Frederic Delangle
Se os ossos amanhecessem na pele
abrindo-a aos grandes olhos do mundo
verias como o coração castiga o corpo
sem o matar
verias a palavra queimar a noite
curvar as plantas com o talento do vento norte
dar a luz perfeita aos objectos
como o lençol branco que cobre a insónia
eis a minha casa
onde um animal trémulo habita estrelas sem nome
acidos rostos de mulher
acendem a via láctea
o meu corpo onde
danças fulminante
pastor fantasma das incertezas
como seguir-te uma vez mais
estou cansado como as folhas que caiem
e não se levantam mais
as tais que a geada devastou antes da colheita propicia
eis a solução
para distribuir o tempo pela vida
escrever uma única vez mas sem largar a caneta
o que vem nesse livro ?
dunas principiadas pelo vento brilhante
torres de sal e de pó
resíduos negros
animais crepusculares
um abismo pungente
por isso não te verei mais
lua prodigiosa
nem a ti liberdade
lamento o que te fiz
ao querer-te tanto algemei-te
ao meu sonho perturbado
perdoa-me se eu nem sabia sonhar
nem escutava, nem via
e o que sentia eram mastros sem navio
desejos tóxicos
o medo sujo
o corpo divido pela miséria da solidão
as tremendas hélices do abandono
de sermos sós no meio de tanta gente
depois chegava aquele comboio diário sem horário
e a lágrima que estremecia às primeiras horas da manhã
era um pequeno almoço de duvidosa qualidade
mas eu sabia
que era no centro da tempestade que tudo florescia
por um segundo divino
um espasmo intenso
um grito febril para fora
que dentro se multiplicava por mil
numa única sílaba
ecos poderosos rachavam o peito
assim se abriam as janelas do destino
e o destino estava ali
nas minhas trémulas mãos
no sexo magoado
nos teus lábios húmidos
como a terra ancestral que me vedará os olhos
meu Amor
não é fácil a viagem
meu Amor
com facas dentro da noite
de invisiveis gumes
verticais como rochosas escarpas
erva doce onde exaustos tombamos
como vos agradecer
pedras
ar
luar
as horas precipitam-se
na boca do tempo
surge um fogo delicado que não queima
as mãos que se dão
pequenas algas
dançam na translúcida lírica das marés
ofereço-tas em perfumado ramo
a ternura do dia é imensa
repara a lua não tem ruídos
só o mar acena
á cidade onde morreu a nossa infância
é uma gata caleidoscópica
esta bichana
com os seus gatinhos pelo braço
falemos deles
ou dos meus olhos alongados até ao precipício
vê como os estendo atabalhoadamente pelo linho dos dias
vê como é tarde para te oferecer estes frutos difíceis
ou um pouco de beleza comovida
a vida
sim que seja por ela que venderei tudo que possuo
vendê-la-ei por nada mais que isso
uma concha de beleza
uma casa definitiva
Porque talvez ainda tenha essa criança nas minhas mãos
é difícil saber
mas ainda ouço minha mãe dentro da minha cabeça
minha mãe a tua mão sobre os meus cabelos difíceis
minha mãe dispersa pelos astros
fonte dos afetos
que são só rastos
e o vazio que nos enche de desamparado
assim te vejo dançar ao longe
e de tanto te olhar
mar
tornei-me água
depois fiz um só poema
para lá de toda a destruição
e do extremo silêncio.