...............................................................................................................................................

The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
....................................................................................................................................................
Mostrar mensagens com a etiqueta mercado. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta mercado. Mostrar todas as mensagens

domingo, 17 de janeiro de 2010

Os economistas não são o problema

Nenhum economista acredita, por mais impecáveis que sejam as suas credenciais neoclássicas, que a "mão invisível" de Adam Smith seja mais que uma metáfora. Nenhum economista acredita que o mercado seja uma pessoa real, dotada de volição, cujos objectivos transcendentes prevalecem sobre os objectivos egoistas dos meros seres humanos. Nenhum economista (com a possível excepção de João César da Neves) acredita que o Mercado seja Deus. Nenhum economista acredita que a riqueza se "crie": todos sabem que se produz. Nenhum economista acredita que a criação de lucro sem produção de riqueza possa ser um jogo de soma positiva. E poucos acreditarão que "mercado livre" é sinónimo de "democracia".

Quem acredita nestas inanidades, e noutras piores, são os chamados gurus da chamada Nova Economia (cujas teorias, publicadas entre os anos trinta e 1999, são minuciosamente dissecadas por Thomas Frank em One Mrket Under God). Ou, se não acreditam, pelo menos fazem tudo para que nós acreditemos. Não vou tentar referir todos os chavões que eles empregam: abordarei apenas o conceito de cool que utilizam para definir os termos duma luta de classes reinventada: de um lado da barricada, o do "Povo", estão as empresas cool, aliadas às tribos urbanas, ao cidadão comum sem pretensões e de um modo geral a tudo o que é moderno; e no lado oposto, o das "elites", estão as empresas da "velha economia", que ainda acreditam na produção de bens e serviços e onde ainda se usa gravata, juntamente com os sindicatos, o Estado, os professores, os snobs, os académicos, os cépticos, os "cínicos", os intelectuais e de um modo geral todos os que acreditam, impiamente, que o mercado está sujeito a exame como outra coisa qualquer e pode ser objecto de crítica racional.

Ser economista, nos tempos que correm, não deve ser fácil: o economista está sempre, como o teólogo, a meio caminho de se tornar herege. Mais vale ser profeta ou guru.

Talvez seja esta a razão porque os economistas mediáticos tiram os seus chapéus de economista quando abandonam os seus gabinetes nas universidades ou nas empresas e põem o chapéu de guru quando entram num estúdio de televisão. E então é vê-los sacar dos chavões: a excelência, o empreendorismo, a mudança (nunca o progresso), a flexibilidade, a inevitabilidade de termos todos (ou quase todos) de trabalhar cada vez mais em empregos cada vez mais precários e em troca de salários cada vez mais baixos. E tudo isto, pasme-se, não apesar do progresso tecnológico, mas sim precisamente por causa dele e do enorme aumento de produtividade que ele tem proporcionado.

Credo quia absurdum é a atitude que nos exigem. Podemos obedecer ou não a esta exigência, mas em todo o caso ficamos a saber o que é um neoliberal: é a criatura que surge na transição do economista neoclássico para o guru da Nova Economia.

Imagem: TIME Magazine

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Estatista, graças a Deus

Intimado a responder pelo meu alegado estatismo, vejo-me perante duas perplexidades. A primeira é saber o que é que o meu inquiridor entende por «Estado»; e a segunda é saber, uma vez definida esta entidade, se para ser estatista é preciso defendê-la ou se basta reconhecer a sua existência e a sua inevitabilidade.

Para muita gente - incluindo muitos jovens turcos deslumbrados pelo neoliberalismo - o Estado é fácil de definir: consiste muito simplesmente em todo o poder político que intervém (que «interfere», dizem eles) no funcionamento do Mercado. Esta noção é vastíssima, como facilmente se entende. Inclui todas as formas de organização da sociedade: tribo, cidade, república, teocracia, feudalismo, despotismo iluminado, despotismo oriental, monarquia de direito divino, caudilhismo carismático, etc. Tudo isto, porque não é Mercado, é Estado; ou seja, o monstro, o Moloch que tudo devora e que nos impede de ser livres e prosperar.

Fosse esta a minha noção de Estado, e eu seria mesmo assim estatista - não no sentido de defender estas formas de organização da sociedade, a maior parte das quais me repugna profundamente, mas no sentido de reconhecer a necessidade duma organização política qualquer (a mera anarquia seria sempre pior) e a inevitabilidade do estabelecimento de relações de poder - isto é, políticas - em todos os grupos humanos.

Os seres humanos têm a natureza que têm: é tão natural para eles construir hierarquias como estabelecer mecanismos de troca; e enquanto a natureza humana não mudar as duas tendências «interferirão» sempre uma na outra. A tentação de amputar o homem da sua condição natural de animal político - isto é, de ser que não pode nem nunca poderá viver, nem em cidade pura, nem em mercado puro - é totalitária no sentido mais pleno e mais sóbrio da palavra.

O que os meus inquiridores querem saber, porém, não é se eu reconheço a existência do Estado ou se estou convicto da sua inevitabilidade; é se o defendo e apoio. A questão não faz muito sentido: se uma coisa é inevitável, não precisa do nosso acordo nem é prejudicada pela nossa oposição. O Estado, o Mercado, a Gravidade existem independentemente de nós; mas se isto não nos impede de construir democracias, nem de procurar que as leis sejam boas, nem de andar de avião, nem de lançar naves para o Espaço, então também não nos devia impedir de distribuir a riqueza do modo que acharmos mais conveniente e mais justo.

O Estado a que me refiro quando falo de Estado não é o acima descrito. É o Estado Moderno hobbesiano, essa forma peculiar de organização da sociedade que lança na Magna Carta as suas raízes mais fundas, cuja natureza contratual foi teorizada por Hobbes e Rousseau, que nasceu no meio do sangue e da dor com a Revolução Francesa, que ecoou, com revérberos que ainda hoje se ouvem, na Declaração de Independência americana, que sofreu inúmeras vezes as perversões da escravatura, da opressão, da guerra, do totalitarismo, e inúmeras vezes se levantou de novo. Este Estado não tem nada de natural: é uma construção abstracta do espírito humano, o Artificiall Man referido por Hobbes. De todas as formas conhecidas de organização política, o Estado Moderno é a única que não decorre da natureza humana. Por isso ocorreu, até hoje, apenas numa civilização - a nossa, a europeia ou euro-americana - constituindo talvez o mais valioso contributo que demos ao mundo, mais importante porventura do que a filosofia grega ou a ciência empírica. Por não ocorrer naturalmente, precisa de ser mantido e cultivado para subsistir; e quem acha que o seu desaparecimento seria uma coisa boa, basta que faça a ronda do Iraque, da Arábia Saudita, do Sudão, do Afeganistão, do Zimbabwe, da Colômbia: das teocracias, das sociedades tribais, das repúblicas de gangsters - para ver que género de monstros se precipitarão para preencher o vazio que ele deixará se permitirmos que ele morra.

A artificialidade do Estado hobbesiano grangeou-lhe (a Hobbes e ao Estado Moderno) não poucos inimigos - desde gigantes como Edmund Burke a anões como os actuais neocons. O que é surpreendente, no entanto, não é tanto a aversão que ele provoca em quem prefere formas mais orgânicas e naturais de organizar a sociedade, como a indiferença ou hostilidade de quem (aparentemente) mais beneficiaria com a teorização do poder absoluto. Luís XIV não gostava do Estado artificial e abstracto: o Estado era ele, homem natural de carne e osso. Pelo mesmo diapasão afinaram os restantes Príncipes da Europa: sim, sim, muito bem, está muito bonito, muito bem escrito, mas não era bem isso que nós queríamos. Deixe-nos ficar com o nosso Poder Divino, que nós cá nos arranjamos. Não, não se incomode, não telefone, nós depois telefonamos. Obrigado. Adeus.

Claro que os Príncipes tinham razão. O Estado Moderno não é necessariamente democrático, mas é a única forma de organização do poder que não é necessariamente anti-democrática. Os Príncipes entenderam isto muito bem - melhor do que o próprio Hobbes, que não deu o pequeno passo que faltava em direcção à Democracia devido apenas a dois obstáculos teóricos: não via forma de assegurar a sucessão se o poder estivesse entregue a uma Assembleia, e não dispunha de instrumentos conceptuais que lhe permitissem teorizar a separação dos poderes. Outros, depois dele, passaram esta porta; mas quem a abriu foi ele.

O Estado Moderno não difere das formas naturais de organização política por incluir a noção de República - esta já vem de Aristóteles, dominou o discurso político em Roma, manteve-se viva durante toda a Idade Média e voltou à superfície com os Príncipes Renascentistas e Maquiavel; nem difere delas por incluir a preocupação moral e filosófica com o Bem Comum e com o Bom Governo. Mas difere de todas as outras formas de poder e de hierarquização por ser potencialmente democrático e tendencialmente de Direito.

É por isso que, em se falando de Estado Moderno, me considero orgulhosamente estatista. Não só reconheço a existência e a necessidade do Estado, como o considero digno de ser apoiado e defendido. Olho à minha volta e vejo muita gente a querer deitar fora a democracia - criacionistas, charlatães, darwinistas sociais, cientologistas, islamistas, cristãos evangélicos, terroristas, comunitaristas, pós-modernos, o diabo a quatro. Mas destes todos destaca-se um grupo que se prepara para deitar fora, não só a democracia e a liberdade, mas a própria possibilidade de democracia e liberdade: são os fundamentalistas do Mercado.

Estatista, pois. Apesar de tudo.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

Moloch e Menino Jesus

(Publicado originalmente no Leviathan)

Na ortodoxia neoliberal o Estado é Moloch: um deus selvagem e monstruoso que se alimenta do sangue das suas vítimas. Alguns membros da seita vão ao extremo de aplicar a metáfora ao pobre, débil e incipiente Estado português.

Se olharmos com olhos de ver à nossa volta e procurarmos deuses selvagens, monstruosos e sedentos de sangue, encontraremos provavelmente alguns Estados: a China, a Coreia do Norte...
Mas são excepções. No mundo actual os despotismos resultam mais da falta de Estado do que do excesso de Estado. No Paquistão um grupo de juízes tribais condena uma mulher a ser violada em público por seis homens, e o Estado central nem força tem para manter os violadores na prisão; na Nigéria um tribunal islâmico condena uma mulher à morte por lapidação - por ter tido um filho sendo viúva - e o Estado central tem de tratar do assunto com infinitos cuidados, não vá o monstro devorá-lo. Na Somália, no Iraque, no Sudão, os Senhores da Guerra e os Mensageiros de Deus digladiam-se entre si e impõem a lei, e não há Estado que os contenha.

Se olharmos à nossa volta veremos Moloch, sim, mas não no Estado, e muito menos no Estado português. Vê-lo-emos nas grandes empresas multinacionais, em Wall Street, na City de Londres; vê-lo-emos em Roma, sentado no trono de S. Pedro; vê-lo-emos na Direita Religiosa americana; vê-lo-emos a vociferar na rua, ébrio de Deus, um pouco por todo o mundo islâmico.
Vê-lo-emos até, se soubermos olhar, nas prateleiras das livrarias, em que cada vez mais espaço é ocupado pela categoria «exoterismo e religião».

Comparado com isto tudo, o pobre, débil e incipiente Estado português não é Moloch, é o Menino Jesus.