Às vezes me pego fazendo um gesto, pode ser com os braços ou pernas, um jeito de olhar ou de virar a cabeça, sentar na poltrona ou levantar dela, seja o que for, me sinto como minha mãe. Explicando melhor, é como se fosse ela fazendo o movimento, ou melhor, como eu a via fazendo. É minha mãe vivendo em mim e eu vivendo nela. Pode ser bom, mas também pode não ser. Prefiro pensar que é uma memória ou a carga genética que me cabe, porém continuo sendo eu, nem mais e nem menos.
Essas reflexões passaram pela minha cabeça quando li Uma Duas, o primeiro livro de ficção da jornalista e escritora Eliane Brum, que narra a complicada relação entre mãe e filha, os laços que as unem – e separam, o conflito de sentimentos que vão do amor ao ódio e vice-versa. Pelo menos era isso o que dizia a sinopse e, de certa forma, era desse material que o livro se compõe. No entanto, o que li nas 175 páginas foi muito além disso e, confesso, que fiquei embasbacada.
Da estranheza inicial ao incômodo, passando pela dor e pela emoção, cheguei ao encantamento e êxtase, li Uma Duas quase que de uma tacada só: em quatro dias, levando-se em consideração que leio somente no metrô, no caminho da cada para o trabalho e do trabalho para casa, com uma média de 50 minutos em cada turno, um pouco mais, talvez, avaliando às vezes que me deixei passar da estação de desembarque só para não interromper a leitura.
Composto com tipologia diferenciada, com letras em vermelho, ora mais fortes (negrito), ora mais suaves ou ainda em itálico, o livro é narrado em três pessoas: um ”suposto” narrador, a filha e a mãe, respectivamente nas três situações da tipologia mencionada acima.
O vermelho sugere sangue, por se tratar de uma narrativa difícil que expõe sentimentos nem sempre visíveis em uma sociedade de aparências. Nisso a autora, conhecida por descrever, com emoção, histórias da vida real, consegue transpor para a ficção os segredos mais insondáveis – e nem sempre bonitos – do relacionamento entre mãe e filha.
A história começa com a filha, que é jornalista, começando a escrever um livro de ficção, revelando já nas primeiras linhas o desejo de se libertar da mãe, porque a sente em seu próprio corpo, como que impregnada. A dificuldade nessa libertação marca o tom do sofrimento, esculpido a sangue:
“...Começo a escrever este livro enquanto minha mãe tenta arrombar a porta com suas unhas de velha. Porque é realidade demais para a realidade. Eu preciso de uma chance. Eu quero uma chance. Ela também.
Quando digito a primeira palavra o sangue ainda mancha os dentes da boca do meu braço. Das bocas todas do meu braço. Depois da primeira palavra não me corto mais. Eu agora sou ficção. Como ficção eu posso existir...”
Quando digito a primeira palavra o sangue ainda mancha os dentes da boca do meu braço. Das bocas todas do meu braço. Depois da primeira palavra não me corto mais. Eu agora sou ficção. Como ficção eu posso existir...”
A narrativa passa então para o suposto narrador e ficamos sabendo que Laura, a filha calada e cheia de cicatrizes pelo corpo (uma forma de se libertar do corpo da mãe), já não vive com sua progenitora, Maria Lúcia. Esta, também de poucas palavras, é encontrada em condições lastimáveis – e bastante doente – em seu apartamento, o que faz com que a filha tome a decisão de abandonar o emprego para cuidar – e de certa forma se vingar e se livrar da dominância – da mãe. Começa então o embate, com cada uma expondo, pela escrita, suas verdades, suas confissões, suas histórias, numa crueza total de sentimentos, revelando baixeza e sordidez, como quando a mãe confessa ter afogado os filhos que teve antes de Laura:
“O monstrinho júnior se arrastava sobre o meu corpo e queria sugar os meus seios. O monstrinho pai dizia que eu precisava deixar, mas eu não deixei. Não mesmo. Aquela coisa já tinha me sugado pelo lado de fora. Gritei que o jogaria na parede se não o tirasse de cima de mim. E o homenzinho teve a ousadia de me olhar com ódio, nem disfarçou. Quando ele saiu para trabalhar, e eu tive forças para me arrastar peguei o pedaço de carne e afoguei na privada. Sim, eu fiz isso. E nunca me arrependi. Só descobri que estava absolvida quando li uma reportagem de Laura sobre depressão pós-parto. Não me importei. Eu nunca me senti culpada por isso. Fiz outras três vezes ainda...”
A história prossegue, com as tensões se acentuando e chegando ao clímax, mas embora o ódio entre as duas seja tão aparente, ainda é possível encontrar amor nessa relação. Da mesma forma que é possível entender as razões, tanto de uma quanto de outra para os ressentimentos que as cercam.
Costumamos gostar de um livro na medida em que nos identificamos com ele. Confesso que foi difícil de me identificar, afinal nunca tive problemas sérios de relacionamento com minha mãe, não no nível da história do livro. De certa forma, porém, consegui me identificar nas entrelinhas, nas histórias de pessoas que conheço e também na delicada relação com familiares, embora ela não seja tão massacrante e agressiva quanto à exposta na obra.
Uma Duas é um livro intenso, forte, incômodo, emocionante. Enfim, uma boa estreia de Eliane Brum na ficção.