Vitinho ainda não havia completado 5 anos quando conheceu Camila. E isso há quase 40 anos. Uma menina diferente de todas as outras da rua, do bairro, da família e do mundo. Foi na escolinha de Santa Efigênia, na Casa Espírita André Luiz, já na época uma espécie de creche mantida por grupo de bom coração – é quase uma redundância falar em espírita de bom coração. Lá, crianças de famílias humildes se encontravam em busca de futuro melhor. Nos anos 1970 eram muitas. Centenas, talvez. Entre os pequenos de muitas idades estavam Dico, Rogério, Vitinho e Camila.
Vitinho já estava na instituição há mais de ano com seu irmão caçula, o Dico. Eram unha e carne. De salas diferentes, ainda assim, no recreio, andavam grudados como siameses. Diferença de idade pouca, 10 meses, os dois cresciam como gêmeos. Camila era nova no lugar. Vinha de família que teve boa situação financeira e faliu. Havia perdido o pai naquela primavera, vítima de acidente de trabalho no Iraque, onde defendia o pão por grande construtora. A mãe, em choque, precisou de internação para tratamento psiquiátrico. Camila e cinco irmãos foram morar com a avó, no Bairro Paraíso. Com Vitinho, na Avenida Mem de Sá, o quadro era bem menos dramático, apesar do casamento infeliz de seus pais.
Num cenário assim, de dramas familiares desmedidos, sob as folhas da primavera de 1975, os dois pequeninhos se encontraram. Vitinho jamais se esqueceu do dia em que conheceu Camila. Estava na fila da merenda com o irmão Dico, quando um marmanjo de cicatriz no rosto, dois anos mais velho, metido a rei da escola, quis comprar briga pela posição para receber a caneca do leite. Foi um empurrão só, suficiente para levar ao chão os dois irmãos. De repente, sem asas, como se tivesse descido do céu, com seu cabelo longo e de olhos esverdeados, surge Camila para enfrentar o valentão: “Por que você não empurra alguém do seu tamanho, minino?”.
Vitinho e Camila se tornaram muito amigos. Enamorado, o filho do Zé e da dona Maria descobria o amor, amando simplesmente. Jamais houve beijo, abraço ou aperto de mão. A presença e o sorriso apenas, do tipo que conforta e faz disparar o coração. Se Vitinho não sabia patavina do que estava sentindo, Dico, então, entendia menos ainda o abobalhamento do irmão. Pelo resto do ano, no intervalo, estavam sempre juntos os três: Dico, Vitinho e Camila, sentados no banquinho de pedra do pátio. Vitinho só tinha olhos e ouvidos para a inteligência histórica da menininha. Dico, na ponta, sobrando, ficava lá, mudo, brincando de fazer e desfazer laços na conguinha azul-marinho.
Do dia da fila do leite em diante, o menino da cicatriz ficou marcado pela bronca da Camila. Chamava-se Rogério. Vitinho soube depois. A marca que ele tinha no rosto foi feita pelo próprio pai, que também espancava a mulher. Mas essa é uma outra história. No ano seguinte, 1976, Camila não voltou para a Casa André Luiz. Vitinho não teve mais notícias da garota. Homenageou-a anos mais tarde, dando seu nome à filha. Hoje, moça feita, nem um pouco menos diferente da lindeza de outrora.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 28/8/10
Vitinho já estava na instituição há mais de ano com seu irmão caçula, o Dico. Eram unha e carne. De salas diferentes, ainda assim, no recreio, andavam grudados como siameses. Diferença de idade pouca, 10 meses, os dois cresciam como gêmeos. Camila era nova no lugar. Vinha de família que teve boa situação financeira e faliu. Havia perdido o pai naquela primavera, vítima de acidente de trabalho no Iraque, onde defendia o pão por grande construtora. A mãe, em choque, precisou de internação para tratamento psiquiátrico. Camila e cinco irmãos foram morar com a avó, no Bairro Paraíso. Com Vitinho, na Avenida Mem de Sá, o quadro era bem menos dramático, apesar do casamento infeliz de seus pais.
Num cenário assim, de dramas familiares desmedidos, sob as folhas da primavera de 1975, os dois pequeninhos se encontraram. Vitinho jamais se esqueceu do dia em que conheceu Camila. Estava na fila da merenda com o irmão Dico, quando um marmanjo de cicatriz no rosto, dois anos mais velho, metido a rei da escola, quis comprar briga pela posição para receber a caneca do leite. Foi um empurrão só, suficiente para levar ao chão os dois irmãos. De repente, sem asas, como se tivesse descido do céu, com seu cabelo longo e de olhos esverdeados, surge Camila para enfrentar o valentão: “Por que você não empurra alguém do seu tamanho, minino?”.
Vitinho e Camila se tornaram muito amigos. Enamorado, o filho do Zé e da dona Maria descobria o amor, amando simplesmente. Jamais houve beijo, abraço ou aperto de mão. A presença e o sorriso apenas, do tipo que conforta e faz disparar o coração. Se Vitinho não sabia patavina do que estava sentindo, Dico, então, entendia menos ainda o abobalhamento do irmão. Pelo resto do ano, no intervalo, estavam sempre juntos os três: Dico, Vitinho e Camila, sentados no banquinho de pedra do pátio. Vitinho só tinha olhos e ouvidos para a inteligência histórica da menininha. Dico, na ponta, sobrando, ficava lá, mudo, brincando de fazer e desfazer laços na conguinha azul-marinho.
Do dia da fila do leite em diante, o menino da cicatriz ficou marcado pela bronca da Camila. Chamava-se Rogério. Vitinho soube depois. A marca que ele tinha no rosto foi feita pelo próprio pai, que também espancava a mulher. Mas essa é uma outra história. No ano seguinte, 1976, Camila não voltou para a Casa André Luiz. Vitinho não teve mais notícias da garota. Homenageou-a anos mais tarde, dando seu nome à filha. Hoje, moça feita, nem um pouco menos diferente da lindeza de outrora.
Vida Bandida - Jefferson da Fonseca Coutinho - 28/8/10