sábado, 14 de julho de 2007

A não perder



Via Arrastão e Zero de Conduta vi estes 12 minutos do documentário de Michael Moore sobre os cuidados de saúde nos Estados Unidos da América. Este resumo deve ser visto por todos os sociais-democratas que vivem deslumbrados com as virtuosidades do mercado, para que percebam para onde nos dirigimos quando fazemos o caminho da progressiva mercantilização dos cuidados de saúde.

Ausência de serviço público e universal de cuidados de saúde não significa maior racionalidade nos gastos com saúde. Os EUA gastam com saúde 15,4% do seu PIB (sendo que desta despesa total, 44,7% é despesa pública e 55,3% é despesa privada) enquanto que em Portugal a despesa total com saúde é de 9,8% (71,6% despesa pública e 28,4% despesa privada). Acrescente-se a estes dados o facto de Portugal apresentar melhores resultados, em termos dos indicadores de saúde da Organização Mundial de Saúde, do que os EUA.

Obviamente que se a comparação for feita entre os EUA e os países mais desenvolvidos da Europa a distância é ainda maior. Portanto, os EUA gastam mais do que os países da UE com saúde para obterem resultados mais fracos. Neste sector, mais mercado não garante mais racionalidade na despesa. Neste sector, mais mercado significa desperdício de recursos. Já agora para os liberais: financiamento e provisão pública dos cuidados de saúde também são garantia de mais liberdade para os cidadãos. É preciso explicar?

Neoliberalismo e crise do projecto europeu

«Os países da União Europeia (UE) operaram hoje uma série de cortes na proposta de orçamento comunitário para 2008, dotando-o do valor mais baixo, em termos relativos, da sua história, pondo em causa o financiamento de alguns projectos emblemáticos» (Público)

«É hoje evidente, por exemplo, que a concorrência fiscal teve um forte impulso com a mal planeada expansão da União ao leste europeu. Isto é em parte o resultado destas economias terem aderido à União sabendo que o instrumento dos fundos estruturais, destinado a gerir politicamente o processo de integração de economias com padrões de especialização e estruturas de custo muito distintas, já não teria o mesmo alcance financeiro que teve quando foi desenhado para as economias do sul da Europa. Assim, os governos ferozmente neoliberais dos novos estados-membros procuraram jogar a cartada da 'sedução' fiscal ao investimento estrangeiro. E acenaram também com uma força de trabalho qualificada e com níveis salariais relativamente baixos. Neste contexto, as opiniões públicas dos países mais ricos, confrontadas com procedimentos que percepcionam como não-cooperativos, tenderão a bloquear cada vez mais as contribuições nacionais para o orçamento comunitário. Isto num momento em que o seu aumento seria cada vez mais importante para, através de transferências para as regiões mais pobres, travar os mecanismos cumulativos de polarização social e espacial que inevitavelmente resultam de um incremento do poder e da escala das forças de mercado».

«Estamos convencidos que o reforço do peso do orçamento, condição absolutamente imprescindível para uma política económica digna desse nome, é apenas a tradução no campo económico do necessário pilar político que permitirá sustentar a construção de um espaço económico unificado. Sem este pilar não existe projecto de integração económica, e sobretudo monetária, que resista».

Nota: este texto é composto por dois excertos, com ligeiras adaptações, do artigo que eu e o Ricardo publicámos no último número de Julho do Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa.

Parabéns Manuel


Manuel Carvalho da Silva, secretário-geral da CGTP, doutorou-se ontem, com nota máxima, em sociologia pelo ISCTE. A tese intitula-se «Centralidade do Trabalho e Acção Colectiva - Sindicalismo em Tempo de Globalização». Aguardamos com expectativa a saída em livro. No Público podemos ler o seguinte: «Doutorado o que muda para Carvalho da Silva? 'Não muda coisa nenhuma, a vida é um caminhar contínuo, o que vai acontecer amanhã não sei', disse. E como gostaria de passar a ser tratado? ´Por Manuel, que é o meu nome'».

sexta-feira, 13 de julho de 2007

«Let me hear that dirty word...»






Se passar por aqui um editor...


Um pequeno livro de divulgação (pouco mais de 60 páginas). Pedagógico. Descreve bem o papel do BCE na criação das condições para a construção na Europa de uma ordem económica neoliberal. Tema já aqui várias vezes abordado. Independência face ao poder político democrático, sem paralelo à escala mundial, e um mandato economicamente absurdo são as receitas para o desastre. É de facto uma prioridade lutar pelo fim da independência do Banco Central Europeu face aos governos nacionais e face às instituições europeias, nomeadamente o Parlamento Europeu, que deveria ter o poder de fiscalizar efectivamente a política monetária. Esta deveria passar a ter como objectivo não só a estabilidade de preços, interpretada de forma menos estrita, mas também o crescimento económico e o pleno emprego, corrigindo assim o actual enviesamento deflacionário. Como nos EUA. O BCE deveria apenas ter autonomia na escolha da melhor forma de alcançar os objectivos que em cada momento o poder político lhe fixaria. Enfim, democracia na condução da política monetária.

É a economia...

«'Não faz sentido que o caso da França seja aproveitado. Portugal perderia credibilidade e seria danoso para a economia', disse o ministro, no final de uma intervenção perante a Comissão Económica e Monetária do Parlamento Europeu». No Diário Económico. «Não se deve cair na tentação de tentar resolver problemas económicos reais desvalorizando a moeda (. . .) A solução está nas reformas estruturais». Mais uma vez Teixeira dos Santos. Desta vez no Público.

O fundamentalismo económico em todo o seu esplendor. Orçamentos equilibrados e euro forte. Custe o que custar. A estagnação económica e o desemprego resolvem-se por si. No longo prazo. É impressionante que um ministro «socialista» de uma pequena economia aberta com um desempenho tão medíocre apareça com posições deste tipo. A economia portuguesa precisa de investimento público e de uma folga orçamental. Além do mais, alguém é capaz de me explicar como é que se justifica esta oposição entre as questões cambiais e os «problemas económicos reais». Os problemas monetários e cambiais não são reais, não têm consequências reais? Com o euro próximo do seu máximo histórico face ao dólar, como é que é possível promover as exportações para fora da zona euro?

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Um blogue sem muros


«José Sócrates não dedicou um só segundo à mais importante notícia europeia desta semana: o modo como o Eurogrupo - que acompanha o Pacto de Estabilidade - aceitou que a França diferisse de 2010 para 2012 o 'défice zero'. O Pacto já tinha sido ferido na asa - e ainda bem - quando a Alemanha, por não conseguir cumprir as metas, forçou a sua agilização. Agora recebe um golpe fatal, que inevitavelmente abre a caixa das imitações. De novo, ainda bem. Um dia destes, o colete de forças imposto às economias europeias rebenta mesmo. Para um país como Portugal, a combinação entre um euro sobreavaliado, taxas de juro elevadas, e draconianas restrições orçamentais, tem tido o efeito que se conhece: somos o único país da União que, desde 2001, entrou em rota de divergência contínua com as principais médias europeias».

Miguel Portas sobre a ida de José Sócrates a Estrasburgo para apresentar as proridades da Presidência portuguesa. O eurodeputado manterá, durante este semestre, um blogue «sem muros» que acompanhará «as Europas de que a Europa se faz». A seguir com atenção. A esquerda bem precisa de um europeísmo de combate.

A única polícia deste blogue



Depois do excelente concerto da semana passada, fica aqui o single do novo álbum dos nova-iorquinos Interpol. Um álbum talvez uns furos abaixo dos anteriores, mas certamente muito recomendável.

Cuidado com o que estudam!

Ainda em relação ao artigo do NYT, referido pelo João aqui abaixo, transcrevo só um aviso feito Alan Blinder, ex-vice-presidente do Federal Reserve (Banco Central lá do sítio), aos alunos que estejam a fazer mestrado ou doutoramento e que, portanto, aspiram a entrar na academia: «Não façam o que eu faço». Alan Blinder defendeu, através de um estudo empírico, a relação causal entre a subida do salário mínimo em Nova Jérsia e a diminuição do desemprego neste estado.

Sensatez

Por uma vez estou de acordo com o governador do Banco de Portugal: «Devemos olhar sempre com desconfiança para a migração de modelos» (no Público de hoje). Isto a propósito da discussão em torno da flexi-segurança.

Estratégias

«Os salários dos portugueses caíram 0,7% no ano passado, revelou ontem o Banco de Portugal, que mantém para este ano a estimativa de crescimento da economia em 1,8% e revê em ligeira alta - para 2,2% - o aumento do PIB em 2008. O investimento caiu 2% em 2006 mas agora, após a retoma das exportações, será um dos motores da economia (. . .) Mais vulneráveis, afirmou Vítor Constâncio, estão os extractos populacionais 'com rendimentos mais baixos'».

Esta foi a estratégia delineada por quem conduz a política económica em Portugal, à imagem do que se passa em tantos países europeus: contracção do crescimento da massa salarial de modo a facilitar a recuperação, manutenção e aumento dos lucros das empresas e a favorecer o sector exportador que assim teria uma estrutura de custos mais ligeira. Isto, e a quebra do investimento público, geram uma contracção da procura interna. Embora a procura externa tenha crescido, esta não é suficiente para nos tirar de um crescimento anémico porque muitos dos países de destino das nossas exportações estiveram ou estão apostados na mesma estratégia de compressão da procura interna (caso da Alemanha), favorecendo os sectores exportadores. Com o euro a valorizar-se, a estratégia de extroversão extra-comunitária encontra os seus limites.

E que tal começar a pensar em estratégias cooperativas de relançamento da procura à escala da União?

O monopólio na «ciência esquálida»

Os economistas ortodoxos passam a vida a defender as virtudes da concorrência desenfreada. Mas tendem a não aplicar o mesmo raciocínio à sua profissão. Na esmagadora maioria dos departamentos de economia reina a paz dos cemitérios do pensamento único. Imposta, como já aqui afirmei, por meios extra-científicos. Onde existe pluralismo e debate, muitos fazem um esforço, por vezes bem sucedido, para acabar com tais heresias, usando da intriga, da acusação desonesta de enviesamento ideológico ou da razão do poder. Raras vezes apostando no debate honesto e frontal. Olhem que eu sei do que estou a falar...

De facto, quem se atreve a contestar os pressupostos da teoria dominante ou as suas conclusões neoliberais pode passar um mau bocado. Leiam este excelente artigo do New York Times sobre o que se passa nos EUA e sobre como, apesar de tudo, as coisas estão a mudar. A afirmação das virtudes do salário mínimo, do proteccionismo selectivo ou, a um nível mais teórico, mas com tantas implicações práticas, a incorporação de pressupostos mais realistas sobre o comportamento humano, parecem estar a abalar a fé na utopia do mercado sem fim. E a mudar a forma dominante de entender a ciência económica.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Novas oportunidades para o abandono?

O programa «Novas Oportunidades» é já uma das principais bandeiras deste Governo. O programa permite a certificação de competências adquiridas pelos trabalhadores ao longo do tempo. Complementadas por eventuais períodos de educação formal, tal certificação conduz normalmente à obtenção do diploma do 9º ou 12º ano. Até aqui tudo bem. Ficaremos melhor colocados nas estatísticas internacionais e o nível educacional dos portugueses será, de facto, maior.


O problema começa quando se percebe que a educação formal associada ao projecto está, pelo menos no caso do 9º, cingida às disciplinas nucleares (Matemática, Português e Cidadania). Ou seja, a obtenção do diploma do 9º é consideravelmente facilitada, face a um currículo intenso de Fisico-Química, História, Geografia, Inglês ou Françês, que o actual ensino obrigatório (e bem!) inclui. Este diploma é assim desqualificado no mercado de trabalho e os estudantes encontrarão uma forma mais fácil de o conseguir (embora só aos 18 anos e com três anos de experiência). Conclusão: o incentivo ao abandono escolar, problema central do nosso sistema educativo, cresce.

Reproduzo, em baixo, um excerto de uma entrevista de Eugénio Rosa à revista «Formar» do Instituto de Emprego, onde este economista da CGTP alerta para estes riscos na certificação do 12º ano.


«Eu tenho a experiência, de um acompanhamento muito próximo, de cursos de Educação e Formação de Adultos realizados no distrito de Braga, cujo objectivo era a certificação profissional e a obtenção do 9.º ano. Dirigiam-se a desempregados, que recebiam uma bolsa de formação. Os cursos eram de 1200 horas, em horário laboral.
Verificávamos que, geralmente, os formandos conseguiam obter as competências profissionais mas a obtenção de resultados ao nível das competências escolares era muito mais difícil. Em relação a muitos deles, entre o teste diagnóstico de entrada e a avaliação final as diferenças não eram significativas. Por isso, nunca nos arriscámos a organizar cursos para o 12.º ano. Transpondo essa nossa experiência para as metas que agora se propõem... e que tornam o 12.º ano o nível de escolaridade de referência, recorrendo em larga escala ao Sistema de Reconhecimento e Validação de Competências, através dos Centros de Novas Oportunidades, levantam-me algumas inquietações. Se for utilizado de uma forma incorrecta, este processo de reconhecimento de competências pode vir a provocar «estragos» muito grandes no ensino formal e aumentar ainda mais o abandono escolar. Porque para se fazer o 12.º ano no ensino secundário é necessário um grande esforço. Se houver uma forma de obter o certificado de uma maneira mais fácil, essa informação generaliza-se num instante e o abandono escolar, que já é em Portugal (40%) o mais elevado na UE (15%), tenderá a aumentar ainda mais».

«Sarkonomics» (II)

«Primeiro, quer um choque fiscal (descida de impostos, descida de contribuições para a Segurança Social) além de profundas reformas na administração pública francesa. Para o conseguir, entra em choque frontal com o propósito de diminuir o ‘déficit’ do Estado francês. (...) Ao contrário da generalidade dos políticos e economistas europeus, Sarkozy compreendeu uma evidência: assim como está concebido, e como há dois anos escrevo, o euro é um perigo para as democracias europeias».

Excelente artigo de Domingos Amaral no Diário Económico. Sarkozy tem razão em contestar as regras do Pacto. O problema são as soluções propostas. O choque fiscal proposto, ao contrário do que afirmam os seus defensores, apenas diminui as receitas fiscais, tendo um efeito muito diminuto na dinamização da actividade económica. Como se viu nos EUA com Reagan e os seus brutais défices. De facto, a curva de Laffer, que supostamente suportaria estas aventuras regressivas, já há muito que foi desmentida. Mas como sempre a direita é pragmática quando se trata de alcançar aquilo que importa: diminuir as obrigações daqueles que têm mais poder, riqueza e dinheiro. O défice vale bem esse objectivo. Engenharia social ao serviço da consolidação do poder da sua base de apoio. Mais uma vez: quando é que os governos de esquerda aprendem a lição?

Erros com demasiada margem (II)

Pedro Magalhães diz que li mal o seu artigo. Ele, ao contrário do que afirmei neste post, não defende a relação causal entre a "excessiva" regulação do mercado de trabalho europeu e a estagnação da produtividade na Europa. Ainda bem! Aliás, ficamos agora a saber que recusa os dois primeiros ângulos de abordagem apresentados no seu artigo. Só o terceiro ângulo reflecte verdadeiramente o seu pensamento. Curiosamente, Pedro Magalhães esqueceu-se de rebater o primeiro ângulo (o tal da excessiva regulação dos mercados de trabalho) e ficou-se só pela crítica ao segundo (trade-off entre felicidade e trabalho).

Quanto ao resto do meu post, ceteris paribus.
Já agora, para quem queira ter acesso ao artigo original, ele está aqui.

Não há heroínas e ainda bem...

«São os valores mais baixos alguma vez registados nas estatísticas disponíveis: em 2006 nasceram em Portugal 105.351 bebés, menos 4106 que no ano anterior; e o número médio de filhos por mulher em idade fértil caiu de 1,41 para 1,36». «O presidente da Associação Portuguesa de Demografia fala em sintoma de uma conjuntura de crise: A situação das famílias portuguesas agravou-se. Hoje em dia ter um filho é quase um acto de heroísmo».

De facto, para a chamada «geração dos 500 euros» as coisas não estão fáceis. Precariedade, aumento da incerteza face ao futuro, baixos salários, falta de estruturas de apoio acessíveis, tudo se conjuga para criar esta situação. Afinal de contas, neste campo, as pessoas tendem a agir de forma cada vez mais racional e a reagir aos incentivos gerados pelo contexto que as rodeia. Ainda bem para elas.

terça-feira, 10 de julho de 2007

«Economia Impura»: um lançamento a não perder

«O meu trabalho tem tido uma finalidade essencial ou até, se se preferir, uma obstinação: entender a economia como uma disciplina em que os actores, os contextos, as instituições, as culturas, as regras sociais, a contingência e a diversidade, a proximidade, o inesperado ou os territórios interessam tanto como o mercado, o equilíbrio, o cálculo, a racionalidade pré-estabelecida e dominante, ou seja, aquilo que constitui a imagem corrente e regular da economia (...) De facto, foi em nome de um pluralismo obstinado e de uma tendência quase constante para a insatisfação teórica e conceptual que a aproximação institucionalista se formou».

José Reis, Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra na introdução, em pré-publicação no Público, ao seu livro promissoramente intitulado Ensaios sobre Economia Impura. Não é por acaso que a economia institucionalista é uma das mais frutíferas correntes heterodoxas na ciência económica.

O livro será apresentado por Francisco Louçã, em Lisboa, na livraria Almedina Saldanha (Loja 71), amanhã às 18h30. A não perder por todos os que, como os autores deste blogue, entendem que a economia é uma ciência social de combate.

A Riqueza das Nações

Era uma vez, um fabricante automóvel de um país em desenvolvimento que decidiu tentar exportar um modelo para os Estados Unidos. Embora o automóvel fosse pequeno e barato, o momento era motivo de orgulho para o país e para o fabricante que, durante 25 anos, fabricara carros de baixa gama exclusivamente para o mercado interno.

A exportação do modelo falhou e logo se ergueram vozes defensoras do retorno da empresa ao seu negócio original, o fabrico de maquinaria têxtil, e da liberalização do mercado interno, de forma a permitir a entrada de melhores e mais baratos automóveis de outros países. O fabricante beneficiara de forte protecção tarifária durante décadas. O Estado tinha mesmo subsidiado a empresa, num momento de iminente falência, dez anos atrás. No entanto, a opinião que então prevaleceu foi a de dar mais tempo à empresa. Nenhum país se tinha desenvolvido sem um robusto sector automóvel.

Isto foi em 1958, no Japão, e a empresa em causa era a Toyota. A mesma empresa cuja marca Lexus é, hoje, um ícone da globalização.


Este exemplo, retirado deste fantástico artigo de Ha-Joon Chang (economista já aqui referido), mostra como TODOS os grandes países mais industrializados do mundo recorreram à protecção do seu mercado interno aquando dos seus processos de industrialização. Um valioso instrumento - necessariamente aliado a outros - negado actualmente, por estes mesmos países, ao mundo em vias de desenvolvimento.

«Sarkonomics» (I) ou voluntarismo político da direita

«O Presidente francês, Nicolas Sarkozy, defendeu hoje em Bruxelas uma 'aplicação inteligente e dinâmica' do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), ao explicar aos parceiros europeus as razões para um previsível atraso no equilíbrio orçamental francês». Leia-se: o presidente francês anunciou que o PEC não se aplica em França e que o seu governo pretende utilizar os défices públicos como instrumento de política económica para relançar o crescimento económico e aumentar a criação de emprego. Fá-lo-á, no entanto, através de uma redução da carga fiscal de mais do que duvidosa eficácia económica. Adicionalmente, criticou, e bem, a valorização excessiva do euro que prejudica as exportações europeias. Ou seja, pôs em causa os perversos pilares da zona euro.

Paradoxalmente, a resposta foi entusiástica: «numa primeira reacção à 'exposição' de Sarkozy, o presidente do Eurogrupo, o primeiro-ministro luxemburguês Jean-Claude Juncker, saudou o facto de a França ter decidido levar a cabo uma 'reforma profunda' da sua economia, manifestando-se convicto de que a mesma não travará o processo de consolidação orçamental no país».

Isto encerra uma grande lição: o PEC não passa de um instrumento para condicionar a política económica ancorada à esquerda e que aposta no investimento público e no controlo democrático da economia. Quando se apresentam novas versões do Reaganomics, com défices públicos como resultado de reduções dos impostos para os mais ricos, a resposta é entusiástica. A esquerda social-democrata, que se amarrou a aberrações, tem muito que aprender com o voluntarismo da direita.

Aberrações económicas

Em Julho de 1997, os governos da União Europeia adoptaram, na cimeira de Dublin, o famoso Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). Este procurava fixar um conjunto de regras que deveriam reger a política económica dos governos nacionais e das instituições europeias (sobretudo do Banco Central Europeu) no contexto da futura moeda única. Estas regras, marcadas por uma irracional obsessão com o equílibrio orçamental como um fim em si mesmo, já foram furadas várias vezes. De facto, o resultado do PEC é altamente perverso: défices das contas publicas que muitas vezes ultrapassaram os 3% como produto involuntário de uma política que continua a afirmar a prioridade do equilíbrio das contas públicas, o que, num contexto que tem oscilado entre o crescimento anémico, a estagnação e a recessão, só piora a situação, dando origem perversamente a uma cada vez maior distância face aos objectivos anunciados.

Realizada numa altura de relativo desafogo orçamental e quando estavam em voga as aberrantes teses da «nova economia» e do fim dos ciclos económicos no capitalismo, esta cimeira de Dublin instituiu o neoliberalismo como horizonte aparentemente intransponível das políticas publicas na União Europeia e assinalou a abdicação política da social-democracia na altura no poder na maioria dos países.

Pois bem, passados quase dez anos, os governos continuam mecanicamente a fixar como objectivo a total eliminação dos défices públicos. Desta vez, o objectivo é para ser atingido em 2010. Só que na reunião dos ministros das finanças dos países da zona euro apareceu, inadvertidamente, um Presidente da República que decidiu, na prática, mandar o PEC para o caixote do lixo da história das aberrações económicas...

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Erros com demasiada margem

O artigo de Pedro Magalhães de hoje, no Público, deixou-me perplexo. Sobretudo, quando o seu trabalho prima normalmente pela seriedade.

Num arrazoado de dados e comparações entre a Europa e os EUA feitas à medida do argumento, Pedro Magalhães defende que os europeus trabalham pouco e mal. A culpa é da falta de incentivos ao trabalho, do estatismo, do sindicalismo e da falta de boas práticas de gestão. No entanto, enquanto toma os EUA como um todo, Pedro Magalhães escolhe selectivamente os países europeus a comparar: a Finlândia e a França são os exemplos dados para os longos períodos de férias europeus; a Itália para o número de horas de trabalho semanais; e Alemanha e França para a percepção de «felicidade pessoal». Finalmente, tira conclusões para o nosso Portugal. Pedro Magalhães argumenta então pela relação causal entre a estagnação da produtividade europeia e a pretensa excessiva regulação dos mercados de trabalho que impõem férias demasiado generosas e limites muito rígidos para a carga horária.

Como a Europa é feita de realidades económico-sociais muito variáveis, acho que vale a pena fazer a comparação com o, supostamente, país mais generoso: a França (cinco semanas de férias legais e uma na carga horária semanal de 35 horas). Segundo a Alternatives Economiques deste mês, a produtividade horária francesa é superior à americana em seis pontos percentuais!

Quanto às comparações internacionais da percepção de felicidade pessoal, os EUA aparecem, de facto, à frente de França. No entanto, se tivermos em conta que a Colômbia – esse paraíso marcado pela guerra civil e narcotráfico – aparece à frente dos EUA, penso que estes rankings devem ser lidos com um «grãozinho» de desconfiança.

Finalmente, a invocação do caso português é abusiva. Portugal é, dos países europeus, um dos que mais se aproxima dos EUA no número de horas de trabalho anuais per capita. Segundo a OCDE, trabalhamos em média 1694 horas contra as 1825 americanas e, já agora, as 1543 horas francesas.

domingo, 8 de julho de 2007

Um livro incómodo


Um dos melhores jornalistas portugueses, João Ramos de Almeida, acaba de publicar um interessante livro, cujas apresentações deixo a cargo da editora Dom Quixote:

«As eleições autárquicas de 2001 representaram o fim de um ciclo político. Por uma vantagem de 856 votos na noite eleitoral, o PSD foi a principal força política na capital e Pedro Santana Lopes tornou-se presidente da Câmara Municipal, no lugar do socialista João Soares, contribuindo para a demissão do primeiro-ministro António Guterres. As suspeitas de fraude eleitoral levaram o Ministério Público a investigar e, por fim, a encontrar indícios, 'se não de uma conduta intencionalmente falseadora da verdade eleitoral, pelo menos grosseiramente negligente do desempenho das funções de membro da assembleia de apuramento geral'.
Este livro é o resultado de uma análise exaustiva dos documentos eleitorais dessa votação e da recolha de depoimentos de autarcas e pessoas ligadas à campanha de Lisboa. Da sua leitura, sobressairão numerosas discrepâncias reveladoras de um processo de escrutínio eleitoral – desde o recenseamento até à publicação dos resultados em Diário da República – significativamente permeável a erros, à adulteração, intrusão ou intenção dolosa de alterar o sentido de voto dos eleitores, eventuais actos que tornam impossível afirmar com segurança quem, efectivamente, ganhou as eleições de 2001 em Lisboa».

Diz-me quanto te vaiam e dir-te-ei quão popular és


O primeiro-ministro, José Sócrates, foi ontem alvo de uma monumental vaia no Estádio da Luz, ao final da tarde, no arranque da gala das Sete Maravilhas. Diz o Correio da Manhã que «os cerca de 40 mil espectadores presentes aplaudiram Cristiano Ronaldo, o seleccionador nacional de futebol Luiz Filipe Scolari e o Presidente da República, Cavaco Silva, quando apareceram nos ecrãs gigantes colocados no estádio. Mas quando chegou a vez do primeiro-ministro, levantou-se uma onda de assobios».

O bom do Correio da Manhã apressa-se logo a lembrar que «José Sócrates não é o primeiro chefe de Governo a ser vaiado no actual Estádio do Benfica. Já Durão Barroso, quando liderava o Governo, foi objecto de recepção semelhante». Pois é, a diferença está no facto de Durão Barroso ter liderado um governo muito impopular desde o seu primeiro dia como primeiro-ministro, enquanto Sócrates e o seu partido têm sido um caso sério de popularidade. Mas a avaliar pela crescente frequência e intensidade das vaias, o estado de graça parece estar a passar.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Viva o cinema europeu



Já foi visto por quase três milhões de pessoas no Youtube e, pasmem-se, é sobre o cinema europeu. Eu gosto muito do cinema europeu e gosto muito deste clip promocional. E gostei também de ler o que o crítico de cinema João Lopes escreveu no blogue sound & vision a este propósito: «Num continente tão atrasado — sublinho: atrasado — na sua capacidade de valorizar, promover & vender o seu cinema, a campanha do programa Media é uma pequena lufada de ar fresco, descomplexada face aos filmes, inteligente em termos de marketing. Além do mais, vale a pena citar os filmes "escandalosos" cujas imagens são utilizadas: O Fabuloso Destino de Amélie, de Jean-Pierre Jeunet, Ondas de Paixão, de Lars von Trier, A Melhor Juventude, de Marco Tullio Giordana, Má Educação, de Pedro Almodóvar, Adeus Lenine, de Wolfgang Becker, Hean-On - A Esposa Turca, de Fatih Akin e Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci».

Europa (II) ou umbiguismo, amiguismo e publicidade num só post


Já está nas bancas o número de Julho do «Le Monde Diplomatique - edição portuguesa». «A União Europeia na Encruzilhada: Limites e Possibilidades do Projecto Europeu» é o tema do dossiê português e conta com a participação de António Figueira e dos «ladrões» Pedro Nuno Santos, João Rodrigues e Ricardo Paes Mamede. Corram a comprar, pois os textos são mesmo muito bons.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Europa (I)

A ATTAC- Núcleo Europa promove, esta sexta-feira pelas 19 horas, um debate sobre o futuro da U.E. com dois juristas:
José Manuel Pureza (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Bloco de Esquerda)
Pedro Delgado Alves (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Juventude Socialista)

Dada a qualidade dos dois intervenientes, é um debate a não perder. É na Galeria Zé dos Bois (Rua da Barroca 59, Bairro Alto).

Sarko

Segundo o Público de hoje, as anunciadas políticas económicas de Nicolas Sarkozy começam a provocar preocupações por essa Europa fora. De facto, contrariando o gáudio com que a sua eleição foi recebida pelos nossos ultraliberais, Sarkozy apresenta um programa que não se distancia muito da matriz gaullista há muito dominante na direita francesa.

Num período onde a direita europeia parece rendida ao liberalismo, o Presidente francês defende o proteccionismo económico activo, critica a política monetária do BCE e prepara-se para violar o Pacto de Estabilidade e Crescimento. Contudo, não se deixem enganar sobre o que está aqui em causa. A violação do pacto de estabilidade será o resultado de um «choque fiscal» (onde é que eu já ouvi isto?) que beneficiará de sobremaneira os mais ricos, sobretudo o 1% do topo. Assim, segundo a Alternatives Economiques, um alto executivo que receba 100 000 euros por mês pagará menos 33 000 euros de impostos por ano, enquanto um trabalhador que ganhe o salário mínimo, 1 000 euros por mês, pagará mais 80 euros de impostos.



Sarkozy prepara-se pois para aplicar um programa marcado pelo nacionalismo económico, que, aliado à liberalização das relações laborais internas, resulta numa redistribuição do rendimento que aprofunda as crescentes desigualdades francesas. Se a estas políticas juntarmos a criação de um Ministério da Identidade Nacional e nos esquecermos do seu pretenso europeísmo passamos a ter um governo com um programa parecido com o de outra força política francesa. Não?

terça-feira, 3 de julho de 2007

Privatizar, Privatizar, Privatizar


O Jornal de Negócios de hoje traz um artigo de opinião do insuspeito Jorge Vasconcelos (ex-presidente da ERSE- Entidade Reguladora do Sector Energético) sobre a privatização em curso da REN (distribuidora nacional de energia eléctrica). Defensor de um mercado liberalizado da energia, Jorge Vasconcelos não percebe a privatização desta eficiente empresa pública. A única explicação parece ser a obsessão deste Governo pelas contas públicas. Como não tem link, deixo duas passagens:

«A privatização da REN parece ser a resposta tecnicamente iluminada, politicamente moderna, economicamente inteligente, financeiramente vanguardista e socialmente ousada a uma qualquer questão. Será?»
(...) Assim, um monopólio semiprivado no meio de um mercado virtual produz o mesmo efeito que um smoking na praia. Nada de mal acontecerá se, amanhã, após uma patriótica privatização para resolver a emergência financeira de hoje, os planos de expansão da REN forem anunciados num hotel londrino e os lucros das redes energéticas nacionais forem distribuídos pelas viúvas da Escócia, pelos reformados da Califórnia ou pelos oligarcas russos. Mas os consumidores portugueses de energia não retirarão daí qualquer benefício».

O renascer da Economia Pós-Autista


Foi ontem publicada no Libération uma carta aberta de alunos de economia franceses crítica do actual rumo do ensino desta ciência social. Esta carta recupera as propostas feitas já há sete anos pelo movimento «pós-autista». Este movimento, composto por estudantes de economia, dava conta da desilusão que acompanha muitos dos estudantes com a ciência económica, devido ao pensamento neo-clássico, «autista», reinante nas faculdades de economia. Este movimento teve, na altura, ampla repercussão internacional. As petições multiplicaram-se e emergiu um estimulante debate público entre alguns dos principais economistas vivos. O fim da excessiva formalização matemática (quase tida como única linguagem aceitável), uma abordagem mais plural das diferentes correntes teóricas e uma maior confrontação entre teoria e realidade, foram, e são, algumas das propostas deste movimento, agora aparentemente renascido.

Em França, houve mesmo um relatório oficial, elaborado por Jean-Paul Fitoussi, muito crítico e com propostas de reforma. Infelizmente, num período em que a economia neo-clássica é, cada vez mais, a imperialista "rainha" das ciências sociais, esta discussão parecia ter morrido.

Balanços do neoliberalismo (III)

Vital Moreira argumenta que Blair irá ficar para a história como alguém que «modernizou e dinamizou o trabalhismo britânico e com ele a social-democracia europeia, reformou e salvaguardou a welfare state e os serviços públicos». Lamenta apenas o «enorme erro da guerra do Iraque».

Discordo totalmente. Em primeiro lugar, acho que Blair representa abdicação total do programa social-democrata de reformas na estrutura das economias capitalistas e nos seus principais mercados. Em segundo lugar, a herança de Blair em matéria de serviços públicos é das mais perniciosas. Longe de salvar o Estado Providência, as suas políticas de «mimetismo mercantil» (expressão utilizada pelo cientista político David Marquand num livro esclarecedor sobre o atrofiamento do espaço público intitulado O Declínio do Público) apenas aprofundaram a sua subversão. Com pesados custos e poucos resultados.

De facto, a generalização da lógica de contratualização da provisão com privados ou com entidades públicas supostamente dotadas de autonomia, assegurando financiamento público, não tem dado os resultados esperados. Os contratos, como não poderia deixar de ser, são de difícil e custoso controlo, a introdução de «concorrência» e de incentivos pecuniários selectivos subverte as prioridades da provisão e a gestão do sistema torna-se cada vez mais difícil. No ensino superior aumentou brutalmente as propinas fazendo do endividamento estudantil um tema nacional. Agora tem um projecto que entrega a gestão de muitas escolas públicas aos interesses privados...

Em Portugal, esta lógica importada vai fazendo o seu caminho. O novo trabalhismo criou uma estripe do «vírus liberal», feita de engenharia social que procura recriar «o mercado» na esfera dos serviços públicos, que parece afectar com particular intensidade os nossos socialistas.

Balanços do neoliberalismo (II)

E depois temos um regime macroeconómico frágil, assente na acumulação de dívida interna e externa, sob hegemonia da finança de mercado, dependente de uma evolução insustentável dos preços dos activos (imobiliário e activos financeiros) e da capacidade para atrair fluxos de capital do resto do mundo. Este esquema, altamente desequilibrado, é aliás largamente partilhado pelo outro país desenvolvido com a variedade neoliberal de capitalismo mais evidente: os EUA. Em ambos o «reajustamento» é inevitável. Pesada herança.

Balanços do neoliberalismo (I)

Considero que a avaliação da experiência de dez anos de governo trabalhista, sob a liderança de Blair, é um dos tópicos mais importantes para o futuro da esquerda. Num post anterior argumentei que o governo trabalhista tinha mantido a pesada herança social de Thatcher: uma sociedade desigual com níveis de pobreza, sobretudo infantil, elevados. Tiago Barbosa Ribeiro apresenta dados, que embora contraditórios entre si, parecem apontar para uma diminuição da pobreza infantil. É curto para um governo de esquerda que esteve no poder dez anos. E estruturalmente pouco mudou. Aconselho a leitura deste estudo da UNICEF sobre o tema da pobreza infantil nos países desenvolvidos. O Reino Unido continua a ser, com a excepção dos EUA, o país com a maior percentagem de crianças a viver em famílias que auferem um rendimento inferior a 50% do rendimento mediano (16,2% para uma média de 11,2%). E continua a acompanhar os EUA no fundo da tabela quando se introduzem outros indicadores de bem-estar.

Aliás no ano passado registou-se um aumento da pobreza infantil. Assim se mostra que os mais pobres recebem mesmo as últimas migalhas do crescimento económico. Crescimento que tem sobretudo beneficiado as classes mais ricas. Por exemplo, em 1980, os gestores de topo das empresas cotadas no índice FTSE ganhavam dez vezes mais do que o trabalhador médio das suas empresas. Em 1990 ganhavam 31,5 vezes mais e em 2002 75,7. Não é por acaso que as abissais desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento são neste momento um dos tópicos mais discutidos na sociedade britânica.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

Depois de amanhã no Super Rock



E eu sou como aquele ali aos pulos (mas em versão feminina, claro), clapping my hands and saying YEAH.

Amanhã no Super Rock!



O melhor grupo da actualidade?

Here comes the man


Michael Moore está de volta. O novo filme chama-se Sicko, é sobre o sistema de saúde dos Estados Unidos e estreou nas salas norte-americanas na semana passada. Como diz João Lopes, «pode gostar-se ou não, mas Michael Moore não engana ninguém: não faz documentários 'objectivos', mas sim verdadeiros panfletos cinematográficos em que o assumir da primeira pessoa é elemento vital da estratégia de encenação e reportagem». Deixo-vos o «trailer».


Cidadãos/utentes ou clientes?

«Está a perder-se esse sentido de solidariedade?
Este Governo está a perder...Não é só este governo; tem vindo a perder-se. As pessoas hoje aceitam coisas que não aceitavam. A ideia liberal de que tudo se compra e vende, de que a saúde pode ser uma mercadoria. Hoje fala-se nos doentes como clientes. Cria-se uma terminologia de mercado. Mas não é a economia de mercado que me preocupa; é a vida ser um mercado
».

António Arnaut, militante do PS, em entrevista recente ao JN. Arnaut foi, enquanto ministro dos assuntos sociais, um dos pais fundadores do Serviço Nacional de Saúde. Responsável pela notável aceleração da melhoria dos indicadores de saúde em Portugal. Isto era no tempo em que os socialistas ainda recusavam o liberalismo.

Hoje, Arnaut tem vindo a apontar as ameaças políticas que pairam sobre o SNS. E chama justamente a atenção para aquilo que os economistas comportamentais designam por «efeito de enquadramento». O uso de certas palavras, a introdução no quadro da provisão pública de mecanismos de tipo mercantil, tem um impacto na forma como as pessoas percepcionam o serviço a que estão a aceder. De facto, não há nada melhor para criar no SNS uma perversa cultura de mercado, em que progressivamente se aceita que tudo se pode comprar e vender, do que a generalização de «uma terminologia de mercado». As palavras nunca são neutras.

Nova crise no horizonte?


A «Alternatives Economiques» deste mês dá conta de um relatório do Banco Mundial dedicado aos mercados financeiros dos países em vias de desenvolvimento, o Global Development Finance 2007. Este relatório contém vários sinais de preocupação.

O risco de fragilidade financeira, explicado pelo João num dos posts aqui abaixo, parece ter vindo a aumentar. A expansão económica mundial dos últimos quatro anos - sim, a expansão que passou ao lado do nosso país! - permitiu uma maior liquidez nos mercados financeiros (existe mais moeda a circular nestes mercados). Este aumento da liquidez traduziu-se na busca de novos destinos para os fluxos financeiros globais, normalmente os mercados de acções dos países em desenvolvimento, cujos índices bolsistas dispararam. No entanto, tais fluxos financeiros são sobretudo especulativos. Têm um efeito pouco mais do que marginal na capacidade produtiva destes países e deslocam-se muito rapidamente, como aconteceu, aliás, durante a crise asiática.

Ao aumento da volatilidade acresce um aumento do peso dos actores menos fiáveis, mas mais rentáveis, na procura de financiamento: nos empréstimos obrigacionistas passou de 10% em 2000 para 37% em 2006 e nos empréstimos bancários de 50% a 80%. Se, devido à natural desaceleração da economia mundial, estes «investidores» entrarem maciçamente em falência («default»), corremos o risco de ver a história repetir-se. A recente queda brutal da bolsa de Shangai parece ser já um indício.

domingo, 1 de julho de 2007

A crise asiática foi há dez anos (III)

Como já atrás referimos, um dos mitos liberais mais arreigados diz respeito às virtudes da livre circulação de capitais para o desenvolvimento dos países. Se há algo que a experiência da generalidade dos países asiáticos mostra é que esta hipótese é no mínimo simplista. De facto, a esmagadora maioria das experiências de crescimento económico acelerado fez-se, salvo raríssimas excepções, com robustos controlos à entrada e à saída de capitais. Sobretudo de capitais especulativos de curto prazo. Mas também através do esforço para impor condições, regras e limitações aos investimentos estrangeiros directamente criadores de capacidade produtiva adicional.

Isto representou o reconhecimento, infelizmente esquecido por tantos, de que a livre circulação de capitais à escala internacional pode criar quatro formas de risco que os países fazem bem em procurar evitar: (1) risco cambial associado a oscilações demasiado violentas no valor da taxa de câmbio devido a entradas e saídas súbitas de capitais; (2) risco de fragilidade financeira associado a padrões de investimento especulativo, à sucessão de períodos de euforia, com subidas rápidas dos preços dos activos, seguidos de períodos de pânico com quebras rápidas dos preços, tudo convenientemente alimentado pela tendência para a acumulação de níveis de endividamento externo que se revelam insustentáveis; (3) risco de contágio, quando os países de uma certa área passam a ser vistos, na vertigem dos fenómenos especulativos internacionais, como semelhantes, o que leva a poderosos efeitos de mimetismo por parte dos detentores de capitais e, em épocas de crise, a fugas rápidas e maciças; (4) risco de perda de soberania quando a política económica dos países passa então a estar dependente dos humores dos mercados financeiros internacionais e das instituições que os suportam.

A crise asiática foi há dez anos (II)

As lições da crise pareciam, ainda em 2003, ter sido aprendidas até pelos liberais mais intransigentes. Por exemplo, a revista britânica The Economist, fazendo eco de um estudo do FMI, declarou: «Esta revista afirmou durante muito tempo que o controlo de capitais seria de banir em toda e qualquer situação. Ora da análise dos dados (. . .) ressalta que o mercado mundial de capitais é turbulento e perigoso, em particular para as economias pouco desenvolvidas (. . .) Mesmo que isso cause alguma perturbação, os economistas liberais deverão reconhecer que (em certos casos e dentro de certos limites) se justifica o controlo do movimento de capitais (. . .) É mais do que tempo de rever a ortodoxia sobre esta matéria».

Esta posição deveu-se ao facto da China e da Índia, países que não foram atingidos pela crise de 1997-1998, terem mantido, ao contrário dos países atingidos, robustos controlos à entrada e à saída de capitais (taxas, restrições quantitativas. . .). Ainda hoje a moeda chinesa não é totalmente convertível e existe toda uma bateria de controlos à circulação de capitais. Controlos mais do que justificados. Controlos que o FMI, o governo norte-americano e tanto economistas liberais continuaram a querer abolir. Apesar de toda a evidência que se acumulou a favor da sua manutenção e até do seu reforço.

A crise asiática foi há dez anos (I)

A crise financeira, económica e social que a partir de julho de 1997, e sobretudo durante o ano de 1998, atingiu muitos países asiáticos foi a maior crise do género desde a grande depressão dos anos trinta. Os efeitos de contágio desta crise ao resto da economia mundial (sobretudo aos EUA) foram travados pela intervenção decisiva da Reserva Federal (Banco Central dos EUA). Como sempre o país central usou instrumentos de política que muitos dos outros países periféricos e semi-periféricos foram impedidos de usar assim tendo que suportar o fardo da crise.

Como argumentaram então muitos economistas (incluindo o Prémio Nobel Joseph Stiglitz), esta crise veio mostrar as consequências desastrosas dos processos de liberalização dos mercados financeiros e a instabilidade intrínseca da liberdade de circulação de capitais num universo globalizado onde domina a liquidez financeira.

As próprias instituições financeiras internacionais (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional) que foram nas décadas de oitenta e de noventa do século passado das principais promotoras dos processos de liberalização financeira, reconheceram então que as «crises financeiras se tornaram mais frequentes desde o início dos anos oitenta» e que isto «tem sido associado ao aumento dos fluxos internacionais de capitais (especialmente fluxos privados) para os países em desenvolvimento e à crescente integração desses países nos mercados financeiros internacionais» (Banco Mundial, 1998: 124-125). É evidente que isto foi escrito quando Stiglitz era economista-chefe do Banco. Foi expulso pouco tempo depois por pressão do governo «democrata» dos EUA.