sábado, fevereiro 06, 2010

CRIANCIAÇÃO VIII

CRIANCIAÇÃO XIII


choveu a nuvem toda
sobre a casa papelão
e folha e galho e bicho
meu irmão pusera tela
de nada impermeável
sob o sol a casa está
coisa viva de cristais
e gotas d'água e folha e bicho
e a gente quando dentro
vira bicho também dela
e coisa viva de cristais
e gotas d'água e folha e galho


IMAGINÂNCIA

IMAGINÂNCIA


Tudo na lembrança era imagem. O som era a imagem do som, algo assim que não se escuta, mas capaz de indicar que um dia se ouviu. O cheiro era a imagem da reação ao odor. As sensações eram cores e às vezes escuridão. E a imagem, que já era imagem antes da lembrança, dentro dela se transformara na imagem da imagem, o que desbotara a figura primeira até sobrar apenas um vulto ou a imagem da imagem de um vulto.

Hoje, porém, nasceram as palavras. Elas que vieram dar continuidade à memória que já não se sustenta por si. As palavras aptas a ligar a lembrança ao agora. Elas brotaram brutas e cientes de seu poder. A imagem do som virou letra escrita, assim como a forma do odor e das sensações. Nem mesmo o vulto ou a imagem da imagem resistiu à avalanche destrutiva das palavras, e, caso não se faça algo imediatamente, toda a sua vida está sujeita a se transformar, de um respirar para o outro, em uma inversão perigosíssima do que seria a poesia.

terça-feira, abril 14, 2009

IV

osilêncioéumaparáfrase.

segunda-feira, março 23, 2009

V. (gatos)

V.

meio a pêlos eriçados

altos muros violetas

troncos folhas borboletas

vivem os antepassados

que em silêncio narram mitos

sobre os saltos dos cabritos

e as gatas atrevidas

que por mais que não se conte

já mergulharam na fonte

que concede sete vidas



quinta-feira, fevereiro 26, 2009

CONSTATAÇÃO DA FEDORA ATUAL

CONSTATAÇÃO DA FEDORA ATUAL



Fedora coleciona desejos:

guarda suas ambições em esferas de vidro
e, ao se anularem as possibilidades
de ser tudo o que quis e não foi,
contempla seus projetos com um reconhecimento desdenhoso,
agitando as esferas de vidro
para esvoaçar dentro de si
os opacos flocos brancos do seu passado frutífero.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

IRENE E O ENIGMÁTICO ALCANCE

IRENE E O ENIGMÁTICO ALCANCE



Irene é um ser ao longe.

Mantendo uma relevante distância,
pode-se admirar as pinturas
de sua pele
em explosões multicoloridas.

Seu canto quase inaudível
atinge-nos feito eco
e, às vezes,
mas apenas de olhos fechados,
quase nos toca as orelhas com a ponta dos lábios.

Alguém, no entanto, reconhecerá
na inevitável ausência de uma esfinge
a tenaz dúvida desta entidade:
Irene é um ser ao longe,
e será que, alcançado o patamar do seu corpo,
encontrar-se-á tão somente um cadáver
envolto em vaga-lumes e insetos barulhentos
que nada sabem de mim?

terça-feira, fevereiro 10, 2009

TRANSMUDAR

TRANSMUDAR


No presente da esfera,
um querer inanimado
por um ato inominado
de assumir função de hera.

quarta-feira, janeiro 14, 2009

SOBRE A BELEZA FRÁGIL

SOBRE A BELEZA FRÁGIL



Ele era belo
e oco.

Um dia, abriram-lhe a boca oca
e as orelhas e as narinas limpas
e o ânus e a cabeça vazia
e em todos os orifícios
enfiaram pequenas lanternas.

Oh, triste e magnífica constatação!

Ele era belo e oco
e ecoava dentro de sua carcaça
o brilho reflexivo
de um milhão de teias de aranha.

segunda-feira, dezembro 29, 2008

METAMOR

METAMOR


lascivos baques
de um coração
que casula
descrisálidam-no
almaque
de expressões
seminulas

quarta-feira, dezembro 24, 2008

NARCISO ou SOLIDÃO ABSOLUTA

NARCISO ou SOLIDÃO ABSOLUTA


espalho
espelhos
pelos
olhos
alheios


segunda-feira, dezembro 01, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - LAR

ANTÔNIO DESLUMBRADO NO OCEANO DE AREIA



Lá não se via ninguém, apenas rastros de passagens distantes no já foi e possibilidades de encontros em um por vir difícil de supor.

Quando Antônio Deslumbrado finalmente se depara com a indefinição vertiginosa do mar, o que mais lhe prende a atenção são os banhistas, os pescadores e os transatlânticos desbancando a unidade infinita das águas. À primeira vista, o oceano lhe parece tão gigantesco quanto é uma lágrima na terra seca de sua casa.

— Oh, quão maravilhosa é a vastidão do meu sertão, cuja maior virtude é não caber em si de solidão!

sexta-feira, novembro 28, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - FELICIDADE

ANTÔNIO DESLUMBRADO NA CAMINHADA CIRCULAR



A imensidão que acolhia Antônio antes que este resolvesse descobrir o mundo não era suficiente para suportar tudo o que nele havia de curiosidade e desejo efêmeros. Para o alívio da alma de Antônio Deslumbrado, era preciso abrir a porteira cuja cerca impedia a expansão do horizonte.

Em seu caminhar trôpego, Antônio Deslumbrado se depara com um velho andarilho conhecedor de diversos pedaços avulsos do mundo. Este lhe fala da austeridade de Machu Pichu, da dor no teatro japonês, do fervor do cinema indiano e das cores da sequidão. Entretanto, lamenta-se profundamente por ter perdido a consciência divisória de lar, a qual limitaria o espaço para onde gostaria de voltar e descansar neste instante.

— A felicidade é o nunca.

quarta-feira, novembro 26, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - SOLIDÃO

ANTÔNIO DESLUMBRADO NA BOATE SOLIDÃO



Estar só, para Antônio Deslumbrado, era vagar na imensidão dos dois mundos que habitava: o dentro e o fora. Em seu lar, não se corria o risco de ser interrompido em seu vazio, visto que o mínimo de animais que ele poderia encontrar naquelas bandas de secura, todos eles, respeitavam-no, ficando, assim, as divagações livres para suprimir o universo por completo.

Antônio Deslumbrado entende menos ainda a cidade à noite, quando as pessoas parecem querer desengolir algo que puseram pra dentro a contragosto. Pára em uma boate, lugar que lhe disseram ser ótimo para espairecer, e encontra um ninho de pessoas ávidas para vomitar seus males, esgueirando-se e se tocando em uma solidão desconcentrada.

— O que falta nesta cidade é chão para ficar só e não ser interferido pelos enganos do ego.

sexta-feira, novembro 21, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - MEMÓRIA

ANTÔNIO DESLUMBRADO NO TRONCO HISTÓRICO



Não é que Antônio Deslumbrado levasse uma vida frustrante. Onde vivia seco, qualquer coisa possuía extensões de seus sentimentos. Tudo a sua volta estava marcado com pegadas de suas recordações, marcas de seu amor e sua melancolia. O que o fez deixar seu mundo de espelhos foi a inquietude nascida no desejo de conhecer tudo o que não era ele próprio.

Antônio Deslumbrado chega ao logradouro que lhe disseram ser considerado o bairro histórico da cidade e se sente angustiado. Procura razões nos casarões antigos, na arquitetura luxuosa, nas alamedas simétricas, nos calçamentos de mosaico e nas luminárias dançantes, mas nada sente. Desiludido, pára e descansa sobre as raízes de uma velha árvore cujo tronco, ele vê, está repleto de declarações de amor escritas a canivete em tempos indizíveis.

— Graças a Deus! Finalmente encontrei o monumento histórico essencial deste lugar pobre de sinalizações!

quarta-feira, novembro 19, 2008

ANTÔNIO DESLUMBRADO - FOME

ANTÔNIO DESLUMBRADO NO PERCURSO DA FOME



Maria Doçura, todas as manhãs, dançava milho às galinhas. Não era simplesmente o ato de alimentá-las fisicamente; ela se comunicava e nutria suas almas através dos movimentos encantados e do calor dos seus poemas corporais.

Comendo desajeitado algo que conseguira numa bodega generosa, Antônio Deslumbrado é desafiado por um cão de rua. Muito magro, o animal emite um pedido fino e, após receber o alimento cedido por Antônio Deslumbrado, se põe a seguir seus passos.

— Venha comigo e descobrirás que comer apenas por fome não é o suficiente quando se conhece Maria Doçura, minha musa.