Uma frase, colhida ao acaso na Internet, fez-me voltar ao encontro de George Orwell através do seu livro 1984 que eu já conhecia dos meus tempos de juventude. Agora sem o bloco soviético é a Coreia do Norte que surge de imediato no nosso imaginário, como o mundo descrito pelo escritor.
Na verdade sei menos hoje sobre o que se passa na Coreia do Norte do que sabia - na altura em que li o livro - da vida nos países socialistas. Mas o livro 1984 não é uma obra de ficção política num imaginário país comunista. Aliás, segundo George Orwell, o seu livro não é um ataque ao socialismo: "My recent novel [1984] is NOT intended as an attack on Socialism or on the British Labour Party (of which I am a supporter) but as a show-up of the perversions [...] which have already been partly realized in Communism and Fascism. [...] The scene of the book is laid in Britain in order to emphasize that the English-speaking races are not innately better than anyone else and that totalitarianism, if not fought against, could triumph anywhere." The Collected Essays, Journalism and Letters of George Orwell Volume 4 - In Front of Your Nose 1945-1950 p.546 (Penguin) --Technopat (talk) 16:40, 26 September 2008 (UTC). 1984 revela-se uma fascinante analise da sociedade humana onde os totalitarismos estão – infelizmente – ao alcance de todos.
Numa entrevista recente, o escritor Amin Maalouf afirmou que a França e a Inglaterra são, desde há séculos, nações onde se respeitam os direitos humanos e de cidadania. Todavia enquanto estados coloniais não agiram do mesmo modo com as populações dos territórios que ocuparam. Também os Estados Unidos, sublinha Amin Maalouf, são uma forte democracia dentro das suas fronteiras, infelizmente não se têm comportado como tal na América Latina e Médio Oriente. Ao reler 1984 de George Orwell, sinto que a fronteira entre a liberdade e o totalitarismo é muito ténue e pode ser facilmente transposta mesmo por pessoas “esclarecidas e progressistas”.
Deixo-vos aqui um excerto do livro escrito em 1940, mas que poderia ter sido escrito ontem…
“Ao advir a quarta década do século XX, eram autoritárias todas as grandes correntes do pensamento político. O paraíso terrestre desacreditara-se no momento preciso em que se tornara realizável. Cada nova teoria política, fosse qual fosse a sua etiqueta, conduzia de novo à hierarquia e à militarização. E no endurecimento geral de atitudes verificado por volta de 1930, práticas há muito abandonadas, em alguns casos ao longo de vários séculos – prisão sem julgamento, uso de prisioneiros de guerra como escravos, execuções publicas, torturas para arrancar confissões, uso de reféns e deportação de populações inteiras – não só voltavam a ser comuns, como eram toleradas e defendidas por pessoas que se consideravam esclarecidas e progressistas.
[…] Depois de uma década de guerras nacionais e civis, revoluções e contra-revoluções em toda a parte do mundo [tornara-se evidente] que tipo de pessoas dominaria este mundo. A nova aristocracia era composta, na sua maioria, por burocratas, cientistas, técnicos, dirigentes sindicais, publicistas, sociólogos, professores, jornalistas e políticos profissionais. Essa gente, cuja origem estava na classe assalariada e nos escalões superiores da classe operária, fora moldada e criada pelo mundo estéril da indústria monopolista e do governo centralizado. Comparada com as suas antecessoras, era menos avarenta, menos tentada pelo luxo, mais faminta de poder puro, e acima de tudo mais consciente do que fazia e mais decidida a esmagar a oposição. Esta última característica era fundamental. Confrontadas com as que existem hoje, todas as tiranias do passado foram frouxas e ineficientes […]. Em parte, a razão deste facto residia na impossibilidade de os governos do passado manterem sob constante vigilância os seus cidadãos. A invenção da imprensa, contudo, tornou mais fácil preparar a opinião pública, processo que o cinema e a rádio aperfeiçoaram. Com o desenvolvimento da televisão e o progresso técnico que tornou possível a recepção e transmissão simultâneas através do mesmo aparelho, a vida privada acabou. Cada cidadão, ou pelo menos cada cidadão suficientemente importante para justificar vigilância, passou a poder ser mantido vinte e quatro horas por dia sob os olhos da polícia e ao alcance da propaganda oficial […]. Existia a possibilidade de impor, não apenas completa obediência à vontade do Estado, mas também completa uniformidade de opinião a todos os súbditos.”
Orwell, George, 1984, 2ª edição, Lisboa, Círculo de Leitores, 1984, pp 190-191.
A frase que me trouxe de volta a 1984 foi esta: "As massas nunca se revoltarão espontaneamente, e nunca se revoltarão só porque são oprimidas. Com efeito, se não tiverem acesso a padrões de comparação nem sequer se aperceberão de que são oprimidas" (1984, George Orwell). Julgo que deve ser por causa disto que ainda não houve uma revolução na Coreia do Norte…