Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria «provincianismo». Como todas as definições simples esta, que é muito simples, precisa, depois de feita, de uma explicação complexa.
Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de qualquer país, e portanto de Portugal; direi, depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.
Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental - a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que não é uso chamar nada, excepto, neste caso por engano, burguesia; e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.
O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás, que sejam sempre erradas. Por natureza, forma o povo um bloco, onde não há mentalmente indivíduos; e o
pensamento é individual.
O que caracteriza a segunda camada que não é a burguesia, é a capacidade de reflectir, porém sem ideias próprias; de criticar, porém com ideias de outrem. Na classe média mental, o indivíduo, que mentalmente já existe, sabe já escolher – por ideias e não por instinto - entre duas ideias ou doutrinas que lhe apresentem; não sabe, porém, contrapor a ambas uma terceira, que seja própria. Quando, aqui e ali, neste ou naquele, fica uma opinião média entre duas doutrinas, isso não representa um cuidado crítico, mas uma hesitação mental.
O que caracteriza a terceira camada, o escol, é, como é de ver por contraste com as outras duas, a capacidade de criticar com ideias próprias.
Importa, porém, notar que essas ideias próprias podem não ser fundamentais. O indivíduo do escol pode, por exemplo, aceitar inteiramente uma doutrina alheia; aceita-a, porém, criticamente, e, quando a defende, defende-a com argumentos seus - os que o levaram a aceitá-la - e não, como fará o mental da classe média, com os argumentos originais dos criadores ou expositores dessas doutrinas.
Esta divisão em camadas mentais, embora coincida em parte com a divisão em camadas sociais - económicas ou outras - não se ajusta exactamente a essa. Muita gente das aristocracias de história e de dinheiro pertence mentalmente ao povo. Bastantes operários, sobretudo das cidades, pertencem à classe média mental. Um homem de génio ou de talento, ainda que nascido de camponeses, pertence de nascença ao escol.
Quando, portanto, digo que a palavra «provincianismo» define, sem outra que a condicione, o estado mental presente do povo português, digo que essa palavra «provincianismo», que mais adiante definirei, define a mentalidade do povo português em todas as três camadas que a compõem. Como, porém, a primeira e a segunda camada mentais não podem por natureza ser superiores ao escol, basta que eu prove o provincianismo do nosso escol presente, para que fique provado o provincianismo mental da generalidade da nação.
Os homens, desde que entre eles se levantou a ilusão ou realidade chamada civilização, passaram a viver, em relação a ela, de uma de três maneiras, que definirei por símbolos, dizendo que vivem ou como os campónios, ou como provincianos, ou como citadinos. Não se esqueça que trato de estados mentais e não geográficos, e que portanto o campónio ou o provinciano pode ter vivido sempre em cidade, e o citadino sempre no que lhe é natural desterro.
Ora a civilização consiste simplesmente na substituição do artificial ao natural no uso e correnteza da vida. Tudo quanto constitui a civilização, por mais natural que nos hoje pareça, são artifícios o transporte sobre rodas, o discurso disposto em verso escrito, renegam a naturalidade original dos pés e da prosa falada.
A artificialidade, porém, é de dois tipos. Há aquela, acumulada através das eras, e que, tendo-a já encontrado quando nascemos, achamos natural; e há aquela que todos os dias se vai acrescentando à primeira. A esta segunda é uso chamar «progresso» e dizer que é «moderno» o que vem dela.
Ora o campónio, o provinciano e o citadino diferençam-se entre si pelas suas diferentes reacções a esta segunda artificialidade.
O que chamei campónio sente violentamente a artificialidade do progresso; por isso se sente mal nele e com ele, e intimamente o detesta. Até das conveniências e das comodidades do progresso se serve constrangido, a ponto de, por vezes, e em desproveito próprio, se esquivar a servir-se delas. É o homem dos «bons tempos», entendendo-se por isso os da sua mocidade, se é já idoso, ou os da mocidade dos bisavôs, se é simplesmente párvulo.
No pólo oposto, o citadino não sente a artificialidade do progresso. Para ele é como se fosse natural. Serve-se do que é dele, portanto, sem constrangimento nem apreço. Por isso o não ama nem desama: é-lhe indiferente. Viveu sempre (física ou mentalmente) em grandes cidades; viu nascer, mudar e passar (real ou idealmente) as modas e a novidade das invenções; são pois para ele aspectos correntes, e por isso incolores, de uma coisa continuamente já sabida, como as pessoas com quem convivemos, ainda que de dia para dia sejam realmente diversas, são todavia para nós idealmente sempre as mesmas.
Situado mentalmente entre os dois, o provinciano sente, sim, a artificialidade do progresso, mas por isso mesmo o ama. Para o seu espírito desperto, mas incompletamente desperto, o artificial novo, que é o progresso, é atraente como novidade, mas ainda sentido como artificial. E, porque é sentido simultaneamente como artificial é sentido como atraente, e é por artificial que é amado. O amor às grandes cidades, às novas modas, às «últimas novidades», é o característico distintivo do provinciano.
Se de aqui se concluir que a grande maioria da humanidade civilizada é composta de provincianos, ter-se-á concluído bem, porque assim é. Nas nações deveras civilizadas, o escol escapa, porém, em grande parte, e por sua mesma natureza, ao provincianismo. A tragédia mental de Portugal presente é que, como veremos, o nosso escol é estruturalmente provinciano.
Não se estabeleça, pois seria erro, analogia, por justaposição, entre as duas classificações, que se fizeram, de camadas e tipos mentais. A primeira, de sociologia estática, define estados mentais em si mesmos; a segunda, de sociologia dinâmica, define estados de adaptação mental ao ambiente. Há gente do povo mental que é citadina em suas relações com a civilização.
Há gente do escol, e do melhor escol - homens de génio e de talento -, que é campónio nessas relações.
Pelas características indicadas como as do provinciano, imediatamente se verifica que a mentalidade dele tem uma semelhança perfeita com a da criança. A reacção do provinciano, às suas artificialidades, que são as novidades sociais, é igual à da criança às suas artificialidades, que são os brinquedos. Ambos as amam espontaneamente, e porque são artificiais.
Ora o que distingue a mentalidade da criança é, na inteligência, o espírito de imitação; na emoção, a vivacidade pobre; na vontade, a impulsividade incoordenada. São estes, portanto, os característicos que iremos achar no provinciano; fruto, na criança, da falta de desenvolvimento civilizacional, e assim ambos efeitos da mesma causa - a falta de desenvolvimento. A criança é, como o provinciano, um espírito desperto, mas incompletamente desperto.
São estes característicos que distinguirão o provinciano do campónio e do citadino. No campónio, semelhante ao animal, a imitação existe, mas à superfície, e não, como na criança e no provinciano, vinda do fundo da alma; a emoção é pobre, porém não é vivaz, pois é concentrada e não dispersa; a vontade, se de facto é impulsiva, tem contudo a coordenação fechada do instinto, que substitui na prática, salvo em matéria complexa, a coordenação aberta da razão. No citadino, semelhante ao homem adulto, não há imitação, mas aproveitamento dos exemplos alheios, e a isso se chama, quando prático, experiência, quando teórico, cultura; a emoção, ainda quando não seja vivaz, é contudo rica, porque complexa, e é complexa por ser complexo quem a terá; a vontade, filha da inteligência e não do impulso, é coordenada, tanto que, ainda quando faleça falece coordenadamente, em propósitos frustes mas idealmente sistematizados.
Percorramos, olhando sem óculos de qualquer grau ou cor, a paisagem que nos apresentam as produções e improduções do nosso escol. Nelas verificaremos, pormenor a pormenor, aqueles característicos que vimos serem distintivos do provinciano.
Comecemos por não deixar de ver que o escol se compõe de duas camadas – os homens de inteligência, que formam a sua maioria, e os homens de génio e de talento, que formam a sua minoria, o escol do escol, por assim dizer. Aos primeiros exigimos espírito crítico; aos segundos exigimos originalidade, que é, em certo modo, um espírito crítico involuntário. Façamos pois incidir a análise que nos propusemos fazer, primeiro sobre o pequeno escol, que são os homens de génio e de talento, depois sobre o grande escol.
Temos, é certo, alguns escritores e artistas que são homens de talento; se algum deles o é de génio, não sabemos, nem para o caso importa. Nesses, evidentemente, não se pode revelar em absoluto o espírito de imitação, pois isso importaria a ausência de originalidade, e esta a ausência de talento. Esses nossos escritores e artistas são, porém, originais uma só vez, que é a inevitável.
Depois disso, não evoluem, não crescem; fixado esse primeiro momento, vivem parasitas de si mesmos, plagiando-se indefinidamente. A tal ponto isto é assim, que não há, por exemplo, poeta nosso presente - dos célebres, pelo menos - que não fique completamente lido quando incompletamente lido, em que a parte não seja igual ao todo. E se em um ou outro se nota, em certa altura, o que parece ser uma modificação da sua «maneira», a análise revelará que a modificação foi regressiva: o poeta ou perdeu a originalidade e assim ficou diferente pelo processo simples de ficar inferior, ou decidiu começar a imitar outros por impotência de progredir de dentro, ou resolveu, por cansaço, atrelar a carroça do seu estro ao burro de uma doutrina externa, como o catolicismo ou o internacionalismo. Descrevo abstractamente, mas os casos que descrevo são concretos; não preciso de explicar, porque não junto a cada exemplo o nome do indivíduo que mo fornece.
O mesmo provincianismo se nota na esfera da emoção. A pobreza, a monotonia da emoção nos nossos homens de talento literário e artístico, salta ao coração e confrange a inteligência. Emoção viva, sim, como aliás era de esperar, mas sempre a mesma, sempre simples, sempre simples emoção, sem auxílio crítico da inteligência ou da cultura. A ironia emotiva, a subtileza passional, a contradição no sentimento - não as encontrareis em nenhum dos nossos poetas emotivos, e são quase todos emotivos. Escrevem, em matéria do que sentem, como escreveria o pai Adão, se tivesse dado à humanidade, além do mau exemplo já sabido, o, ainda pior, de escrever.
A demonstração fica completa quando conduzimos a análise à região da vontade. Os nossos escritores e artistas são incapazes de meditar uma obra antes de a fazer, desconhecem o que seja a coordenação, pela vontade intelectual, dos elementos fornecidos pela emoção, não sabem o que é a disposição das matérias, ignoram que um poema, por exemplo, não é mais que uma carne de emoção cobrindo um esqueleto de raciocínio. Nenhuma capacidade de atenção e concentração, nenhuma potência de esforço meditado, nenhuma faculdade de inibição. Escrevem ou artistam ao sabor da chamada «inspiração», que não é mais que um impulso complexo do subconsciente que cumpre sempre submeter, por uma aplicação centrípeta da vontade, à transmutação alquímica da consciência. Produzem como Deus é servido, e Deus fica mal servido. Não sei de poeta português de hoje que, construtivamente, seja de confiança para além do soneto.
Ora, feitos estes reparos analíticos quanto ao estado mental dos nossos homens de talento, é inútil alongar este breve estudo, tratando com igual pormenor a maioria do escol. Se o escol do escol é assim, como não será o não escol do escol? Há, porém, um característico comum a ambos esses elementos da nossa camada mental superior, que aos dois irmana, e, irmanados, define: é a ausência de ideias gerais e, portanto, do espírito crítico e filosófico que provém de as ter. O nosso
escol político não tem ideias excepto sobre política, e as que tem sobre política são servilmente plagiadas do estrangeiro - aceites, não porque sejam boas, mas porque são francesas ou italianas, ou russas, ou o quer que seja. O nosso escol literário é ainda pior: nem sobre literatura tem ideias. Seria trágico, à força de deixar de ser cómico, o resultado de uma investigação sobre, por exemplo, as ideias dos nossos poetas célebres. Já não quero que se submetesse qualquer deles ao enxovalho de lhe perguntar o que é a filosofia de Kant ou a teoria da evolução. Bastaria submetê-lo ao enxovalho maior de lhe perguntar o que é o ritmo.
Fernando Pessoa - “O Caso Mental Português” - Fama, n.º 1, Lisboa, 30 de Novembro de 1932.
Tuesday, April 29, 2008
Monday, April 21, 2008
Cavaco no estrangeiro
Fica registado, mais vírgula menos vírgula, com o meu acordo total.
Os relatos da longa visita de Cavaco Silva à Madeira – uma semana inteira, que a agenda divulgada está longe de justificar - deixaram-me a estranha sensação de que o Presidente está de visita a um país estrangeiro: uma espécie de Palop, só que um Palop muito especial onde pagamos um alto preço por a bandeira nacional ainda flutuar onde o governo local consente.
A visita começou mal antes mesmo de começar. Primeiro, porque foi antecedida de uma outra da segunda figura do Estado - essa anémona política que é Jaime Gama - que resolveu entronizar o dr. Jardim como símbolo supremo da vida democrática: o presidente do Parlamento nacional propondo como exemplo alguém que trata o parlamento regional como um lugar onde coabitam um bando de eunucos às suas ordens e "um bando de loucos" que se atreve a pôr em causa os ensinamentos do querido líder. Depois, porque antes mesmo de embarcar, já Cavaco tinha feito divulgar um comunicado anunciando ao que ia: elogiar a 'obra' do dito líder. E, enfim, porque, à partida, já o Presidente sabia que a sua agenda era determinada pelo dr. Jardim e de acordo com os seus desejos: estava afastado da Assembleia Regional, para que os "loucos" não envergonhassem a Região; estava afastado das traseiras da obra de sucesso do querido líder, onde entre 20 a 30% da população vivem abaixo do limiar de pobreza e em condições que deveriam obrigar o Presidente da República a perguntar alto e bom som para onde foi o dinheiro, além dos túneis e viadutos para encher o olho; e, finalmente, porque apenas lhe era consentido - e ele aceitou - receber a oposição representada no parlamento regional em "encontros informais", no hotel onde Sua Excelência se hospedava, tal qual como receberia amigos ou conhecidos locais. E Cavaco Silva - o "sr. Silva" de Alberto João Jardim - aceitou tudo isto, muito mais do que é normal aceitar numa visita ao estrangeiro.
A visita de Cavaco à Madeira é uma nódoa que não sairá tão cedo, um momento de vergonha e capitulação que veio manchar uma Presidência até aqui pacífica, louvada e isenta de riscos. Mas, na primeira vez em que tinha de correr riscos políticos e assumir-se como representante primeiro da nação portuguesa, Cavaco Silva mostrou a massa de que é feito. E deixou muitas saudades de Presidentes com coragem e capazes de distinguir aquilo que, às vezes, é essencial e de que não há forma de fugir. Tivemos dois desses: Eanes e Mário Soares. Cavaco não tem esse instinto democrático inato: é um democrata por educação, não por natureza. Já o sabíamos, mas foi penoso ter de o recordar e logo a pretexto desta fantochada interminável e menor que é a longa chantagem de trinta anos que o dr. Jardim exerce sobre os órgãos de soberania e a política portuguesa.
O que eu gostava que um Presidente da República do meu país fosse fazer à Madeira era que, em lugar de se juntar ao coro dos elogios à 'obra' do dr. Jardim, tivesse um elogio para os portugueses que, trabalhando e pagando impostos ao longo de trinta anos, contribuíram para que a 'obra' se fizesse e para que o dr. Jardim fosse sucessivamente reeleito à conta disso. Que tivesse a coragem de resgatar a dívida de gratidão que a Madeira tem para com Portugal e que tem sido paga pelo dr. Jardim com intermináveis insultos e provocações, como se fosse nosso dever pagar e calar em troca do privilégio de a Madeira continuar portuguesa.
Gostava que o Presidente explicasse aos madeirenses que ser português não é o resultado de uma conta de merceeiro, em que se pesa o deve e o haver e em que se reivindicam todos os direitos e se exige isenção de todos os deveres. E que, a continuar por este caminho, chegará o dia em que os portugueses vão exigir, não a "autonomia sem limites" de que falava o infeliz Luís Filipe Menezes, mas sim a independência da Madeira: a independência declarada por Portugal, entenda-se; não a independência declarada pela Madeira. Que chegará o dia em que os portugueses se vão perguntar por que é que hão-de continuar a sustentar o poder, os negócios e o exibicionismo mediático daquelas figuras patibulares que esperavam Cavaco no aeroporto do Funchal. A mim, se me perguntarem se quero continuar a pagar impostos para sustentar esta 'autonomia' da Madeira, representada e usufruída por aquela gente, eu respondo já que não. Que vão à vida deles e que arranjem quem lhes pague as contas, porque a mim nunca me pagaram para ser português nem eu aceitaria.
Cavaco Silva deveria ter mais cuidado, mais sensibilidade política e mais noção de Estado ao afirmar que "nenhum português contesta hoje a autonomia regional". Qual autonomia: a que custa 60, a que custa 90 ou a que custa 120 milhões por ano?
Eu faço parte de um grupo, só aparentemente minoritário, dos que não acham o dr. Alberto João Jardim "engraçadíssimo". Não lhe acho mesmo piada nenhuma. Portugal já não é, felizmente, aquela tristíssima gente que vimos nas reportagens televisivas desta semana à espera da comitiva dos drs. Cavaco e Jardim. Aquilo é o Portugal no seu pior - inculto, ignaro, subserviente perante o poder, mendicante, reverente, alimentado a 'sopas de cavalo cansado' e vendendo o voto por um chafariz. E também não sou sensível àqueles supostos esgares de humor de Cavaco Silva, debitando banalidades grandiloquentes, quando desce ao 'povo', protegido por um eterno esquadrão de gorilas que jamais dispensa. Acho tudo aquilo uma fantochada, o Américo Tomás revisitado num país que eu desejo para sempre defunto e sepultado.
Esta viagem de Cavaco à Madeira serviu para me explicar, se eu não soubesse já, a razão pela qual jamais votei ou votarei neste homem. Porque, ao contrário do que ele parece pensar, não é o cargo que está ao serviço dele, mas ele que deveria estar ao serviço do cargo. E não esteve.
P.S. 1 – Exit Menezes: fez muito bem, foi um erro de "casting", de dimensão política, que não podia ter solução boa à vista. Foram seis meses de total asneira, de cata-vento sem sentido, de gritante impreparação política. Que volte àquilo que fez bem e que leve com ele a tropa-fandanga do Cunha Vaz, o Ribau Esteves, o Branquinho, o Pedro Pinto, o Rui Gomes da Silva e, por favor, o Santana Lopes.
P.S. 2 – Jerónimo de Sousa foi a Angola e voltou com a certeza de que o Governo local e o MPLA estão empenhados na luta contra a corrupção. Também Bernardino Soares tinha ido à Coreia do Norte e voltou com a convicção de que aquilo era uma democracia. O PCP acredita mesmo que somos todos idiotas?
P.S. 3 – Apenas "pro bono": fui director da Fernanda Câncio na 'Grande Reportagem' durante vários anos. Demo-nos o pior possível, pessoalmente. Mas nunca tive uma dúvida, nem tenho, de que é uma excelente jornalista, séria e competentíssima. Contestar a sua contratação pela RTP, com base em ligações pessoais, é simplesmente abjecto. Quando a direcção do PSD desce a este nível, o melhor mesmo é desaparecer do horizonte.
Miguel Sousa Tavares, in Expresso
Os relatos da longa visita de Cavaco Silva à Madeira – uma semana inteira, que a agenda divulgada está longe de justificar - deixaram-me a estranha sensação de que o Presidente está de visita a um país estrangeiro: uma espécie de Palop, só que um Palop muito especial onde pagamos um alto preço por a bandeira nacional ainda flutuar onde o governo local consente.
A visita começou mal antes mesmo de começar. Primeiro, porque foi antecedida de uma outra da segunda figura do Estado - essa anémona política que é Jaime Gama - que resolveu entronizar o dr. Jardim como símbolo supremo da vida democrática: o presidente do Parlamento nacional propondo como exemplo alguém que trata o parlamento regional como um lugar onde coabitam um bando de eunucos às suas ordens e "um bando de loucos" que se atreve a pôr em causa os ensinamentos do querido líder. Depois, porque antes mesmo de embarcar, já Cavaco tinha feito divulgar um comunicado anunciando ao que ia: elogiar a 'obra' do dito líder. E, enfim, porque, à partida, já o Presidente sabia que a sua agenda era determinada pelo dr. Jardim e de acordo com os seus desejos: estava afastado da Assembleia Regional, para que os "loucos" não envergonhassem a Região; estava afastado das traseiras da obra de sucesso do querido líder, onde entre 20 a 30% da população vivem abaixo do limiar de pobreza e em condições que deveriam obrigar o Presidente da República a perguntar alto e bom som para onde foi o dinheiro, além dos túneis e viadutos para encher o olho; e, finalmente, porque apenas lhe era consentido - e ele aceitou - receber a oposição representada no parlamento regional em "encontros informais", no hotel onde Sua Excelência se hospedava, tal qual como receberia amigos ou conhecidos locais. E Cavaco Silva - o "sr. Silva" de Alberto João Jardim - aceitou tudo isto, muito mais do que é normal aceitar numa visita ao estrangeiro.
A visita de Cavaco à Madeira é uma nódoa que não sairá tão cedo, um momento de vergonha e capitulação que veio manchar uma Presidência até aqui pacífica, louvada e isenta de riscos. Mas, na primeira vez em que tinha de correr riscos políticos e assumir-se como representante primeiro da nação portuguesa, Cavaco Silva mostrou a massa de que é feito. E deixou muitas saudades de Presidentes com coragem e capazes de distinguir aquilo que, às vezes, é essencial e de que não há forma de fugir. Tivemos dois desses: Eanes e Mário Soares. Cavaco não tem esse instinto democrático inato: é um democrata por educação, não por natureza. Já o sabíamos, mas foi penoso ter de o recordar e logo a pretexto desta fantochada interminável e menor que é a longa chantagem de trinta anos que o dr. Jardim exerce sobre os órgãos de soberania e a política portuguesa.
O que eu gostava que um Presidente da República do meu país fosse fazer à Madeira era que, em lugar de se juntar ao coro dos elogios à 'obra' do dr. Jardim, tivesse um elogio para os portugueses que, trabalhando e pagando impostos ao longo de trinta anos, contribuíram para que a 'obra' se fizesse e para que o dr. Jardim fosse sucessivamente reeleito à conta disso. Que tivesse a coragem de resgatar a dívida de gratidão que a Madeira tem para com Portugal e que tem sido paga pelo dr. Jardim com intermináveis insultos e provocações, como se fosse nosso dever pagar e calar em troca do privilégio de a Madeira continuar portuguesa.
Gostava que o Presidente explicasse aos madeirenses que ser português não é o resultado de uma conta de merceeiro, em que se pesa o deve e o haver e em que se reivindicam todos os direitos e se exige isenção de todos os deveres. E que, a continuar por este caminho, chegará o dia em que os portugueses vão exigir, não a "autonomia sem limites" de que falava o infeliz Luís Filipe Menezes, mas sim a independência da Madeira: a independência declarada por Portugal, entenda-se; não a independência declarada pela Madeira. Que chegará o dia em que os portugueses se vão perguntar por que é que hão-de continuar a sustentar o poder, os negócios e o exibicionismo mediático daquelas figuras patibulares que esperavam Cavaco no aeroporto do Funchal. A mim, se me perguntarem se quero continuar a pagar impostos para sustentar esta 'autonomia' da Madeira, representada e usufruída por aquela gente, eu respondo já que não. Que vão à vida deles e que arranjem quem lhes pague as contas, porque a mim nunca me pagaram para ser português nem eu aceitaria.
Cavaco Silva deveria ter mais cuidado, mais sensibilidade política e mais noção de Estado ao afirmar que "nenhum português contesta hoje a autonomia regional". Qual autonomia: a que custa 60, a que custa 90 ou a que custa 120 milhões por ano?
Eu faço parte de um grupo, só aparentemente minoritário, dos que não acham o dr. Alberto João Jardim "engraçadíssimo". Não lhe acho mesmo piada nenhuma. Portugal já não é, felizmente, aquela tristíssima gente que vimos nas reportagens televisivas desta semana à espera da comitiva dos drs. Cavaco e Jardim. Aquilo é o Portugal no seu pior - inculto, ignaro, subserviente perante o poder, mendicante, reverente, alimentado a 'sopas de cavalo cansado' e vendendo o voto por um chafariz. E também não sou sensível àqueles supostos esgares de humor de Cavaco Silva, debitando banalidades grandiloquentes, quando desce ao 'povo', protegido por um eterno esquadrão de gorilas que jamais dispensa. Acho tudo aquilo uma fantochada, o Américo Tomás revisitado num país que eu desejo para sempre defunto e sepultado.
Esta viagem de Cavaco à Madeira serviu para me explicar, se eu não soubesse já, a razão pela qual jamais votei ou votarei neste homem. Porque, ao contrário do que ele parece pensar, não é o cargo que está ao serviço dele, mas ele que deveria estar ao serviço do cargo. E não esteve.
P.S. 1 – Exit Menezes: fez muito bem, foi um erro de "casting", de dimensão política, que não podia ter solução boa à vista. Foram seis meses de total asneira, de cata-vento sem sentido, de gritante impreparação política. Que volte àquilo que fez bem e que leve com ele a tropa-fandanga do Cunha Vaz, o Ribau Esteves, o Branquinho, o Pedro Pinto, o Rui Gomes da Silva e, por favor, o Santana Lopes.
P.S. 2 – Jerónimo de Sousa foi a Angola e voltou com a certeza de que o Governo local e o MPLA estão empenhados na luta contra a corrupção. Também Bernardino Soares tinha ido à Coreia do Norte e voltou com a convicção de que aquilo era uma democracia. O PCP acredita mesmo que somos todos idiotas?
P.S. 3 – Apenas "pro bono": fui director da Fernanda Câncio na 'Grande Reportagem' durante vários anos. Demo-nos o pior possível, pessoalmente. Mas nunca tive uma dúvida, nem tenho, de que é uma excelente jornalista, séria e competentíssima. Contestar a sua contratação pela RTP, com base em ligações pessoais, é simplesmente abjecto. Quando a direcção do PSD desce a este nível, o melhor mesmo é desaparecer do horizonte.
Miguel Sousa Tavares, in Expresso
Saturday, April 19, 2008
PATRIOTISMOS
Lido num café, perto de casa, este artigo de Pacheco Pereira que versa sobre um assunto sobre o qual tenho pensado. Transcrevo-o porque ele expressa o que eu sinto e penso.
Não tive ocasião de ver os episódios da série sobre a guerra colonial que o Joaquim Furtado fez para a RTP quando passaram originalmente. Como às vezes me acontece quando quero mesmo ver alguma coisa e não tenho tempo para a ver toda, todos os episódios, toda a série, adio para depois e acabo por não ver. Disfunções. Faltas de tempo. Pouco interessa. Tenho visto agora alguns episódios referentes ao ano de 1961 e junto-me tardiamente ao coro dos louvores sobre a qualidade e a importância da série, a primeira a mostrar o drama da guerra colonial nas suas componentes testemunhal e visual, exactamente as mais "poderosas" e as que mais faltavam no nosso conhecimento. É uma grande série documental de televisão em qualquer sítio do mundo e, no caso português, uma contribuição para a nossa autognose que não se vê com indiferença. Já é história, mas ainda não é história - é a nossa história.
Mas há mais. Ela coloca-nos perante o melhor e o pior de nós mesmos, não no passado longínquo para onde fugimos quando queremos encontrar as virtudes que faltam no presente, mas para acontecimentos, atitudes, que nos são contemporâneas, sobre as quais poderíamos também testemunhar porque aconteceram de algum modo connosco. Eu saio da visão daqueles episódios com um forte sentimento de admiração por quem nunca pensei tê-lo assim: pelos nossos soldados, por aqueles portugueses pequenos e desajeitados, com fardas bizarras e atamancadas, que poderiam parecer que estavam no filme errado e que pediam para os tirarem dali. Não, pelo contrário, estavam no filme certo, num filme trágico, mas certo.
Sem deixar de ser o que sou, e o que era, sem dúvidas existenciais sobre o meu anticolonialismo nem a minha oposição à guerra, dou por mim a ver os documentários de Joaquim Furtado e a identificar-me com aqueles soldados e oficiais portugueses que em 1961, quase sem nada, foram mandados para uma guerra para que não foram preparados, perdidos no meio das matas perante um inimigo ou invisível no meio do capim, ou demasiado visível nos seus ataques suicidas em massa, sem armas capazes, sem munições, sem comida, e que avançavam para hastear a bandeira portuguesa em meia dúzia de edifícios desventrados no meio de terras do café que lhes deveriam ser totalmente estranhas. Está lá o colonialismo, mas não é nos soldados, é nas ridículas, então e hoje, afirmações de "portuguesismo" dos negros de Angola, a cantar uma estranha A Portuguesa, a saudar a bandeira, a servir de decoração à tardia mistificação que éramos todos portugueses quando ainda ontem éramos uns portugueses, outros indígenas: uns pretos e outros brancos. Isso é que soa a falsete e era falsete, porque em 1961 não havia negros bons a não ser na propaganda.
A série de Joaquim Furtado mostra uma realidade que continuamos a esconder, é que aos massacres da UPA se seguiram massacres perpetrados pelos portugueses, pelos colonos e pela tropa, a que não escapava um racismo instrumental onde o único negro em que se podia confiar era no negro morto. Foi assim em 1961, e é um serviço para a nossa memória colectiva que se conheça como foi. Voltemos aos soldados. Percebe-se que aqueles homens estão lá profundamente convencidos de que estão a defender uma realidade que para eles, ali em Angola, no mais estranho dos lugares, não é etérea - estavam a defender Portugal. Portugal pelo qual estão dispostos a sacrificar-se, a correr riscos e a morrer. O que os motiva é aquilo que é um dos sentimentos mais estranhos, complicados, mortíferos que há, o patriotismo. E percebe-se que estão motivados. Não é a tropa de 1970, é a tropa de 1961, os primeiros contingentes chegados a Luanda, recebidos pelos colonos desesperados e atirados no dia seguinte para as picadas do Norte. Olhando aqueles homens, rudes, vindos de um Portugal então muito rural, desajeitados, com capacetes de aço feitos para a II Guerra Mundial, no meio das picadas, ainda tendo como obstáculos principais árvores cortadas e sem minas, os aviões e avionetas de um catálogo de velharias, vendo a face do medo que os homens corajosos têm, sentimo-los não só próximos, nossos, mas como gente que merece um reconhecimento que não lhes demos porque ficaram do lado que perdeu. Só que também nós perdemos com eles e não o queremos reconhecer.
Num país à míngua de virtude e com um enorme catálogo de defeitos colectivos, lá estão aqueles homens, que mostram que somos capazes, no meio do maior deserto moral como era o Portugal de Salazar, de ter "portuguesinhos valentes", uma frase que diz imenso, tão capazes de uma heroicidade simples como a que louvamos nos de "quinhentos" e que hoje achamos perdida. Eu olho do lado oposto. A guerra colonial também fez a minha vida, por isso não sou indiferente àquelas imagens e relatos que não o são de tempos normais, mas sim excepcionais. Ali matava-se e morria-se, não é a mesma coisa que ir trabalhar pela manhã, estudar pela tarde, ler um livro, pagar uma conta, ter um engarrafamento ou uma gripe. Aquilo é a sério e onde é que estava eu? Como é que a guerra colonial me "interpelou"?, para usar uma palavra de que os católicos gostavam nos tempos em que era preciso ter compromissos.
Como muitos jovens da minha geração que combatiam o regime de Salazar e Caetano, nunca me passou pela cabeça fazer a guerra. Sabia que, a uma determinada altura, o dilema se colocava e nunca duvidei um segundo sobre o que fazer quando tivesse que prestar serviço militar: fosse em que circunstância fosse, como refractário ou como desertor, iria para o estrangeiro ou para a "sombra" da clandestinidade. Não era sequer um dilema, era uma certeza, sobre a qual nunca hesitei. A guerra colonial não me colocava nenhum dilema, não me "interpelava", sabia o que devia fazer.Hoje, como não há memória, pode-se pensar que este caminho que milhares de jovens da minha geração tomaram era fácil e cómodo. Não era. Também não era o medo da guerra, porque de um modo geral havia mais coragem em recusá-la do que em fazê-la, era mais um acto de vontade recusá-la do que seguir na onda da obrigação legal, mesmo que contrafeita. O caminho da emigração política era complicado, implicava riscos consideráveis para se passar a fronteira, ou as fronteiras, porque havia duas antes de chegar a França, ambas perigosas. Fronteiras que se passava indocumentado, porque a maioria não era autorizada a ter passaporte quando estava em idade de cumprir o serviço militar.
Era o exacto oposto daquilo que hoje se chama uma "carreira", era um caminho de imprevisibilidades. Era, como diziam os pais sábios, "estragar a tua vida". Rompidos os laços com Portugal, que se presumiam sem retorno, o que é que se podia fazer lá fora, muitas vezes com poucos recursos e em ruptura também com a família? No Portugal do início dos anos sessenta, o "estrangeiro" era uma incógnita para um país periférico e isolado e era uma aventura ir para lá. Muitos dos que recusaram a guerra viveram com muitas dificuldades, trabalharam como contínuos, em fábricas, em restaurantes, em hotéis, em aviários, numa profusão de profissões menores e só alguns estudavam com as bolsas que eram dadas pelos países de acolhimento. É verdade que não durou muito, mas ninguém sabia que não iria durar muito. Alguns ficaram para sempre e vivem na Holanda, na França, na Suécia, na Itália, no Reino Unido. Para eles, Portugal perdeu-se de vez.
O que é que movia quem se recusava a fazer a guerra colonial? Ideologia, "anticolonialismo", ser contra Salazar, comunismo, pacifismo, objecção de consciência? De tudo um pouco, mas, bem vistas as coisas, a esta distância, é a mesma atitude que vejo nos homens de 1961 que aparecem nesta série televisiva: patriotismo. Por isso, uma natural proximidade devia envolver os homens desses dois mundos, cada um patriota a seu modo, acima de tudo na disponibilidade de viver uma vida difícil e perigosa por alguma coisa que não era individual, mas estava acima do conforto de cada um.
José Pacheco Pereira, in Público
Não tive ocasião de ver os episódios da série sobre a guerra colonial que o Joaquim Furtado fez para a RTP quando passaram originalmente. Como às vezes me acontece quando quero mesmo ver alguma coisa e não tenho tempo para a ver toda, todos os episódios, toda a série, adio para depois e acabo por não ver. Disfunções. Faltas de tempo. Pouco interessa. Tenho visto agora alguns episódios referentes ao ano de 1961 e junto-me tardiamente ao coro dos louvores sobre a qualidade e a importância da série, a primeira a mostrar o drama da guerra colonial nas suas componentes testemunhal e visual, exactamente as mais "poderosas" e as que mais faltavam no nosso conhecimento. É uma grande série documental de televisão em qualquer sítio do mundo e, no caso português, uma contribuição para a nossa autognose que não se vê com indiferença. Já é história, mas ainda não é história - é a nossa história.
Mas há mais. Ela coloca-nos perante o melhor e o pior de nós mesmos, não no passado longínquo para onde fugimos quando queremos encontrar as virtudes que faltam no presente, mas para acontecimentos, atitudes, que nos são contemporâneas, sobre as quais poderíamos também testemunhar porque aconteceram de algum modo connosco. Eu saio da visão daqueles episódios com um forte sentimento de admiração por quem nunca pensei tê-lo assim: pelos nossos soldados, por aqueles portugueses pequenos e desajeitados, com fardas bizarras e atamancadas, que poderiam parecer que estavam no filme errado e que pediam para os tirarem dali. Não, pelo contrário, estavam no filme certo, num filme trágico, mas certo.
Sem deixar de ser o que sou, e o que era, sem dúvidas existenciais sobre o meu anticolonialismo nem a minha oposição à guerra, dou por mim a ver os documentários de Joaquim Furtado e a identificar-me com aqueles soldados e oficiais portugueses que em 1961, quase sem nada, foram mandados para uma guerra para que não foram preparados, perdidos no meio das matas perante um inimigo ou invisível no meio do capim, ou demasiado visível nos seus ataques suicidas em massa, sem armas capazes, sem munições, sem comida, e que avançavam para hastear a bandeira portuguesa em meia dúzia de edifícios desventrados no meio de terras do café que lhes deveriam ser totalmente estranhas. Está lá o colonialismo, mas não é nos soldados, é nas ridículas, então e hoje, afirmações de "portuguesismo" dos negros de Angola, a cantar uma estranha A Portuguesa, a saudar a bandeira, a servir de decoração à tardia mistificação que éramos todos portugueses quando ainda ontem éramos uns portugueses, outros indígenas: uns pretos e outros brancos. Isso é que soa a falsete e era falsete, porque em 1961 não havia negros bons a não ser na propaganda.
A série de Joaquim Furtado mostra uma realidade que continuamos a esconder, é que aos massacres da UPA se seguiram massacres perpetrados pelos portugueses, pelos colonos e pela tropa, a que não escapava um racismo instrumental onde o único negro em que se podia confiar era no negro morto. Foi assim em 1961, e é um serviço para a nossa memória colectiva que se conheça como foi. Voltemos aos soldados. Percebe-se que aqueles homens estão lá profundamente convencidos de que estão a defender uma realidade que para eles, ali em Angola, no mais estranho dos lugares, não é etérea - estavam a defender Portugal. Portugal pelo qual estão dispostos a sacrificar-se, a correr riscos e a morrer. O que os motiva é aquilo que é um dos sentimentos mais estranhos, complicados, mortíferos que há, o patriotismo. E percebe-se que estão motivados. Não é a tropa de 1970, é a tropa de 1961, os primeiros contingentes chegados a Luanda, recebidos pelos colonos desesperados e atirados no dia seguinte para as picadas do Norte. Olhando aqueles homens, rudes, vindos de um Portugal então muito rural, desajeitados, com capacetes de aço feitos para a II Guerra Mundial, no meio das picadas, ainda tendo como obstáculos principais árvores cortadas e sem minas, os aviões e avionetas de um catálogo de velharias, vendo a face do medo que os homens corajosos têm, sentimo-los não só próximos, nossos, mas como gente que merece um reconhecimento que não lhes demos porque ficaram do lado que perdeu. Só que também nós perdemos com eles e não o queremos reconhecer.
Num país à míngua de virtude e com um enorme catálogo de defeitos colectivos, lá estão aqueles homens, que mostram que somos capazes, no meio do maior deserto moral como era o Portugal de Salazar, de ter "portuguesinhos valentes", uma frase que diz imenso, tão capazes de uma heroicidade simples como a que louvamos nos de "quinhentos" e que hoje achamos perdida. Eu olho do lado oposto. A guerra colonial também fez a minha vida, por isso não sou indiferente àquelas imagens e relatos que não o são de tempos normais, mas sim excepcionais. Ali matava-se e morria-se, não é a mesma coisa que ir trabalhar pela manhã, estudar pela tarde, ler um livro, pagar uma conta, ter um engarrafamento ou uma gripe. Aquilo é a sério e onde é que estava eu? Como é que a guerra colonial me "interpelou"?, para usar uma palavra de que os católicos gostavam nos tempos em que era preciso ter compromissos.
Como muitos jovens da minha geração que combatiam o regime de Salazar e Caetano, nunca me passou pela cabeça fazer a guerra. Sabia que, a uma determinada altura, o dilema se colocava e nunca duvidei um segundo sobre o que fazer quando tivesse que prestar serviço militar: fosse em que circunstância fosse, como refractário ou como desertor, iria para o estrangeiro ou para a "sombra" da clandestinidade. Não era sequer um dilema, era uma certeza, sobre a qual nunca hesitei. A guerra colonial não me colocava nenhum dilema, não me "interpelava", sabia o que devia fazer.Hoje, como não há memória, pode-se pensar que este caminho que milhares de jovens da minha geração tomaram era fácil e cómodo. Não era. Também não era o medo da guerra, porque de um modo geral havia mais coragem em recusá-la do que em fazê-la, era mais um acto de vontade recusá-la do que seguir na onda da obrigação legal, mesmo que contrafeita. O caminho da emigração política era complicado, implicava riscos consideráveis para se passar a fronteira, ou as fronteiras, porque havia duas antes de chegar a França, ambas perigosas. Fronteiras que se passava indocumentado, porque a maioria não era autorizada a ter passaporte quando estava em idade de cumprir o serviço militar.
Era o exacto oposto daquilo que hoje se chama uma "carreira", era um caminho de imprevisibilidades. Era, como diziam os pais sábios, "estragar a tua vida". Rompidos os laços com Portugal, que se presumiam sem retorno, o que é que se podia fazer lá fora, muitas vezes com poucos recursos e em ruptura também com a família? No Portugal do início dos anos sessenta, o "estrangeiro" era uma incógnita para um país periférico e isolado e era uma aventura ir para lá. Muitos dos que recusaram a guerra viveram com muitas dificuldades, trabalharam como contínuos, em fábricas, em restaurantes, em hotéis, em aviários, numa profusão de profissões menores e só alguns estudavam com as bolsas que eram dadas pelos países de acolhimento. É verdade que não durou muito, mas ninguém sabia que não iria durar muito. Alguns ficaram para sempre e vivem na Holanda, na França, na Suécia, na Itália, no Reino Unido. Para eles, Portugal perdeu-se de vez.
O que é que movia quem se recusava a fazer a guerra colonial? Ideologia, "anticolonialismo", ser contra Salazar, comunismo, pacifismo, objecção de consciência? De tudo um pouco, mas, bem vistas as coisas, a esta distância, é a mesma atitude que vejo nos homens de 1961 que aparecem nesta série televisiva: patriotismo. Por isso, uma natural proximidade devia envolver os homens desses dois mundos, cada um patriota a seu modo, acima de tudo na disponibilidade de viver uma vida difícil e perigosa por alguma coisa que não era individual, mas estava acima do conforto de cada um.
José Pacheco Pereira, in Público
Tuesday, April 15, 2008
Boletim Económico | Primavera 2008 do Banco de Portugal - Conclusão
A integração económica e financeira da economia portuguesa, num contexto de intensificação do processo de globalização e de participação na área do euro, implicou um aumento na eficiência da economia, através do alargamento do conjunto de possibilidades de escolha dos agentes económicos, do aumento global da concorrência e de uma maior partilha e diversificação de risco com o exterior.
Este processo representou uma verdadeira mudança de regime económico, com uma ligação próxima das condições monetárias internas à evolução de variáveis macroeconómicas externas, uma diminuição permanente dos custos de financiamento, o acesso a financiamento externo de um conjunto mais alargado de famílias e empresas e uma redução da volatilidade das principais variáveis de natureza financeira. Estas dinâmicas estruturais reforçaram a capacidade da economia portuguesa alisar o impacto de choques idiossincráticos e temporários sobre o rendimento e riqueza, e permitiram sustentar disparidades significativas entre a procura e oferta internas.
Para uma pequena economia aberta como a portuguesa, fortemente integrada com o exterior, os desenvolvimentos económicos internacionais têm repercussões directas sobre a actividade económica.
O impacto destes choques externos depende naturalmente da capacidade de resistência e ajustamento da economia, traduzida nomeadamente nas políticas macroeconómicas prosseguidas e na estrutura de funcionamento dos mercados. A existência de um quadro macroeconómico orientado para a estabilidade assume aqui um papel central e, no contexto da união monetária, o Pacto de Estabilidade e Crescimento é um elemento essencial para assegurar a estabilidade macroeconómica.
Constitui assim um facto relevante o progresso conseguido nos últimos dois anos no cumprimento dos compromissos de consolidação orçamental, atingindo antes do previsto um défice inferior a 3 por cento do PIB. É de sublinhar que o esforço de redução estrutural do défice orçamental tem de prosseguir, no sentido da concretização plena dos compromissos assumidos no âmbito do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Em particular, o cumprimento do objectivo de médio prazo de um défice estrutural de 0.5 por cento em 2010 surge como fundamental para promover uma situação orçamental equilibrada e sustentável, diminuindo a incerteza dos agentes económicos e permitindo o pleno funcionamento dos estabilizadores automáticos.
No que se refere ao funcionamento dos mercados, é de destacar a persistência de elementos de rigidez na evolução do emprego e desemprego, que contribuem para a falta de mobilidade de recursos, bem como para a criação de uma situação de polarização no mercado de trabalho. Estes elementos implicam, por um lado, uma menor capacidade de reafectação eficiente de recursos humanos entre empresas e sectores e, por outro, menores incentivos para os agentes em ter mos de formação e educação.
Importa, finalmente, destacar a importância de reforçar os incentivos ao investimento de qualidade em capital humano, com destaque para o início do ciclo de vida dos indivíduos. Este investimento afigura-se fundamental para promover um maior crescimento económico em horizontes de médio e longo prazo, contribuindo igualmente para uma melhor repartição do rendimento na economia.
A economia portuguesa manteve em 2007 uma trajectória de recuperação, com uma aceleração significativa do PIB, para níveis superiores aos observados nos últimos anos. No entanto, a segunda metade 2007 e o início de 2008 caracterizaram-se pela ocorrência simultânea de três choques externos adversos, interligados entre si, com importantes implicações macroeconómicas a nível global: a turbulência nos mercados financeiros internacionais, que gerou um aumento da percepção e aversão ao risco dos investi dores, dos custos de financiamento do sector privado e da volatilidade dos mercados monetários, obrigacionistas e accionistas; a intensificação do aumento do preço do petróleo e a forte aceleração dos preços das matérias -primas alimentares nos mercados internacionais, que gerou pressões inflacionistas significativas a nível global; e, a desaceleração marcada da economia norte-americana, num contexto de forte correcção no mercado imobiliário e de ocorrência dos choques acima referi dos, que foi acompanhada por uma desaceleração mais mitigada na generalidade das restantes economias avançadas e por um menor dinamismo dos fluxos comerciais a nível mundial.
A combinação destes choques não deixará de ter implicações desfavoráveis sobre a dinâmica de recuperação da economia portuguesa, afectando a procura externa dirigida à economia portuguesa, as decisões intertemporais de consumo e investimento dos agentes económicos e a evolução das suas condições de solvabilidade. Persiste, no entanto, uma incerteza particularmente elevada sobre o grau de deterioração do enquadramento macroeconómico a nível global – nomeadamente dado o efeito amplificador da interacção entre a actividade económica e os mercados financeiros - bem como sobre o respectivo impacto na economia portuguesa.
Redigido com informação disponível até ao final de Março de 2008, com excepção do World Economic Outlook do FMI e das Estatísticas Monetárias e Financeiras.
[Boletim Económico Primavera 2008- Versão Integral]
Este processo representou uma verdadeira mudança de regime económico, com uma ligação próxima das condições monetárias internas à evolução de variáveis macroeconómicas externas, uma diminuição permanente dos custos de financiamento, o acesso a financiamento externo de um conjunto mais alargado de famílias e empresas e uma redução da volatilidade das principais variáveis de natureza financeira. Estas dinâmicas estruturais reforçaram a capacidade da economia portuguesa alisar o impacto de choques idiossincráticos e temporários sobre o rendimento e riqueza, e permitiram sustentar disparidades significativas entre a procura e oferta internas.
Para uma pequena economia aberta como a portuguesa, fortemente integrada com o exterior, os desenvolvimentos económicos internacionais têm repercussões directas sobre a actividade económica.
O impacto destes choques externos depende naturalmente da capacidade de resistência e ajustamento da economia, traduzida nomeadamente nas políticas macroeconómicas prosseguidas e na estrutura de funcionamento dos mercados. A existência de um quadro macroeconómico orientado para a estabilidade assume aqui um papel central e, no contexto da união monetária, o Pacto de Estabilidade e Crescimento é um elemento essencial para assegurar a estabilidade macroeconómica.
Constitui assim um facto relevante o progresso conseguido nos últimos dois anos no cumprimento dos compromissos de consolidação orçamental, atingindo antes do previsto um défice inferior a 3 por cento do PIB. É de sublinhar que o esforço de redução estrutural do défice orçamental tem de prosseguir, no sentido da concretização plena dos compromissos assumidos no âmbito do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Em particular, o cumprimento do objectivo de médio prazo de um défice estrutural de 0.5 por cento em 2010 surge como fundamental para promover uma situação orçamental equilibrada e sustentável, diminuindo a incerteza dos agentes económicos e permitindo o pleno funcionamento dos estabilizadores automáticos.
No que se refere ao funcionamento dos mercados, é de destacar a persistência de elementos de rigidez na evolução do emprego e desemprego, que contribuem para a falta de mobilidade de recursos, bem como para a criação de uma situação de polarização no mercado de trabalho. Estes elementos implicam, por um lado, uma menor capacidade de reafectação eficiente de recursos humanos entre empresas e sectores e, por outro, menores incentivos para os agentes em ter mos de formação e educação.
Importa, finalmente, destacar a importância de reforçar os incentivos ao investimento de qualidade em capital humano, com destaque para o início do ciclo de vida dos indivíduos. Este investimento afigura-se fundamental para promover um maior crescimento económico em horizontes de médio e longo prazo, contribuindo igualmente para uma melhor repartição do rendimento na economia.
A economia portuguesa manteve em 2007 uma trajectória de recuperação, com uma aceleração significativa do PIB, para níveis superiores aos observados nos últimos anos. No entanto, a segunda metade 2007 e o início de 2008 caracterizaram-se pela ocorrência simultânea de três choques externos adversos, interligados entre si, com importantes implicações macroeconómicas a nível global: a turbulência nos mercados financeiros internacionais, que gerou um aumento da percepção e aversão ao risco dos investi dores, dos custos de financiamento do sector privado e da volatilidade dos mercados monetários, obrigacionistas e accionistas; a intensificação do aumento do preço do petróleo e a forte aceleração dos preços das matérias -primas alimentares nos mercados internacionais, que gerou pressões inflacionistas significativas a nível global; e, a desaceleração marcada da economia norte-americana, num contexto de forte correcção no mercado imobiliário e de ocorrência dos choques acima referi dos, que foi acompanhada por uma desaceleração mais mitigada na generalidade das restantes economias avançadas e por um menor dinamismo dos fluxos comerciais a nível mundial.
A combinação destes choques não deixará de ter implicações desfavoráveis sobre a dinâmica de recuperação da economia portuguesa, afectando a procura externa dirigida à economia portuguesa, as decisões intertemporais de consumo e investimento dos agentes económicos e a evolução das suas condições de solvabilidade. Persiste, no entanto, uma incerteza particularmente elevada sobre o grau de deterioração do enquadramento macroeconómico a nível global – nomeadamente dado o efeito amplificador da interacção entre a actividade económica e os mercados financeiros - bem como sobre o respectivo impacto na economia portuguesa.
Redigido com informação disponível até ao final de Março de 2008, com excepção do World Economic Outlook do FMI e das Estatísticas Monetárias e Financeiras.
[Boletim Económico Primavera 2008- Versão Integral]
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