quarta-feira, agosto 14, 2024

«Olho para nós e só descubro filmes, peças de teatro e livros, que nunca vão ter vida própria.»


Estou tempos e tempos sem aparecer. Mas às vezes preciso mesmo de entrar naquele velho café, com mais histórias que clientes. É como se precisasse de me "carregar de raiva", daquela que depois se vai embora, à medida que regresso à Margem Sul, primeiro a pé e depois de metro ou autocarro. Às vezes estou no cacilheiro e pareço já estar "curado"...

O velho Henrique continua atrás do balcão, a música de fundo também é a mesma, um jazz longínquo. Sim, por ali para ouvires música, tens de estar em silêncio ou falar baixinho. O Jorge aparece às três da tarde para almoçar e a Catarina para beber café. São o "material humano fixo" daquele ninho de "pássaros feridos", o resto da malta vai aparecendo, sem hora ou dia marcado...

O Raul gosta de nos chamar "vencidos pela vida", confessa mesmo ser incapaz de se tornar amigo de alguém bem sucedido neste "país de merda". Também faz filmes de publicidade, mas ao contrário do Jorge finge não querer nada com o cinema, muito menos o português...

O Jorge tem três fitas começadas, que provavelmente nunca irão visitar qualquer sala de cinema. Desculpa-se com a idade, com o ter ultrapassado os cinquenta e ter perdido a "chama do ir à luta". Sei o que é isso, mas não tenho a certeza de a ter perdido de todo, agora que passei para o lado dos sessentões. A Catarina, menina ainda dos quarentas, sorri, mas não esconde o nervosismo, enquanto acende um cigarro e não quer olhar para o que se passa lá fora, na rua.

Foi nesta altura que o Jorge disse: «Olho para nós e só descubro filmes, peças de teatro e livros que nunca vão ter vida própria.»

Em vez de chorarmos, sorrimos.

Claro que não era bem assim. A Catarina tinha acabado de realizar um filme. A questão era mais complexa do que parecia. E lá apareceu o Fernando Lopes - um dos "nossos deuses" -  à mesa. Ele, mesmo com a qualidade que tinha como realizador, também viu um ou outro filme ser "chumbado" por aquela coisa estatal que é mais audiovisual que cinema. E não foi caso único. Estávamos todos de acordo, alguns daqueles chumbos não conseguiam disfarçar o "gosto da humilhação" e o "perfume da vingança", latentes nos elementos do júri.

Pelo menos desta vez não deixámos os sentimentos de revolta despertarem, em vez de "lamber feridas" "contámos anedotas".

Até porque estávamos a gostar da música escolhida pelo Henrique e lá fomos conversando, calmamente, sem que o jazz saísse do tom...

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


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