda se conserva, depois de 39 anos (foto), quer dizer,
está no mesmo estado que o da mãe da Heloísa, caprichado ao início, mas com
receitas doces e salgadas misturadas, folhas soltas, páginas faltando, e já com
a letra da minha mãe dominando a maioria das folhas, nas laterais e do jeito
que desse.
Uns Cheios, Outros em Vão chegou até a mim em 2015, no
Pauliceia Literária, evento literário internacional, promovido pela Associação
de Advogados de São Paulo. Heloísa Seixas participou de uma mesa com o escritor
e biógrafo Ruy Castro, que é seu marido. Eu já tinha lido dois livros dela – O Lugar Escuro e O Prazer de Ler – e fiquei interessada em Uns Cheios e Outros em Vão, por misturar lembranças com receitas, mesmo não gostando de cozinhar, diferente da minha mãe e irmã.
Aproveitando
que a autora estava no evento, levei o livro para ela autografar, e comentei sobre O Lugar Escuro, livro ficcional que
trata da doença de Alzheimer que acometeu a mãe de Heloísa. Na dedicatória, a escritora fez
referência a esse fato, escrevendo:
“Cecilia, aqui vai o contraponto de ‘O
Lugar Escuro’
Com um beijo,
Heloísa Seixas
SP, 24 Set 2015”
De fato, ao
ler Uns Cheios, Outros em Vão
percebe-se essa diferença. Enquanto em O
Lugar Escuro vemos Maria Angélica esquecendo-se das coisas, de si e dos
seus, não tendo mais ciência dos seus atos, por causa do Alzheimer, em Uns Cheios, Outros em Vão, ela se mostra
em todo o seu esplendor, ativa, vibrante, moderna, elegante, baiana de nascença
e carioca por adoção, apaixonada pelas receitas e pela vida:
“Ela era o que naquele tempo se
chamava de ‘mulher avançada’. Entre outras coisas, era amiga de muitos dos meus
amigos – relacionando-se com eles sem a minha participação – e em mais de uma
ocasião acampou conosco em Visconde de Mauá. Viajou com uma amiga para Marrakech,
onde experimentou bolinho de maconha (ficou tonta). Em uma de suas viagens ao
Havaí, frequentou, junto com a juíza que tinha feito o casamento do meu irmão,
o tal campo de nudismo...”
Dona Maria
Angélica era dada a ditados, sempre tinha um em mente, e um deles inspirou o
título do livro. Uns Cheios, Outros em Vão
significa que na vida, assim como nas receitas de bolo, não se pode ter tudo – uns
copos ficam cheios, outros em vão. Ela ensinava à filha.
Heloísa
começou a organizar o livro em 2012, quando sua mãe, que já estava com Alzheimer
há dez anos, fora hospitalizada com pneumonia. vindo a falecer três meses
depois. Alguns dos textos que constam no livro, já foram publicados em partes
ou ao todo, em revistas ou coletâneas. Outros são inéditos e trazem lembranças
da infância da autora, que passava férias na Bahia, na casa dos avós e dos
tios, contando as peripécias dos primos – um dos seus primos era Raul Seixas
chamado de Raulzito - e os costumes e tradições da família. As histórias são
entremeadas pelas receitas do velho caderno de dona Maria Angélica, como a do
Bacalhau de Forno, feito nas festas natalinas:
Ingredientes:
Azeite (é o azeite de oliva que
usamos, e é chamado assim porque para os baianos, azeite é o de dendê)
1Kg de Bacalhau
1½ cabeça de alho
Pimenta do reino
4 cebolas
4 pimentões
4 tomates
4 batatas
Sal
Modo de preparo:
Unte um pirex com azeite doce, em boa
quantidade. Arrume nesse pirex os pedaços de bacalhau previamente fervidos e,
em cima de cada pedaço, ponha um dente de alho, uma pitada de pimenta do reino,
uma rodela de cebola, outra de pimentão, outra de tomate e, por fim, uma rodela
de batata crua, Regue com mais azeita e leve ao forno para assar. Quando as
rodelas de batatas estiverem douradas, retire do forno.
Devorei o
livro como se devora uma comida saborosa, mas procurando reter o prazer mais um
pouco. Marquei algumas receitas do livro para tentar preparar mais para
frente, quem sabe... Tenho até um livrinho do Sesi, com receitinhas básicas,
que minha mãe me deu. Foi com ele que me aventurei em alguns pratos, e guardo-o
com muito carinho. Apesar de não saber fazer muitas coisas, eu me esforço e procuro
sempre dar o meu melhor. Acho que a Dona Nair teria orgulho.