terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

#075 Sonhos nos céus do Atlântico

Não sei se consigo; não sei se sou capaz. Mas tento e até ao fim dos meus dias, até que cesse o bater do meu coração e um sopro de vida se quede em mim, não deixarei de tentar.
Tentarei captar a essência da pessoa humana, o néctar da vida que há em nós, tão previsíveis, tão semelhantes, tão iguais uns aos outros, procurando disfarçar dissemelhanças risíveis, como se fosse possível ser assim tão diferentes uns dos outros, sobretudo na essência das atitudes mais básicas inerentes à vida.
Nem mesmo neste avião, que cruza os céus entre a Europa de Frankfurt e a América de Orlando, cesso de pensar, de perscrutar, de refletir, de me sentir repleto de sensações intensas sobre a vida, sobre a nossa passagem, breve, por este planeta que nos acolhe e consente existência e replicação de vida. Nunca tive nada de mão beijada, nunca tive privilégios indevidos, nunca fui estrela da companhia.
Nunca.
Mas também nunca me faltou espaço e palco e chão por onde estar, atuar, demonstrar, caminhar, amar, sorrir, viver. Absorvo a vida em goles, ora breves, ora prolongados, mas sempre intensos e repletos de sabor.
Tenho em mim os sonhos e utopias de muitos: adultos, crianças, idosos, recém-nascidos, a todos considero ser comum a essência humana. O equilíbrio é volátil mas é possível. E desejável. E por isso estamos nesta constante demanda pelo que consideramos ser o equilíbrio, por vezes em cima do muro e sem saber se cairemos para um lado do mesmo, ou para o outro.
Todos procuramos a originalidade; a ninguém aproveita ser clone, ser produto barato de um original de excelência. Por isso procuramos a diferença, a diferenciação.
O dia de hoje nasceu cedo. E é de efemérides. Recordar a perda de alguém que amamos, de um ente querido especial, neste caso a referência e bússola da nossa vida, é uma evocação árdua, que remete para vazios que estão e estarão sempre por preencher. De nada adianta, perante a finitude da vida e a necessidade de termos de aprender a lidar com a perda, tentar preencher de modo forçado os vazios que ficam em nós quando perdemos algo ou alguém que nos faz e fará sempre e para sempre uma falta imensa. Por isso agarramo-nos, em alternativa, à vida que fervilha em nós, aos sonhos que ainda tempos por realizar, aos projetos que queremos ver implementados com êxito, ao amor que consagramos, de modo cirúrgico, àqueles que consideramos serem merecedores de prebendas afetuosas e gestos de ternuras sem fim, como os nossos familiares e amigos mais chegados, que consideramos tambem, já, nossos familiares. Gosto de pensar que as pessoas merecem a atenção que lhes damos, que conquistaram o direito a ser destino de afetos e atenções, humores e ações.

Gosto de acreditar na bondade das pessoas e na autenticiddae das suas palavras e ações. 
Mas será mesmo assim, em termos gerais e abstratos? Quantas vezes “forçamos a nota” para que mereçam o que lhes damos, o que damos de nós, à falta de algo ou alguém que preencha o vazio que sempre e para sempre existirá em nós  - algo que fazemos para não nos desligarmos de pessoas e, na prática, querendo demonstrar-nos que nunca nada é para sempre, que nada está em nós pré-determinado como tendo de ser para a eternidade? Podemos amar até uma pedra, uma borboleta, um animal de estimação, uma flor, uma memória.
Podemos.
Mas nada substitui o respirar de outrem, os braços de uma pessoa, o seu sorriso, o olhar franco que nos observa, o bater do coração que confere ritmo à existência simbiótica de dois que são igual a um, a exigência simples de querermos caminhar lado a lado com alguém. Resignamo-nos ou continuamos a querer procurar a excelência na relação, nas relações, nos relacionamentos em geral? Porque nos desiludimos? Talvez porque nos tenhamos previamente iludido com algo, com as projeções que fizemos sobre o que deveria ser, sobre o que poderia ter sido, sobre o que ainda não foi ou já não será…
Não escrevo para ser contemplado. Duvido mesmo que a maioria esteja disponível para compreender aquilo a que me quero referir mas não deixo de o ambicionar, como se me fizesse bem e me desse sentido de coerência ser compreendido e respeitado pela forma como me exprimo e me dispo de preconceitos, me submeto neste nu integral de alma e sentimento.
Mesmo que, como escrevi no início, que seja tão difícil demonstrar que seremos - se é que poderemos ser - algo distinto  dos demais, por sermos todos tão previsíveis, tão semelhantes, tão iguais uns aos outros, procurando disfarçar dissemelhanças risíveis, como se fosse possível ser assim tão diferentes uns dos outros.
Ocorreu-me este pensamento a meio do Atlântico e não quis deixar de o registar aqui, na forma escrita, publicada, aberta, transparente, despido de máscaras e exposto na minha mais transparente roupagem.
Estou bem. Estou em paz. Uma paz sempre questionável, mas ainda assim, paz. Serena, lúcida, repleta de sentido de identidade. Uma paz que é fugaz, como sempre são as situações de passividade. Na ausência de um rastilho que a altere aproveito-a. Na quietude dos céus. E aproveito para sublinhar o quanto estou agradecido. E apaixonado. Nunca estamos totalmente satisfeitos com nada. Nunca. Mas, pensando bem, se temos o essencial para seguirmos em frente, lado a lado com a vida e acompanhados de quem nos escolheu e por nós foi escolhido, então vale a pena, terá valido a pena e ainda valerá a pena.
Nesta fase da vida sinto-me perto de estar completo, com os vazios identificados e sabendo como lidar com os mesmos, privilegiando os espaços de cheio que sinto serem uma sublimação da vida.
Podemos amar várias vezes na vida, várias pessoas, diferentes coisas e situações.
Podemos.
O que não podemos – ou não devemos – é deixar de saber distinguir o acessório do fundamental. Eu sei para onde vou e com quem quero ir, assim como com quem não desejo ir.  E nisso sei, sinto mesmo, somos mais uma vez todos iguais. Diferentes, mas iguais.
De repente o sono apodera-se de mim, um sinal de que tudo o que era mais relevante registar na forma escrita, neste dia, está feito e que a fugaz inspiração não tardará a abandonar-me.
Quando acordar, espero, estarei nas Américas. Mas não deixarei de estar no mesmo registo de submissão e respeito ante a magnitude imperial da vida e ante a realidade da sua finitude. Quando celebramos a perda de alguém importante na nossa vida celebramos, também, ao mesmo tempo, o nosso compromisso com a decisão de vivermos para sermos felizes, mesmo que isso não seja imediatamente compreendido pelos outros.
Vou viver, cada vez mais, de modo a que no fim da jornada possa ter valido a pena. Sem medos, sem hesitações, sem esperar que algo aconteça, sem querer forçar para ser forçada e forçosamente aceite. Porque sou, afinal, mais ou menos igual aos meus semelhantes, sobretudo nas inseguranças, incertezas, dúvidas e angústias. Cabeça erguida e olhar no futuro!

Oceano Atlântico, 04/02/2019