quinta-feira, setembro 30, 2010

Poema-amigo: Marcantonio

Lembro de ter dito num comentário lá no Diário Extrovertido que Marcantonio tem o dom de tirar da ambiguidade sentidos de uma exatidão que não é fácil de encontrar no gênero. Coisa que se encontra em poemas consistentes, nascidos de mãos que sabem o que estão fazendo. Coisa que às vezes dá certa invejinha (do bem, é claro). Acho que ele me entende.  

Três Poemas Alheios À Primavera
 
SER-ESTAR

Por que cismar que as coisas estão incompletas?
Será um longo caminho até perceber:
não há caminhos que esperem por mim.

Perceba que o verbo ser é uma rocha
que conteve um fóssil lívido,
memória do que não é vida:
não fala de veias, de sangue
de carne putrefata, de células fugitivas.

Manejamos mal o verbo estar
porque ele escorre para o solo
feito arroio de urina e suor e lágrimas.

Sob os nossos pés o inevitável verbo estar se evapora.

A MEMÓRIA NAS PALAVRAS

Era poeta.
Inventara para si uma biografia:
tudo transcorrera na acrópole das palavras.

Acreditava que a palavra proferida lhe suscitava
saber hoje o que seria ontem.
Como?!
Poetas crêem que as palavras esperam pelas coisas,
e não o contrário;
e percorrem longas corredeiras de vida
seguindo por detrás dos nomes.

Poetas não sabem dizer agora em carne e osso
porque têm a memória inflamada e cheia de pus.

NO AZUL TEMPORÁRIO

Com que material
eu, inábil, faria poesia
senão com as escamas
numeradas do meu dia
fugindo peixe
nas mágoas correntes?

Seria o caso de hospedar
esse peixe num aquário,
dentro do azul temporário
da ilusão?

Seria fútil questão
ou intenção cruel
extraditar o meu dia
de seu meio líquido
para matá-lo de asfixia,
cindindo-o ao meio
com a faca estética
e deixá-lo secar ao sol
como forma sem vísceras
e hermética?



**********

AO SOM DE CELOS

Numa alegria sonsa
desdobrada
nesga de lua em janela
o corpo se despedaça
em harmonias quebradas
na escadaria da Penha
e chove
no último estágio da espera.


Dade Amorim

terça-feira, setembro 28, 2010

Momento


 Imagem Carlos Eduardo Godoy.


As estações
são apesar de nós
calor flores ou frio
mas sempre existe o momento
veio de ouro em pedra
água tépida de rio.

quinta-feira, setembro 23, 2010

Desvendamento


Hieróglifos e glifos
vãos graffitti
sinais irresgatados.

Marchetarias gofradas
em grutas labirintos
galerias
dos mares navegados.

Bichos neandertais 
a pré-história traçada
dos iletrados.

Evocação de Cupido
flecha em tronco
poema incrustado.

terça-feira, setembro 21, 2010

Desimportância


Momentos roçam o corpo
e migram
desatentos
enquanto o espaço desbasta
em voos
os pensamentos.

domingo, setembro 19, 2010

Coisas rápidas



Há muito não se trocam os móveis de lugar
pela simples vontade de criar alguma luz ou
guardar nos pulsos a sensação de partilha.
As coisas rápidas que acontecem agora
já não parecem pertencer à mesma casa de antes
e sentem-se mais à vontade caladas pelos cantos:
mesmo as molduras perderam seu encanto e os retratos
morrem de leve a cada tarde.

sexta-feira, setembro 17, 2010

E se os anjos andassem pela Terra?

 

                                              Cena de Asas do desejo, de Wim Wenders.

 
A ornitologia
não prevê híbridos nem bichos tristes
mas tem por objeto apenas
aves
– talvez asas.

A solidariedade
com seus pares de asas instantâneas
e fugazes
dispensa documentos.

Um anjo não seria a data certa.
Os anjos fluem no tempo e não têm fim
cadastro ou classe
– são marcas de fantasia sem empresa
e se eles amam
o amor que irradiam é de outra dimensão.

Não sendo assim um anjo será
Lúcifer, o anjo ambíguo,
se não o amante ideal, perfeito e malvestido.

quarta-feira, setembro 15, 2010

Poema-amigo traz Carol TImm

Quando a urgência pode esperar


1.
Quando a urgência pode esperar
acaba definhando e morre
a flor no vaso colhida em botão
às vezes nem se abre mais

2.
essa pressa que levou
ao tombo - ao machucado
- de onde veio a cicatriz
que resultou no medo?
devemos correr de novo
e cair mais uma vez?

3.
agora que os ossos
são mais frágeis
subir menos nas nuvens
de onde o tombo é mais pesado

4.
se a gente aprendesse
com os gatos a descer:
que belas nossas
aterrisagens

©Carol Timm








Madurez



Posso ser ilha
se as pontes ruírem.
Comungo o mundo e esqueço
invento o sangue
as veias esvazio
graduo o peso segundo o solstício.
Por mãe de renascença tive a espera
sou vegetal, minério
bicho novo.
Tenho a força do vôo e do horizonte
um sol dentro do corpo
e me improviso.
Posso ser ilha
se as pontes ruírem.


dade amorim

segunda-feira, setembro 13, 2010

Visitante


No fim de um dia de trabalho
a noite consumada
ele vem me falar.
Desde cedo
o dia estava propício a estranhar
quase tudo que se explica pela lógica.
Espantava ser aceito
e respeitável entre os iguais
– espanto familiar
tão natural como beber água
ou ir à janela olhar a rua.

O estranhamento se aplaca
como se um amigo antigo
dissesse sou eu
do outro lado da porta.

Custei a entender
e agora sei
– isso acontece
para ampliar espaços
onde o corpo com sua alma pendurada
podem voltar a ser a dupla que já foram.
Mostra que a vida
não pode ser o que se pensa
mas tem vertentes ousadas
que o outro talvez saiba explicar
ou simplesmente vive.

O outro me abraça e segue
de um jeito calmo e surpreendente.
e vai mais longe que eu.
Aceito a mão que me dá
e vendo tudo tão claro
chego a pensar que morri
atrelada a essa imagem
de outro registro.

sábado, setembro 11, 2010

11 de setembro



Atiraram-se dos andares em chamas.
Um, dois, ainda alguns,
mais acima, mais abaixo.

A fotografia deteve-os na vida,
preservou-os
sobre a terra rumo à terra.

Cada um ainda na íntegra,
com rosto individual
e sangue bem guardado.

Ainda há tempo
para os cabelos esvoaçarem
e do bolso caírem
chaves e alguns trocos.

Ainda estão ao alcance do ar,
no âmbito dos lugares
que acabaram de se abrir.

Só duas coisas posso por eles fazer:
descrever este voo
e não acrescentar a última frase.

WISLAWA SZYMBORSKA
(de Instante, tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves, Relógio d'Água, 2006)

quinta-feira, setembro 09, 2010

Janela 4



 Foto Maria Costa. Silêncio.


Do vento que engana essa vidraça resta a mentira
rolando nas calçadas
tigre civilizado e desfeito em listras soltas.

O som do vento é cristal que ninguém pode ver
e o esquecimento
é uma janela fechada a pássaros e insetos.

Dentro de casa
a vida se perdeu
em poças de silêncio.

terça-feira, setembro 07, 2010

Paraty IV

Agora este silêncio
imenso grave e escuro
sobre os telhados

ora adere ao chão molhado
o mar que espreita
ora enternece ao som do pio frágil
nas folhagens.

Impossível ser tudo.

Na pele a aragem fria
de uma delicadeza de açucena
prediz a madrugada
como um estado de graça.

O mundo é simples
vivemos muito pouco
e apenas cremos que dure mais um dia.

Ao meio-dia o mar invade as ruas.

sexta-feira, setembro 03, 2010

Estranheza


Entre quem ele é agora
e o que foi tantos anos antes
o muro é sem passagem.

Foi longo o percurso da volta
e o rosto antigo
está coberto de parasitas.


quarta-feira, setembro 01, 2010

Do alto

 

Décimo andar.
Um dia de mar tão quieto
nem uma brisa leve
na trança do jasmineiro da varanda
onde os insetos dormem.

Ruas desertas
ramos de asfalto quente
no tronco da cidade.

Do alto o mundo contempla
a praia mais afastada
que a vista não alcança da janela.
Alguma coisa ressurge das camadas
de sílica e distância
a sombra tatuada bem ao fundo
e coisas flutuando no silêncio
alguém  que se imobiliza
e dilacera.

O mar travado
a vida
em transe.