Há 4 dias
terça-feira, 30 de junho de 2020
Diz-me
Fotografia de 1982, de Jean-Claude Deustsch
(David Bowie, Susan Sarandon e Catherine Deneuve)
Diz-me por favor onde não estás
em qual lugar posso não te ver,
onde posso dormir sem te lembrar
e onde relembrar sem que me doa.
Diz-me por favor onde posso caminhar
sem encontrar as tuas pegadas,
onde posso correr sem que te veja
e onde descansar com a minha tristeza.
Diz-me por favor qual é o céu
que não tem o calor do teu olhar
e qual é o sol que tem luz apenas
e não a sensação de que me chamas.
Diz-me por favor qual é o lugar
em que não deixaste a tua presença.
Diz-me por favor onde no meu travesseiro
não tem escondida uma lembrança tua.
Diz-me por favor qual é a noite
em que não virás velar meus sonhos.
Que não posso viver porque te espero
e não posso morrer porque te amo.
Jorge Luís Borges
Ao início das tardes soalheiras
Fotografia: Ava Gardner e Frank Sinatra, 1951
ao início das tardes soalheiras
levavas-me pela mão
fazíamos o caminho lado a lado
as sombras uma teia
tecendo-nos como os dias
em crescendo
ensinaste-me a arejar uma casa
o sol vinha à janela
rindo a toda a extensão da pele
e as plantas
que me dizias para regar
talvez continuem
a crescer na água dos gestos.
levavas-me pela mão
fazíamos o caminho lado a lado
as sombras uma teia
tecendo-nos como os dias
em crescendo
ensinaste-me a arejar uma casa
o sol vinha à janela
rindo a toda a extensão da pele
e as plantas
que me dizias para regar
talvez continuem
a crescer na água dos gestos.
Helder Magalhães
Beber toda ternura
Fotografia: Pablo Picasso e Brigitte Bardot, em 1956
Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces
Mia Couto
in "Raiz de Orvalho e outros poemas"
Quantos seremos?
Ann Margret e Elvis Presley no filme Viva Las Vegas,1963
Fotografia © Jazzinphoto
Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!
Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.
E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.
Miguel Torga
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!
Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.
E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.
Miguel Torga
Um pouco mais
David Bowie, em fotografia de Michel Haddi
Esta manhã não lavei os olhos -
pensei em ti.
pensei em ti.
Se o teu ouvido se fechou à minha boca
poderei escrever ainda poemas de amor?
A arte de amar não me serve para nada.
Um fogo em luz transformado.
Subitamente, a sombra.
Há dias em que morro de amor.
Nos outros, de tão desamado,
morro um pouco mais.
Casimiro de Brito
in "Arte de Bem Morrer"
Desmaiar-se, atrever-se
Fotografia: Anthony Hopkins, em thule2009.tumblr.com
Desmaiar-se, atrever-se, estar furioso,
áspero, terno, liberal, esquivo,
altaneiro, mortal, defunto, vivo,
leal, traidor, covarde e animoso;
não ter, fora do bem, centro ou repouso;
mostrar-se alegre, triste, humilde, altivo,
agastado, valente, fugitivo,
satisfeito, ofendido, receoso;
fechar o rosto ao claro desengano,
beber veneno por licor suave,
olvidar o proveito, amar o dano;
acreditar que o céu no inferno cabe,
dar a vida e a alma a um doce engano:
isto é amor; quem o provou bem sabe.
Lope de Vega
in "Vozes da Poesia Europeia"
Tradução: David Mourão-Ferreira
áspero, terno, liberal, esquivo,
altaneiro, mortal, defunto, vivo,
leal, traidor, covarde e animoso;
não ter, fora do bem, centro ou repouso;
mostrar-se alegre, triste, humilde, altivo,
agastado, valente, fugitivo,
satisfeito, ofendido, receoso;
fechar o rosto ao claro desengano,
beber veneno por licor suave,
olvidar o proveito, amar o dano;
acreditar que o céu no inferno cabe,
dar a vida e a alma a um doce engano:
isto é amor; quem o provou bem sabe.
Lope de Vega
in "Vozes da Poesia Europeia"
Tradução: David Mourão-Ferreira
Os amantes sem dinheiro
Imagem da Web
☕️☕️☕️
Vem beber café comigo
prometo não largar a tua mão
quando fugirmos sem pagar a conta
Bruno Sousa Villar
Espera-me
Fotografia de Helder Reis
Nas praias que são o rosto branco das amadas mortas
Deixarei que o teu nome se perca repetido
Mas espera-me:
Pois por mais longos que sejam os caminhos
Eu regresso.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Marcadores:
Sophia de Mello Breyner Andresen
Antes que seja tarde
Desconheço a autoria da imagem
Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.
Manuel da Fonseca
A casa térrea
Imagem daqui
Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo que não soubeste ser
Que não seja transferência nem refúgio
Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja
A verdade do teu inteiro estar terrestre.
Então construirás a tua casa na planície costeira
A meia distância entre montanha e mar
Construirás - como se diz - a casa térrea -
Construirás a partir do fundamento
Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética
Ed. caminho
Marcadores:
Sophia de Mello Breyner Andresen
Alguém se salva por ouvir o rouxinol
Imagem da Web
Digamos que uma tarde
O rouxinol cantou
Sobre esta pedra
Porque ao tocá-la
O tempo não nos fere
Esquecimento, nem tudo é teu
Algo nos fica
Entre as ruínas penso
Que nunca será pó
Quem viu o seu voo
Ou ouviu o seu canto.
O rouxinol cantou
Sobre esta pedra
Porque ao tocá-la
O tempo não nos fere
Esquecimento, nem tudo é teu
Algo nos fica
Entre as ruínas penso
Que nunca será pó
Quem viu o seu voo
Ou ouviu o seu canto.
Giovanni Quessep
"Um País que Sonha" - Cem anos de poesia Colombiana
tradução Nuno Júdice
Assírio & Alvim
Luz do dia
Fotografia: Paint colors from ColorSnap by Sherwin-Williams
Atirei um punhado de pétalas sobre os teus seios.
Arranhada pela luz do dia, jazes petalisada.
Assim a tua pele imita o rubor, a cabeça
Roda em todos os sentidos, exibindo um massacre de flores.
Arranhada pela luz do dia, jazes petalisada.
Assim a tua pele imita o rubor, a cabeça
Roda em todos os sentidos, exibindo um massacre de flores.
Eu levo-te então das trevas até ao dia,
E pouso pétala sobre pétala.
Harold Pinter
in "Várias Vozes"
Edições quasi
Edições quasi
O amor
Fotografia: The Boy, The Girl & The Ever-After: Mildred Davies & Harold Lloyd
Se chovesse (sempre) trezentos e sessenta e cinco dias por ano,
e as nuvens no céu se repetissem na cor,
na forma, na velocidade, e na lentidão;
e se o sol permanecesse robusto e alto, constante
como o último andar de um edifício (bem construído),
de calor assim assim mas repetindo assim assim
de calor da véspera;
se o mau e o bom tempo fossem uma linha única,
paralela aos dias; se o verão e o inverno
em vez de dois fossem um,
como uma pedra é um, e uma árvore é um,
se, enfim, quem amas permanecesse amado por ti,
hoje exactamente como ontem,
e daqui a trinta anos exactamente como hoje;
então não existiria o tempo,
e os relógios de pulso seriam pulseiras ruidosas,
mecânicas de mais para estarem tão próximas da mão
capaz de tocar com leveza.
E se não há tempo
não podemos trair.
e as nuvens no céu se repetissem na cor,
na forma, na velocidade, e na lentidão;
e se o sol permanecesse robusto e alto, constante
como o último andar de um edifício (bem construído),
de calor assim assim mas repetindo assim assim
de calor da véspera;
se o mau e o bom tempo fossem uma linha única,
paralela aos dias; se o verão e o inverno
em vez de dois fossem um,
como uma pedra é um, e uma árvore é um,
se, enfim, quem amas permanecesse amado por ti,
hoje exactamente como ontem,
e daqui a trinta anos exactamente como hoje;
então não existiria o tempo,
e os relógios de pulso seriam pulseiras ruidosas,
mecânicas de mais para estarem tão próximas da mão
capaz de tocar com leveza.
E se não há tempo
não podemos trair.
Gonçalo M. Tavares
segunda-feira, 29 de junho de 2020
Pedro, lembrando Inês
Fotografia de Victor Zamanski
Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.
Nuno Júdice
Dicionário
Óleo sobre tela: Nude 0053, de Candy Lym
As palavras mais belas são as que nascem
do teu corpo: cabelos, lábios, ombros, seios,
até o ventre, e o que entre as coxas se esconde.
Escrevo-as devagar, como se lhes tocasse; e
cada uma delas é como um espelho, de onde
se libertam as tuas mãos, os dedos, um joelho,
olhos que beijo num murmúrio de segredos.
E pedes-me significados, símbolos, primeiros
e segundos sem idos. Não te sei dizer senão que
corpo é o teu corpo, centro um secreto umbigo,
pele a mais branca neve no horizonte desta
subida leve. Se me estendes os braços, entro
num abrigo de floresta: se me abres os ramos,
é na mais doce gruta que entramos.
Precipitam-se sinônimos, adjetivos sem
objetivo, pronomes enfáticos e possessivos,
sílabas perdidas na falésia do desejo. Mas
fecho o livro. Estou farto de palavras, é a ti
que eu quero. E faço-as voltar até de onde
nasceram: cabelos, lábios, ombros, seios, até
o ventre, e o que entre as coxas se esconde.
Nuno Júdice
Nunca soube calcular as distâncias
Fotografia Surreal de Achraf Baznani
Nunca soube calcular as distâncias
e deve ser por isso
que me chego sempre demais
ao abismo de viver.
Chego-me tanto,
que a vida, de vez em quando,
me chamusca as pestanas
e em certas alturas
congela-me a palavra.
Begoña Abad
Se pudesse, coroava-te de rosas
Arte © Brita Seifert
Se pudesse, coroava-te de rosas
neste dia —
de rosas brancas e de folhas verdes,
tão jovens como tu, minha alegria.
Terra onde os versos vão abrindo,
meu coração, não tem rosas para dar;
olhos meus, onde as águas vão subindo,
cerrai-vos, deixai de chorar.
Eugénio de Andrade
O coração deixa de bater
Fotografia: Monica Lazăr
O coração deixa de bater
(às vezes até para o relógio)
encolhido
de medo.
(às vezes até para o relógio)
encolhido
de medo.
Mas para lá desse abismo
continua a vida a latejar,
intacta,
com as suas promessas todas.
Há só que continuar caminhando
um
pouco
mais.
Berna Wang
Um corpo amado que se perde
Fotografia de Zul Czar
Um corpo amado que se perde
antes mesmo de achado
é um adeus mínimo, incessante
adeus suspenso no vazio.
E que vazio então
te vai sulcando a alma, impune!
Essa tristeza desemboca noutros
corpos que te roçam entre os dias.
Os corpos não sabem, não sabem nunca
da dor que semeiam à passagem.
antes mesmo de achado
é um adeus mínimo, incessante
adeus suspenso no vazio.
E que vazio então
te vai sulcando a alma, impune!
Essa tristeza desemboca noutros
corpos que te roçam entre os dias.
Os corpos não sabem, não sabem nunca
da dor que semeiam à passagem.
Roger Wolfe
Na rota do silencio
Imagem da Web
Esta noite dou-te a minha mão.leva-a
e deixa que os meus dedos
encontrem
sozinhos
a serenidade e o silêncio
no mapa dos teus olhos.
e deixa que os meus dedos
encontrem
sozinhos
a serenidade e o silêncio
no mapa dos teus olhos.
Ana Mateus
Catedral abandonada
Escultura de Michael James Talbot
Fizeste da tua vida
Uma catedral abandonada
Horas esquecidas
Em adoração noturna
Pedindo silêncio
A tudo o que perdeste.
Uma catedral abandonada
Horas esquecidas
Em adoração noturna
Pedindo silêncio
A tudo o que perdeste.
Luís Falcão
in "Pétalas negras ardem nos teus olhos"
in "Pétalas negras ardem nos teus olhos"
Não nos fazíamos mal
Desconheço a autoria da imagem
Não nos fazíamos mal
Apertavas-me afastavas-me
eu ia sem sacrifício
sabíamos que o adeus
já lá estava desde o início
Apertavas-me afastavas-me
eu ia sem sacrifício
sabíamos que o adeus
já lá estava desde o início
Não nos fazíamos mal
cada carícia um conforto
piedade envolta em ternuras
cada abraço um laço solto.
Ulla Hahn,
in"A sede entre os limites"
in"A sede entre os limites"
No fundo dos teus dias apenas o amor ficará
"Last Heart", de Adam Martinakis
No fundo dos teus dias apenas o amor ficará.
Quando romperem as pedras, quando estalarem os vidros,
quando apartarem as lentas e piedosas cortinas,
não se verão teus ossos que nada foram,
não lerão teu nome borrado pelos ventos,
não encontrarão teu rosto nas arenas,
mas o amor estará onde tu estiveste,
poderão trazê-lo do fundo dos seus dias,
levantá-lo, pô-lo de pé, levá-lo em andores
por um tempo melhor, de beleza sem fome,
por um tempo de magia, sem penas nem justiça,
como um dia há-de ser o tempo para todos.
Quando romperem as pedras, quando estalarem os vidros,
quando apartarem as lentas e piedosas cortinas,
não se verão teus ossos que nada foram,
não lerão teu nome borrado pelos ventos,
não encontrarão teu rosto nas arenas,
mas o amor estará onde tu estiveste,
poderão trazê-lo do fundo dos seus dias,
levantá-lo, pô-lo de pé, levá-lo em andores
por um tempo melhor, de beleza sem fome,
por um tempo de magia, sem penas nem justiça,
como um dia há-de ser o tempo para todos.
Raúl Gustavo Aguirre
O milagre
Fotografia de Kyle Thompson
Porque se ele chegar,
Quando eu chegar,
Chegará como é:
fácil, claro, simples.
Sem grandes brilhos.
Sem que a terra trema,
Sem que o céu se nuble.
Será suave e fraterno.
Com sua mão no seu ombro.
Não terá mudado quase nada:
Só seu coração.
Quando eu chegar,
Chegará como é:
fácil, claro, simples.
Sem grandes brilhos.
Sem que a terra trema,
Sem que o céu se nuble.
Será suave e fraterno.
Com sua mão no seu ombro.
Não terá mudado quase nada:
Só seu coração.
Raúl Gustavo Aguirre
poeta argentino, 1927-1983
Imagem no espelho
Fotocolagem de Karel Teige
Raiz de pedra.
Corpo de vento,
Olhos de água.
Assim sou
Entre pássaro, flor e mágoa.
Luísa Dacosta
sexta-feira, 19 de junho de 2020
A tala da vida
Imagem da Web
Bebemos vendados da taça
da vida enquanto
lavamos seu ouro sem jaça
com nosso pranto.
A venda desfaz-se, porém,
antes da morte,
e o que nos seduzia tem
a mesma sorte,
Vazia, a taça então revela
seu nada insosso:
bebíamos sonho que, nela,
nem era nosso!
da vida enquanto
lavamos seu ouro sem jaça
com nosso pranto.
A venda desfaz-se, porém,
antes da morte,
e o que nos seduzia tem
a mesma sorte,
Vazia, a taça então revela
seu nada insosso:
bebíamos sonho que, nela,
nem era nosso!
Mikhail Liérmontov
Fumo negro
"A blanket of silence", Amy Krencius
'A terra carbonizada,
os corpos carbonizados,
as minhas palavras carbonizadas,
tudo tão negro
que ficamos todos de luto,
em pesadas e plúmbeas orações,
choramos casas, árvores,
pássaros e demais animais,
choramos de revolta, de impotência,
choramos e, levianos, pedimos chuva,
e choverá, a chuva sempre volta,
choverá depois, tarde demais,
choverá talvez nos funerais.'
os corpos carbonizados,
as minhas palavras carbonizadas,
tudo tão negro
que ficamos todos de luto,
em pesadas e plúmbeas orações,
choramos casas, árvores,
pássaros e demais animais,
choramos de revolta, de impotência,
choramos e, levianos, pedimos chuva,
e choverá, a chuva sempre volta,
choverá depois, tarde demais,
choverá talvez nos funerais.'
Raquel Serejo Martins
segunda-feira, 15 de junho de 2020
Guerra civil
Fotografia: Martin Waldbauer
É contra mim que luto.
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto,
O que digo
E o que faço
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço.
Absurda aliança
De criança
E adulto,
O que sou é um insulto
Ao que não sou;
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou.
Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido,
Nem convencido.
E agrido em mim o homem e o menino.
Miguel Torga
in Orpheu Rebelde
Um puro amor
Imagem via Pinterest
O que há dentro do meu coração
Eu tenho guardado pra te dar
E todas as horas que o tempo
Tem pra me conceder
São tuas até morrer
E a tua história, eu não sei
Mas me diga só o que for bom
Um amor tão puro que ainda nem sabe
A força que tem
É teu e de mais ninguém
Te adoro em tudo, tudo, tudo
Quero mais que tudo, tudo, tudo
Te amar sem limites
Viver uma grande história
Aqui ou noutro lugar
Que pode ser feio ou bonito
Se nós estivermos juntos
Haverá um céu azul
Um amor puro
Não sabe a força que tem
Meu amor, eu juro
Ser teu e de mais ninguém
Um amor puro
Djavan
domingo, 14 de junho de 2020
No fim tu hás de ver
Desconheço a autoria da imagem
No fim tu hás de ver que as coisas mais leves
são as únicas que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento.
Mário Quintana
Noites houve
"Uma ponte de pé em Kyoto", arte de Yasuhiro Ogawa
Noites houve
Em que eu acreditei tão certo
De poder te esquecer,
que voluntariamente lembrava de você.
Em que eu acreditei tão certo
De poder te esquecer,
que voluntariamente lembrava de você.
...
Jorge Luis Borges
quinta-feira, 11 de junho de 2020
Arte de navegar
Desconheço a autoria da imagem
Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e a minha mão marinheiro.
Eugénio de Andrade
in As Mãos e os Frutos
quarta-feira, 10 de junho de 2020
Um outro poema de amor
Imagem: Noell Oszvald
No fundo, as relações entre mim e ti
cabem na palma da mão:
onde o teu corpo se esconde e
de onde,
quando sopro por entre os dedos,
foge como fumo
um pequeno pássaro,
ou um simples segredo
que guardávamos para a noite.
Nuno Júdice
in O Movimento do Mundo
Treliça
Arte de Yasuyo Fujibe
finjo que não te quero
que não te espero
que não te anseio
que diluo as emoções no éter
e bato no liquidificador (gosto da palavra , não do som)
qual é o teu som?
finjo que não tenho medo
que não és importante
finjo-me tanto
que não descolas do meu atrevimento
quando fica insuportável
finjo-te personagem
escrevo, detalho, reescrevo
dura pouco a imersão romanesca
O sossego chega quando
invento-me tua !.
Lucia De Moura Chamma
que não te espero
que não te anseio
que diluo as emoções no éter
e bato no liquidificador (gosto da palavra , não do som)
qual é o teu som?
finjo que não tenho medo
que não és importante
finjo-me tanto
que não descolas do meu atrevimento
quando fica insuportável
finjo-te personagem
escrevo, detalho, reescrevo
dura pouco a imersão romanesca
O sossego chega quando
invento-me tua !.
Lucia De Moura Chamma
Se vens à minha procura
Desconheço a autoria da imagem
Se vens à minha procura,
eu aqui estou. Toma-me, noite,
sem sombra de amargura,
consciente do que dou.
Nimba-te de mim e de luar.
Disperso em ti serei mais teu.
E deixa-me derramado no olhar
de quem já me esqueceu.
Eugénio de Andrade
in As Mãos e os Frutos
Horizonte
Imagem via Pinterest
Um dia ficamos sem voz
e há um vento que leva a poeira
das nossas vidas cada vez mais
longe
Um dia fica apenas esse rosto
o mais amado rosto ainda à procura
do verão que nunca vimos
da espuma das promessas ou das últimas
lágrimas
Um dia despedimo-nos de um sonho
e o mundo é um murmúrio quase mudo
um resto de acidente luminoso
no horizonte azul vermelho roxo negro
Fernando Pinto do Amaral
in Poemas Escolhidos
Um rio de luzes
Imagem via Pinterest
Um rio de escondidas luzes
atravessa a invenção da voz:
avança lentamente
mas de repente
irrompe fulminante
saindo-nos da boca
No espantoso momento
do agora da fala
é uma torrente enorme
um mar que se abre
na nossa garganta
Nesse rio
as palavras sobrevoam
as abruptas margens do sentido
Ana Hatherly
in O Pavão Negro
Entre as duas e as três
Arte de Thomas Pollock Anshutz
Queria falar do que não tem concerto:
as letras desenhadas e compostas
com que confundo o espaço do papel,
a angústia compassada no contar
e a súbita alegria de ser eu
penosamente, às duas da manhã
Queria escrever do que não tem lugar:
a branca, doce e sonolenta estrada
onde espaçadas as palavras crescem,
suavizadas pelo lento sono
que devagar percorre as coisas todas
penosamente, às duas da manhã
Queria dizer do que não tem conserto:
ou seja, eu; ou seja, o papel branco
sombrio agora por já ser demais,
as letras excedentes e sonoras
desmembrando o silêncio e a noite toda
penosamente, às duas da manhã
Só então falarei do que ficou:
compassada alegria desenhada
na angústia de dizer sem me contar,
o papel confundido de impotente
e todavia prontas as palavras.
Quase às três da manhã. Penosamente.
Ana Luísa Amaral
in Coisas de Partir
Quero-te para além das coisas justas
Lovers Embrace - Painting by: Heather Hurzeler
Quero-te para além das coisas justas
e dos dias cheios de grandeza.
A dor não tem significado quando me roubam as árvores,
as ágatas, as águas.
O meu sol vem de dentro do teu corpo,
a tua voz respira a minha voz.
De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas
dos beijos? Discuto esta noite
apenas o pudor de preferir-te
entre as coisas vivas.
Joaquim Pessoa
e dos dias cheios de grandeza.
A dor não tem significado quando me roubam as árvores,
as ágatas, as águas.
O meu sol vem de dentro do teu corpo,
a tua voz respira a minha voz.
De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas
dos beijos? Discuto esta noite
apenas o pudor de preferir-te
entre as coisas vivas.
Joaquim Pessoa
in Os Dias da Serpente
A solidão
Arte de Edward Hopper
A solidão não é um vazio
a solidão é um cheio de tudo
um abarrotamento dentro da gente
no grande silêncio de fora.
Vera Lúcia de Oliveira
terça-feira, 9 de junho de 2020
E porque hoje é sábado
Arte de Edward Hooper
E porque hoje é sábado
É preciso suportar os sábados.
É preciso estar em paz com a falta de respostas.
É preciso suportar os sábados.
Entre a ruptura e o reencontro, opto pelo silêncio.
Deixando-me em modo avião
Autoria Desconhecida
#quarentena
#pandemiacoronavirus2020
Há tempos
Arte de Edward Hooper
~ excerto ~
Muitos temores nascem
do cansaço
e da solidão
descompasso, desperdício
herdeiros são agora
da virtude que perdemos
...
Tua tristeza é tão exata
e hoje o dia é tão bonito
já estamos acostumados
a não termos mais nem isso
da virtude que perdemos
...
Tua tristeza é tão exata
e hoje o dia é tão bonito
já estamos acostumados
a não termos mais nem isso
Renato Russo
(Legião Urbana)
#quarentena
#pandemiacoronavirus2020
A vida mora fora de mim
Arte de Edward Hopper
A vida mora fora de mim.
é areia escorrendo
na ampulheta do tempo.
Elke Lubitz
#quarentena
#pandemiacoronavirus2020
Dias dourados
Arte de Edward Hopper
há dias dourados
feito saudades fincada
no sol
há dias morosos
feito saudades pairada
no ar
feito saudades fincada
no sol
há dias morosos
feito saudades pairada
no ar
Elke Lubitz
#quarentena
#pandemiacoronavirus2020
Canção para Jade
Fotografia de Dalva Nascimento
~ excerto ~
E o tempo vai passar
Ao longo dessa estrada.
Novas estórias lhe serão então contadas.
E você vai crescer,
Sonhar, sorrir, sofrer
Entre vilões, moinhos, dragões e poucas fadas.
Ao longo dessa estrada.
Novas estórias lhe serão então contadas.
E você vai crescer,
Sonhar, sorrir, sofrer
Entre vilões, moinhos, dragões e poucas fadas.
Toquinho
Pintou de azul as cores do meu sonho
Fotografia de Dalva Nascimento
Pintou de azul as cores do meu sonho
E floriu em chamas as flores do meu mar.
Pediu às ondas rebentações de melodias
E às praias novos abraços de espumas.
Encheu de estrelas o manto do meu céu
E reflectiu de luz o sol da nossa noite.
E assim radiante, luminosa, com cheiro a Índico,
Me acena na lonjura do bafo do estio.
E floriu em chamas as flores do meu mar.
Pediu às ondas rebentações de melodias
E às praias novos abraços de espumas.
Encheu de estrelas o manto do meu céu
E reflectiu de luz o sol da nossa noite.
E assim radiante, luminosa, com cheiro a Índico,
Me acena na lonjura do bafo do estio.
Ricardo Silva Reis
Esponsais de primavera
Arte by Pakayla Biehn
Vem hoje um cheiro tão bom lá de fora do mundo!
Um cheiro a esponsais de primavera
com deusas de astros na fronte
e enlaces de folhas de hera
no cabelo voado...
(Ah! se eu encontrasse a ponte
que vai para o outro lado!)
José Gomes Ferreira
Manhã
Photorealistic Oil Paintings of Fruit, por Dennis Wojtkiewicz
Como um fruto que mostra
Aberto pelo meio
A frescura do centro
Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in Livro Sexto
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Sophia de Mello Breyner Andresen
Qual a dor
Arte de Giuseppe Gradella
qual a dor que se abre hoje em mim?
coração alma carne
quantos enigmas me percorrem
impublicáveis
teu punhal esgarça a cicatriz mal cerzida
sem anestésico a frio
infeccionando meu demente amor
Lucia De Moura Chamma
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Interlúdio com ...
Will You Still Love Me Tomorrow - Norah Jones
Will You Still Love Me Tomorrow
Norah Jones
Tonight you're mine completely
You give your love so sweetly
Tonight the light of love is in your eyes
Will you still love me tomorrow?
Is this a lasting treasure
or just a moment pleasure?
Can I believe the magic of your sight?
Will you still love me tomorrow?
Tonight with words unspoken
You said that I'm the only one
But will my heart be broken
When the night meets the morning sun?
I like to know that your love
This know that I can be sure of
So tell me now cause I won't ask again
Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?
Will you still love me tomorrow?...
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