Intimado a responder pelo meu alegado estatismo, vejo-me perante duas perplexidades. A primeira é saber o que é que o meu inquiridor entende por «Estado»; e a segunda é saber, uma vez definida esta entidade, se para ser estatista é preciso defendê-la ou se basta reconhecer a sua existência e a sua inevitabilidade.
Para muita gente - incluindo muitos jovens turcos deslumbrados pelo neoliberalismo - o Estado é fácil de definir: consiste muito simplesmente em todo o poder político que intervém (que «interfere», dizem eles) no funcionamento do Mercado. Esta noção é vastíssima, como facilmente se entende. Inclui todas as formas de organização da sociedade: tribo, cidade, república, teocracia, feudalismo, despotismo iluminado, despotismo oriental, monarquia de direito divino, caudilhismo carismático, etc. Tudo isto, porque não é Mercado, é Estado; ou seja, o monstro, o Moloch que tudo devora e que nos impede de ser livres e prosperar.
Fosse esta a minha noção de Estado, e eu seria mesmo assim estatista - não no sentido de defender estas formas de organização da sociedade, a maior parte das quais me repugna profundamente, mas no sentido de reconhecer a necessidade duma organização política qualquer (a mera anarquia seria sempre pior) e a inevitabilidade do estabelecimento de relações de poder - isto é, políticas - em todos os grupos humanos.
Os seres humanos têm a natureza que têm: é tão natural para eles construir hierarquias como estabelecer mecanismos de troca; e enquanto a natureza humana não mudar as duas tendências «interferirão» sempre uma na outra. A tentação de amputar o homem da sua condição natural de animal político - isto é, de ser que não pode nem nunca poderá viver, nem em cidade pura, nem em mercado puro - é totalitária no sentido mais pleno e mais sóbrio da palavra.
O que os meus inquiridores querem saber, porém, não é se eu reconheço a existência do Estado ou se estou convicto da sua inevitabilidade; é se o defendo e apoio. A questão não faz muito sentido: se uma coisa é inevitável, não precisa do nosso acordo nem é prejudicada pela nossa oposição. O Estado, o Mercado, a Gravidade existem independentemente de nós; mas se isto não nos impede de construir democracias, nem de procurar que as leis sejam boas, nem de andar de avião, nem de lançar naves para o Espaço, então também não nos devia impedir de distribuir a riqueza do modo que acharmos mais conveniente e mais justo.
O Estado a que me refiro quando falo de Estado não é o acima descrito. É o Estado Moderno hobbesiano, essa forma peculiar de organização da sociedade que lança na
Magna Carta as suas raízes mais fundas, cuja natureza contratual foi teorizada por Hobbes e Rousseau, que nasceu no meio do sangue e da dor com a Revolução Francesa, que ecoou, com revérberos que ainda hoje se ouvem, na Declaração de Independência americana, que sofreu inúmeras vezes as perversões da escravatura, da opressão, da guerra, do totalitarismo, e inúmeras vezes se levantou de novo. Este Estado não tem nada de natural: é uma construção abstracta do espírito humano, o
Artificiall Man referido por Hobbes. De todas as formas conhecidas de organização política, o Estado Moderno é a única que não decorre da natureza humana. Por isso ocorreu, até hoje, apenas numa civilização - a nossa, a europeia ou euro-americana - constituindo talvez o mais valioso contributo que demos ao mundo, mais importante porventura do que a filosofia grega ou a ciência empírica. Por não ocorrer naturalmente, precisa de ser mantido e cultivado para subsistir; e quem acha que o seu desaparecimento seria uma coisa boa, basta que faça a ronda do Iraque, da Arábia Saudita, do Sudão, do Afeganistão, do Zimbabwe, da Colômbia: das teocracias, das sociedades tribais, das repúblicas de
gangsters - para ver que género de monstros se precipitarão para preencher o vazio que ele deixará se permitirmos que ele morra.
A artificialidade do Estado hobbesiano grangeou-lhe (a Hobbes e ao Estado Moderno) não poucos inimigos - desde gigantes como Edmund Burke a anões como os actuais
neocons. O que é surpreendente, no entanto, não é tanto a aversão que ele provoca em quem prefere formas mais orgânicas e naturais de organizar a sociedade, como a indiferença ou hostilidade de quem (aparentemente) mais beneficiaria com a teorização do poder absoluto. Luís XIV não gostava do Estado artificial e abstracto: o Estado era ele, homem natural de carne e osso. Pelo mesmo diapasão afinaram os restantes Príncipes da Europa:
sim, sim, muito bem, está muito bonito, muito bem escrito, mas não era bem isso que nós queríamos. Deixe-nos ficar com o nosso Poder Divino, que nós cá nos arranjamos. Não, não se incomode, não telefone, nós depois telefonamos. Obrigado. Adeus.
Claro que os Príncipes tinham razão. O Estado Moderno não é necessariamente democrático, mas é a única forma de organização do poder que não é necessariamente anti-democrática. Os Príncipes entenderam isto muito bem - melhor do que o próprio Hobbes, que não deu o pequeno passo que faltava em direcção à Democracia devido apenas a dois obstáculos teóricos: não via forma de assegurar a sucessão se o poder estivesse entregue a uma Assembleia, e não dispunha de instrumentos conceptuais que lhe permitissem teorizar a separação dos poderes. Outros, depois dele, passaram esta porta; mas quem a abriu foi ele.
O Estado Moderno não difere das formas naturais de organização política por incluir a noção de República - esta já vem de Aristóteles, dominou o discurso político em Roma, manteve-se viva durante toda a Idade Média e voltou à superfície com os Príncipes Renascentistas e Maquiavel; nem difere delas por incluir a preocupação moral e filosófica com o Bem Comum e com o Bom Governo. Mas difere de todas as outras formas de poder e de hierarquização por ser potencialmente democrático e tendencialmente de Direito.
É por isso que, em se falando de Estado Moderno, me considero orgulhosamente estatista. Não só reconheço a existência e a necessidade do Estado, como o considero digno de ser apoiado e defendido. Olho à minha volta e vejo muita gente a querer deitar fora a democracia - criacionistas, charlatães, darwinistas sociais, cientologistas, islamistas, cristãos evangélicos, terroristas, comunitaristas, pós-modernos, o diabo a quatro. Mas destes todos destaca-se um grupo que se prepara para deitar fora, não só a democracia e a liberdade, mas a própria possibilidade de democracia e liberdade: são os fundamentalistas do Mercado.
Estatista, pois. Apesar de tudo.