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The aim of life is appreciation; there is no sense in not appreciating things; and there is no sense in having more of them if you have less appreciation of them.


..........................................................................................................Gilbert Keith Chesterton
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sábado, 2 de janeiro de 2010

Ordem dos Professores: um imperativo nacional

O Estado tem o monopólio da coacção. Todos, ou quase todos, lho reconhecemos. Não decorre daqui que tenha o monopólio da legitimidade, como é frequente ver afirmado na blogosfera, nos media e nas declarações dos políticos. Nenhum dos grandes pensadores da Democracia reconhece ao Estado este monopólio, nem ele está consagrado na Constituição da República Portuguesa (ou, que eu saiba, em qualquer Constituição de qualquer país democrático).

Vital Moreira sabe isto melhor que ninguém. Quando afirmou, a propósito da luta dos professores, que o Governo é que define o bem comum, traiu a probidade intelectual e académica a que estava obrigado em troca da migalha de poder político de que agora desfruta no Parlamento Europeu.

Não é preciso um grande esforço da imaginação para dar exemplo de legitimidades que não cabem ao Estado.

Desde logo, a que decorre da realidade dos factos. Quando a Assembleia legislativa do Texas votou a proposta de atribuir a "pi" o valor de 3,0 (foi derrotada), não estava a exercer um poder legítimo, pese embora o sufrágio que a elegeu: a vontade expressa das maiorias eleitorais nunca é um cheque em branco, confere antes um mandato que tem o seu conteúdo e os seus limites. Legítima, sim, seria a acção de um matemático texano que continuasse, a despeito da lei e ainda que sozinho, a procurar mais casas decimais para o valor de "pi"; ou a de um engenheiro texano que definisse este valor até à casa decimal correspondente ao grau de exactidão exigida pelo trabalho que tivesse entre mãos. A Assembleia Legislativa podia achar necessário para o bem comum facilitar deste modo o ensino da geometria nas escolas; mas o engenheiro sabe que a construção correcta duma escada em caracol também está no âmbito do interesse geral.

Este conflito de legitimidades é o tema principal de Nineteen Eighty-Four. A personagem principal pensa que tem o direito de acreditar que dois mais dois são quatro; o Estado reivindica para si o direito de fazer os seus súbditos acreditar - e exige-lhes que sejam sinceros nesta crença - que dois mais dois são três, ou cinco, ou seja o que for que mais lhe convenha de momento. Na vida real nenhum Estado, dispense ele ou não as formalidades do processo democrático, tem esta legitimidade. Tanto Winston Smith como o engenheiro acima postulado têm razão, mesmo que a afirmem contra todos os outros.

Outra legitimidade que não pertence ao Estado é a que decorre dos direitos de associação e de expressão. Se os cidadãos se associam, ou se pronunciam sobre as políticas dos governos, é para produzir efeitos na comunidade - ou seja, para exercer um poder que todos os Estados democráticos reconhecem explicitamente, nas suas Constituições, como legítimo. A atitude dum governante que diz implicitamente aos governados "falem para aí à vontade, manifestem-se no número que quiserem, mas não esperem que alguém os ouça" é uma subversão da Constituição e uma perversão da Democracia.

Há, também, as várias legitimidades profissionais. Tem que as haver: um médico, um engenheiro, um professor exercem actividades que se repercutem directamente na vida e no bem-estar dos seus concidadãos. Ou seja, têm poder; e o que legitima este poder é a autoridade que lhes advém do saber. Este poder confere-lhes responsabilidades específicas que exigem uma medida correspondente de legitimidade, e esta não lhes pode ser conferida pelos protocolos da democracia formal.

O sufrágio eleitoral, que é o mais importante destes protocolos, não tem a virtude mágica de tornar os eleitos especialistas em tudo. Os eleitores podem conferir aos políticos um mandato que lhes permita determinar o que é uma boa prática clínica ou pedagógica, mas não lhes podem conferir o conhecimento especializado necessário a que esta definição seja técnica e cientificamente correcta e redunde efectivamente na realização do maior bem do maior número. Em matérias para as quais sejam relevantes conhecimentos especializados, a decisão não se fundamenta apenas na legitimidade política stricto sensu, mas também na convergência desta com legitimidades doutra ordem (ainda que a legitimidade política deva prevalecer; mas uma legitimidade política que não reconheça outras legitimidades depressa deixa de prevalecer e acaba por se auto-destruir).

É esta convergência que tem estado em causa no discurso político e mediático da última década. A confusão, propositada ou não, entre estado democrático e sociedade democrática é a base da qual se parte para o ataque às "corporações", apresentadas repetidamente à opinião pública como grémios de privilegiados, obsessivamente focados na protecção dos seus interesses particulares em detrimento do bem comum e teimosamente opostos ao progresso e à mudança. Este discurso provém sobretudo da classe política e das agremiações patronais, que são também corporações, mas que, por qualquer razão que nunca é explicada, não têm esse nome nem declaram outros interesses que não sejam os do cidadão comum.

Esta dicotomia entre as corporações diabólicas, por um lado, e por outro as corporações angélicas releva, como é evidente, do mais puro populismo. Todas as corporações defendem, legitimamente, os interesses dos seus membros; mas por outro lado todas elas têm a sua visão do bem comum e as suas propostas sobre a melhor maneira de o prosseguir. O interesse próprio da corporação dos políticos está em obter para os seus membros o monopólio da legitimidade; o interesse próprio da corporação patronal está em obter o máximo de poder político. Em ambos os casos a estratégia passa necessariamente por uma guerra a todas as instituições da sociedade civil que não estejam dependentes da elite política e empresarial e não defendam os seus interesses.

Entre as corporações angélicas a que não se dá o nome de corporações, há que referir uma terceira: a dos economistas, ou melhor, a dos economistas duma certa tendência, que são quase os únicos que têm acesso aos mass media e aos corredores do poder. O seu papel na guerra do Estado contra a Sociedade parece ser convencer-nos de que a verdadeira prosperidade consiste em ganharmos cada vez menos trabalhando cada vez mais; que a verdadeira igualdade está na desigualdade extrema; e que a elite dominante não é uma elite, mas sim parte um grupo, ligeiramente mais bem-sucedido, de gente igualzinha a nós.

É assim que vemos a elite da política e dos negócios a usar um discurso anti-elitista como justificação moral da sua guerra contra a sociedade. A verdadeira elite não são eles, por mais que vivam no luxo e no consumo conspícuo: são todos aqueles cujo trabalho, cujo estudo e cujo esforço visaram outros fins - pessoais e sociais - que não os da estrita e imediata utilidade económica, e que, apesar desta inadmissível heterodoxia, ousam exigem ver reconhecido e recompensado o mérito atinente ao seu trabalho, estudo e esforço.

Deste anti-elitismo populista - Thomas Frank, no seu livro One Market Under God, chama-lhe "populismo de mercado" - o salto é muito curto para o anti-intelectualismo, um anti-intelectualismo tanto mais eficaz quanto tem raízes profundas na mentalidade portuguesa, que respeita muito pouco a autoridade de quem sabe mas se inclina até tocar com a testa no chão perante o domínio de quem manda.

É este o caldo de cultura em que se têm desenvolvido as nossas políticas educativas nos últimos trinta anos. Os resultados estão à vista de todos e prejudicam todos. É por isso que o País - leia-se, a sociedade civil portuguesa - tem absoluta necessidade duma Ordem dos Professores, que em termos de utilidade pública tem uma importância só equiparável à Ordem dos Médicos. É claro que uma Ordem dos Professores defenderá - legitimamente, diga-se já - o interesse dos professores em verem melhorado o seu estatuto social e profissional. Mas defenderá também o interesse das escolas, que é dar o mundo a compreender às novas gerações e não imbecilizá-las, como o poder político as quer obrigar a fazer. E será uma arma a acrescentar às outras de que a sociedade civil já dispõe para limitar o poder totalitário da plutocracia que a oprime.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Utopias, eutopias e distopias


Nada do que é social e humano é mais real que as utopias. Na sua vertente eutópica, as utopias constituíram sempre o fundamento simbólico e mítico sem o qual nenhuma forma de organização social se sustenta, justifica ou sobrevive. E criam, tanto na vertente eutópica como na distópica, o vocabulário da revolução e da mudança: sem os amanhãs que cantam (ou choram) teríamos, em vez de História, um presente intemporal e eterno - como o dos faraós ou o de Francis Fukuyama.
Aldous Huxley publicou o seu Brave New World em 1932. George Orwell, que não tinha em grande conta este livro ou o seu autor, publicou 17 anos depois a sua própria distopia, Nineteen Eighty-Four. Entre estas duas datas interpôs-se a Segunda Grande Guerra: não admira que na primeira a técnica básica da opressão do Estado fosse a manipulação genética e que na segunda, depois do descrédito em que o regime nazi lançou o eugenismo, as técnicas principais da opressão sejam a lavagem ao cérebro, a crueldade gratuita e a manipulação da linguagem.
Apesar desta e de outras diferenças, os dois textos foram muitas vezes lidos, nas décadas seguintes, como os dois pólos - um hedonista, outro o oposto disto - duma mesma distopia, a que os sinais dos tempos davam e dão plausibilidade. Esta distopia bipolar é identificável em grande parte com a ideia de modernidade; e hoje a invocação da modernidade, sempre na boca dos políticos e dos capitães da indústria, soa aos nossos ouvidos tanto a ameaça como a promessa.
Do texto de Aldous Huxley, o que entrou na linguagem corrente, traduzido para todas as línguas, foi o sobretudo o título: "admirável mundo novo". A expressão é utilizada em toda a parte mesmo por quem nunca leu a obra: das mesas dos cafés aos blogues, das crónicas dos jornais aos debates nos media. Do texto de Orwell, toda a gente utiliza, própria ou impropriamente, expressões como Big Brother, newspeak (que até teve, em português, honras de tradução: "novilíngua"), ou ainda doublethink. Uma coisa é certa: nenhuma destas expressões se teria conservado até hoje no uso corrente se não tivesse referentes no real quotidiano.
A mesma sorte não teve 1985, de Anthony Burgess, publicado em 1978. Um texto anterior de Burgess, também ele distópico, é de longe mais conhecido, talvez pela versão filmada que dele fez Stanley Kubrik: A Clockwork Orange. 1985 recupera alguns temas e tropos deste texto e apresenta-se como um balanço crítico de Nineteen Eighty-Four. Divide-se em duas partes: um ensaio sobre o texto de Orwell e a construção duma distopia alternativa, imaginada por Burgess 29 anos mais tarde. A frase final da primeira parte do livro é: 1984 is not going to be like that at all. Frase corajosa, vinda dum escritor que admirava e respeitava o objecto da sua crítica. E é com ela que Burgess nos autoriza a fazermos nós também o balanço crítico da sua alternativa, decorridos mais que outros tantos anos desde a sua publicação.


Pode ler o texto completo no meu blogue de apoio TEXTOS LONGOS

Nota: Durante os longos dias que demorei a escrever este texto, não deixei de acompanhar os textos a todos os títulos notáveis que o Ramiro Marques tem estado a publicar no ProfEducação, nomeadamente a série "Há um plano para imbecilizar as novas gerações." Não é paranóia: há mesmo esse plano. Espero que a leitura ou releitura dos livros que aqui comento ajude a clarificar as estratégias de marketing político que o apoiam.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Esquerda tontinha, direita cegueta

I.

É frequente que se atribuam os males do ensino à influência duma esquerda tontinha, herdeira de Rousseau, ingénua na sua concepção do ser humano, avessa à disciplina e ao esforço, relativista no plano ético e propensa a dissociar a noção de autoridade da noção de poder. Esta esquerda tontinha encara os jovens como naturalmente "bons", o que dispensa qualquer espécie de coacção no processo educativo, e naturalmente "criativos", o que lhes permite construir os seus próprios "saberes" sem necessidade, por parte do professor, de qualquer "dirigismo" na transmissão de um património intelectual ou cultural. Não reconhece qualquer diferenciação entre um aluno e outro em termos de inteligência ou talento, de modo que as discrepâncias em matéria de desempenho só se podem dever às diferentes formas de segregação social, à falta de empenho do professor ou à deficiente aplicação das técnicas pedagógicas promotoras da igualdade. Do mesmo modo que não há hierarquização de capacidades entre os alunos, também não há hierarquização entre aluno e professor, uma vez que todos os "saberes" se equivalem e nenhum deles confere autoridade especial ao seu detentor. Deste modo, não podendo o professor construir a sua autoridade sobre o seu estatuto de "mais sabedor", nem podendo baseá-la num poder de coacção delegado pelo Estado, resta-lhe apoiá-la no seu próprio carisma, natural ou adquirido - o qual, sendo decerto uma perna indispensável do tripé, tem a enorme desvantagem de ser apenas uma.


II.

Atribuir responsabilidades à esquerda tontinha é assim perfeitamente justificado, mas incide apenas sobre uma das faces da moeda. Igual responsabilidade tem uma certa direita que mergulha as suas raízes no ancestral anti-intelectualismo português e hoje vê na educação e no ensino um mero instrumento de formação profissional. Perante uma qualquer área do conhecimento a pergunta quase instintiva desta direita é "para que serve"; e não lhe ocorre que a cultura, o conhecimento, o pensamento crítico podem ser fins em si mesmos; nem que, a servirem para alguma finalidade, esta finalidade pode ser não só a economia e o trabalho, mas qualquer outra dimensão da vida. Esta direita vê na escola uma fábrica em que entram crianças e de onde saem recursos humanos - como se fosse possível prever, à data em que uma criança de seis anos entra para a escola, as competências profissionais específicas de que vai precisar passados quinze ou vinte anos. A décadas de distância, a capacidade de compor um soneto ou de ler a Ilíada no original pode ter consequências económicas mais vastas e mais ramificadas do que o domínio duma qualquer técnica profissional de banda estreita que por essa altura já estará mais do que desactualizada.
A esquerda tontinha e a direita de vistas curtas e excessivamente pragmática que determinam as políticas educativas têm em comum o horror ao passado, que consideram inútil e irrelevante. Só lhes interessa o futuro, que uns e outros têm a ilusão de conhecer e do qual se consideram donos. Nem uns nem outros compreendem a absoluta impossibilidade de ensinar a uma criança o mundo em que ela há-de viver: o mais que podemos fazer, se formos realistas, dedicados e competentes, é ensinar-lhe o mundo tal como é hoje e tal como o passado o moldou. A mudança do presente para o futuro não pode ser ensinada: o que nos prepara para ela é o conhecimento crítico das mudanças que deram origem ao presente. Tão utópica é a esquerda tontinha como a direita pragmática. Uma situa-se para lá do humano, no reino da perfeição; outra para cá do humano, no reino da técnica; e deste modo ambas recusam uma educação centrada no homem e à medida do homem como a que preconizava Wilhelm von Humboldt.

A coligação esquizofrénica entre a esquerda tontinha e a direita cegueta é desconfortável para ambas as partes, mas não deixa por isso de ser uma coligação que bem ou mal vai funcionando. Opera na tecno-burocracia educativa, opera nas escolas, opera nos currículos e nos programas. Opera na profusão legislativa, onde os preâmbulos tendem a ser de esquerda e os articulados a ser de direita; e não sei se não operará também na idiossincrasia da actual ministra da educação. A metáfora de Dr. Jekyll e Mr. Hyde só não se aplica aqui porque, enquanto a personagem do romance tinha um lado nobre, as personalidades desavindas da ministra são ambas perniciosas e vis.

terça-feira, 18 de março de 2008

Os anti-intelectuais

O anti-intelectualismo é uma doença tenaz que assume muitas formas e muitos graus de gravidade. Durante a revolução cultural chinesa chacinaram-se os artistas, os professores, os físicos, os matemáticos, os astrónomos. Nos EUA os candidatos a cargos públicos, se são homens ou mulheres de livros e de cultura, ocultam cuidadosamente esta condição, que joga contra eles nas urnas. Em Portugal despreza-se a cultura "livresca" e celebram-se os heróis que enriqueceram sem "terem estudos".

Neste ambiente não admira que aos sucessivos ministérios ditos "da educação" sempre tenha sido indiferente que os professores ensinem bem ou mal, ou que saibam ou não a matéria que lhes compete ensinar. Não admira que Maria de Lurdes Rodrigues faça aprovar e imponha às escolas um Estatuto da Carreira Docente em que se atribuem aos professores 29 tarefas entre as quais não se conta ensinar. Nem admira que a mesma governante imponha um documento de avaliação dos professores que contempla catorze critérios - entre os quais mais uma vez não se conta o conhecimento que o professor tem da matéria nem o grau de competência com que a ensina.

E também não admira, infelizmente, que esta ministra, com estas políticas, seja uma heroína para uma parte da opinião pública e da opinião publicada.