16 de março de 2012

O Céu que Resta

Frederic Delangle

  
Se os ossos amanhecessem na pele

                                                                                 
                                     abrindo-a aos grandes olhos do mundo

verias como o coração castiga o corpo

sem o matar

verias a palavra queimar a noite

curvar as plantas com o talento do vento norte

dar a luz perfeita aos objectos 

como o lençol branco que cobre a insónia

eis a minha casa

onde um animal trémulo habita estrelas sem nome

acidos rostos de mulher

acendem a via láctea

o meu corpo onde

danças fulminante

pastor fantasma das incertezas

como seguir-te uma vez mais

estou cansado como as folhas que caiem

e não se levantam mais

as tais que a geada devastou antes da colheita propicia

eis a solução

para distribuir o tempo pela vida

escrever uma única vez mas sem largar a caneta

o que vem nesse livro ?

dunas principiadas pelo vento brilhante

torres de sal e de pó

resíduos negros

animais crepusculares

um abismo pungente

por isso não te verei mais

lua prodigiosa

nem a ti liberdade

lamento o que te fiz

ao querer-te tanto algemei-te

ao meu sonho perturbado

perdoa-me se eu nem sabia sonhar

nem escutava, nem via

e o que sentia eram mastros sem navio

desejos tóxicos

o medo sujo

o corpo divido pela miséria da solidão

as tremendas hélices do abandono

de sermos sós no meio de tanta gente

depois chegava aquele comboio diário sem horário

e a lágrima que estremecia às primeiras horas da manhã

era um pequeno almoço de duvidosa qualidade

mas eu sabia

que era no centro da tempestade que tudo florescia

por um segundo divino

um espasmo intenso

um grito febril para fora

que dentro se multiplicava por mil

numa única sílaba

 ecos poderosos rachavam o peito

assim se abriam as janelas do destino

e o destino estava ali

nas minhas trémulas mãos

no sexo magoado

nos teus lábios húmidos

como a terra ancestral que me vedará os olhos

meu Amor

não é fácil a viagem

meu Amor

com facas dentro da noite

de invisiveis gumes 

verticais como rochosas escarpas

erva doce onde exaustos tombamos

como vos agradecer

pedras

ar

luar

as horas precipitam-se

na boca do tempo

surge um fogo delicado que não queima

as mãos que se dão

pequenas algas

dançam na translúcida lírica das marés

ofereço-tas em perfumado ramo

a ternura do dia é imensa

repara a lua não tem ruídos

só o mar acena

á cidade onde morreu a nossa infância

é uma gata caleidoscópica

esta bichana

com os seus gatinhos pelo braço

falemos deles

ou dos meus olhos alongados até ao precipício

vê como os estendo atabalhoadamente pelo linho dos dias

vê como é tarde para te oferecer estes frutos difíceis

ou um pouco de beleza comovida

a vida

sim que seja por ela que venderei tudo que possuo

vendê-la-ei por nada mais que isso

uma concha de beleza

uma casa definitiva

Porque talvez ainda tenha essa criança nas minhas mãos

é difícil saber

mas ainda ouço minha mãe dentro da minha cabeça

minha mãe a tua mão sobre os meus cabelos difíceis

minha mãe dispersa pelos astros

fonte dos afetos

que são só rastos

e o vazio que nos enche de desamparado

assim te vejo dançar ao longe

e de tanto te olhar

mar

tornei-me água

depois fiz um só poema

para lá de toda a destruição

e do extremo silêncio.

7 de março de 2012

Do Fogo



Ardo mal

escrevo mal

mas mesmo assim

a palavra

não queima devidamente o sonho

por isso sonho o sonho

do coração que bate como um poema

na folha de papel

onde ainda tremeluz

o sangue