Tuesday, September 30, 2008

Jessica, meu Amor

Era Verão e eu tinha cinco anos. Não me lembro do mês

Agosto

porque sempre Agosto

(soube-o mais tarde

pois uma criança de cinco anos não distingue os dias, quanto mais os meses)

que os meus pais

a caminho do Algarve. Não me lembro para que terra

Lagos

porque sempre Lagos

(soube-o mais tarde

pois para uma criança de cinco anos as praias todas iguais

areia e mar)

De modo que em Agosto

1980

Lagos

conheci a Jessica

(olhos azuis, canudinhos louros)

e apaixonei-me pela primeira vez na vida. Não sei que idade tinha

ela

eu cinco

talvez a minha

ela

(nem o soube mais tarde

pois para uma criança de cinco anos só há pequenos e grandes).

Era linda e eu

cinco anos

apaixonado por ela

(soube-o mais tarde

pois uma criança de cinco anos não sabe o nome das coisas boas que sente).

Estávamos no parque de campismo e a Jessica

na tenda da frente.

Os nossos pais não se conheciam

(soube-o mais tarde

pois para uma criança de cinco anos todos os adultos se conhecem).

Cumprimentavam-se com cordialidade

os nossos pais

com a cabeça

e sorriam

(cumprimento natural entre adultos de línguas diferentes).

Eu e a Jessica entendíamo-nos na perfeição. Qualquer coisa de exótico. Eu repetia palavras na sua língua

(não sabia qual era)

(nem o soube mais tarde

pois para uma criança de cinco anos o mundo é pré-babeliano)

e ela em português.

Não sabia o que queria dizer cavalheiro, ou qual o significado da palavra amor, mas era delicado com ela e tenho a certeza que a amava.

Passávamos os fins de tarde a brincar em frente à sua tenda. Havia uma boneca que era a nossa filha

Jully

(escolha dela)

e eu entendi que a Jessica e eu estávamos casados. Não necessitámos de papéis, testemunhas, intermediários entre nós e Deus.

Ela preparava bolos de terra e folhas e dava-mos a provar. E eu mostrava-lhe serem deliciosos, que mais ninguém cozinhava como ela

nem a mamã

e deliciava-me a comê-los com toda a verdade do faz de conta.

Uma manhã os meus pais encontraram os dela na praia e estenderam toalhas por ali, ao lado dos senhores loiros, olhos azuis, com os quais trocavam sorrisos sem dizer nada. Uma palavra ou outra que talvez não fosse comum a nenhum dos quatro. Não nos importava isso. Ficámos felizes. Vi nos olhos dela o brilho, por minha causa, e fiquei tolinho. Corri para a água, dei saltos e gritos e creio que nunca mais tornei a estar pleno daquela maneira. Tenho a certeza de ter sido o dia mais feliz da minha vida, a maior explosão de alegria que algum dia senti e, não sabendo o que isso era, estava, ainda assim, no paraíso. E o paraíso não é relvado, cheio de árvores carregadas de frutos e prados verdejantes cheios de animais, mas uma praia

em Lagos

areia e água

e um cheiro a mar que nunca mais acaba.

Foi a minha primeira exibição de macho nascente, a minha primeira dança de acasalamento. Jessica ria. Estava feliz, e os seus olhos azuis continham todo o céu e o mar inteiro

como eu

feliz

achando-me lindo, divertido, o máximo, e não tinha sentidos para mais menino nenhum. E com os olhos dos nossos pais alerta, sentámo-nos nus, na areia molhada (num tempo em que no paraíso ainda não se usavam parras para cobrir a vergonha) a construir um castelo

onde ela

a minha princesa

e eu

o príncipe dela…

a fazer um para o outro

pequenicoisas

a partilhar o amor que era estar ali

feliz

sem outra noção do mundo

porque o mundo inteiro aqueles olhos azuis no castanho dos meus, e tudo o mais uma paisagem pintada, onde os banhistas não mais que gaivotas depenadas esparramadas ao sol.

Dei por ela a descobrir-me, e à diferença entre nós, a achar graça àquela coisinha pendurada de mim

e eu

a intrigar-me por ela não ter

Olhou de mais perto, riu-se

ri-me também

e assim ficámos

a rir e a olhar.

Achava-a tão bonita, e queria ficar a olhá-la até adormecer. Os olhos céu, o mar imenso, e a praia toda nos seus cabelos

(canudinhos louros)…

E ao outro dia

noutro dia

no mesmo dia

ou num outro dia

não sei bem

(nem o soube mais tarde

pois para uma criança de cinco anos os dias não são bem seguidos)

a Jessica a dizer

numa língua só nossa

- Tu agora vais trabalhar que eu fico em casa a tomar conta da bebé.

Jully

E eu saía no meu triciclo, a fazer barulho de um carro com a boca, apitando para os triciclos invisíveis à minha frente, cheio de presa, e dava uma volta ao alvéolo, regressando ao fim do dia, cansado, um minuto depois.

- Quanto é que ganhaste, marido? - perguntava-me mal chegava a casa.

numa língua só nossa

- Mil contos - todo orgulhoso.

- Então dá-me para eu comprar comida para a bebé.

Jully

E eu dava-lho, e a Jessica ia às compras, e vinha uma eternidade depois carregando pinhas e folhas e pedras e cascas e tampas e papeis

que uma mulher não se pode deixar à solta num supermercado, nem que este seja a fazer de conta

dizendo

- Já está. Agora vou fazer o jantar e tu vais ver televisão.

Insistia que a queria ajudar, mas a Jessica

numa língua só nossa

- Não. Tu tens de ver televisão.

e eu via… até que

- Já está.

o jantar servido, a casa arrumada e a Jessica

- Agora vamos dormir.

numa língua só nossa

E deitávamo-nos num cartão à entrada da tenda e, mal fechávamos os olhos a Jessica

- Trim, trim…

- Acorda, marido, tens de ir trabalhar.

e eu

- Ainda é cedo.

mas ela determinada, dizia que

- A Jully tem de comer.

e eu lá me levantava e saía no meu triciclo…

- Trim, trim…

até ao fim do dia, daí a nada.

Não era fácil a vida, mas o amor era tudo.

Até ao fim

do dia

da semana, do ano, das bodas de prata

não sei

(nem o soube mais tarde

pois para uma criança de cinco anos os dias não são bem seguidos)

ao regressarmos da praia

a tenda dela já lá não estava

apenas o lugar onde tinha estado, um fantasma em forma de rectângulo vazio

as costas da mamã quando o fato de banho no chão.

Olhei em volta, chamei

- Jessica…

não ouvi senão

- Jessica…

gritei

- Jessica…

e de novo apenas

- Jessica…

e uma angústia crescente, uma dor inexplicável, uma espécie de traição a ferrar-me os dentes no estômago, no coração

não sei bem onde

na alma

(soube-o mais tarde

pois uma criança de cinco anos não distingue uma dor da outra)

a não aceitar

mais do que a não compreender

a não aceitar

cheio de lágrimas

que me abandonassem a vida sem um aceno, sem um olhar, sem uma palavra

(numa língua só nossa)

às portas da morte

apesar da voz da voz da minha mãe

(do meu pai nem tanto)

da minha mãe

a garantir que

- É a vida, filho. É a vida.

Friday, September 12, 2008

Há dias…

Há dias, como hoje, em que não sei o que faça da vida… e não faço nada. Não por inércia, não por inépcia, senão por não ter vida nesses dias e portanto não saber o que lhe faça. Parece que acordo cansado, como quem desperta de uma morte clínica, de um longo sono, de um desmaio ou de uma distracção provocada pelo tédio de não ter vida
ou sentido para ela
que vai dar ao mesmo
ao Tejo
ao mar
ao fim do mundo.
Há dias em que um revólver não bastaria para pôr termo à existência. São os dias em que a vida é um fantasma… e os fantasmas não morrem a tiro. Sabemo-lo desde a cama de grades.
- E os que não tiveram cama de grades? - perguntarão os que não tiveram camas de grades
- Que se fodam os que não tiveram cama de grades!
Portanto
desde a cama de grades que
(sabemos)
não morrem a tiro
os fantasmas
Morrem num raspar de fósforo pela lixa, num clic de lanterna, num golpe de interruptor… morrem quando se faz luz; como o desespero das ideias falhas, que é o fantasma de não alcançar resposta, como eu, nos dias em que não sei o que faça da vida, porque a não tenho.
É preciso luz para afastar os fantasmas. Foi o que Deus fez para afastar os seus. Que Deus não era senão um menino perdido no meio de um quarto escuro, borrado de medo. Acendeu o candeeiro
Electrosónico já
sensível à voz da criança
(desmembrada de nascença)
programado
(o candeeiro)
para acender quando o pequeno
- Faça-se luz.
Achou-lhe graça e seguiu ditando ordens. Passou-lhe o medo
o sono
e criou montanhas e rios e árvores e flores e bichos e um papá e uma mamã e brincou com eles. Que os meninos sem braços tem muita imaginação.
Era ele agora quem mandava. Ele agora quem ditava leis. Ele agora quem dizia: aqui pode-se, aqui não. Essa árvore é minha e vocês não pode mexer. E os papás andavam nus, como ele sempre quisera ver. E os papás fraquejaram, como ele sempre quisera ver. E os papás cometeram delito, como ele sempre quisera ver. E os papás teriam de ser castigados, como ele sempre quisera ver. E os papás foram expulsos de casa, como ele sempre quisera ver. E os papás morreram de fome e de frio e de dor e de velhos e de tristeza, como ele sempre quisera ver. Que os meninos sem braços são “mais maus” que os outros meninos.
Depois a brincadeira perdeu a graça, mas era tarde, já, para os trazer de volta, pois tal com há dias em que um revólver não bastaria para pôr termo à existência, outros dias há em que adormecer e acordar não chega para corrigir o acontecido. E por isso Deus chorou, revoltado
não consigo
claro
que era perfeito
apesar de desmembrado
(são sempre perfeitos os aleijadinhos
coitadinhos dos aleijadinhos
sempre desculpabilizados, os aleijadinhos
não fazem por mal
os aleijadinhos
temos de compreender os aleijadinhos…
Puta que os pariu
aos aleijadinhos)
de modo que
(não consigo)
revoltado
com os pais, por terem morrido.
E quis partir coisas
mas não tinha bracinhos
e quis arrepelar os cabelos
mas não tinha bracinhos
e chorou de raiva
formou dilúvios
atirou-se ao chão, mordendo a alcatifa do paraíso, como quem quer ferrar o mundo inteiro e a boca não lhe chega
e chorou, e chorou, e chorou… mas não havia papás para lhe aparar as lágrimas, ninguém. Viu a caixinha da plasticina
alcançou-a com os pézinhos
e procurou fazer mais gente
diferente
diferente
sempre diferente
mas não eram os seus papás
eram bonecos vazios, descarregados de emoção, de amor, como eu de vida
certos dias
como hoje
em que não sei o que dela faça, e por isso…
e por isso acabo por não fazer nada, porque isto que aqui se passou, foi
diga-se
rigorosamente nada.

Thursday, September 11, 2008

Sentimentos cruzados

Os teus óculos escuros, fixos no xadrez desordenado das palavras cruzadas, imóveis, como os olhos de uma
não queria dizer mosca, mas
mosca
à cata de sinónimos para matar o tempo, que a minha companhia
pelos vistos
não suficiente.
A Costa quase vazia e nós
dois
(tu de folga e eu com uma indisposição aguda que me obrigou a)
- Passei a noite a vomitar, chefe, não consigo ir trabalhar hoje.
porque tu
- Vamos à praia amanhã?
e algo a cair-me mal, de modo que
- Passei a noite a vomitar, chefe…
E como a meio da semana a Costa quase vazia, nós os dois
que é dizer
tu e eu
diferente de nós os dois
a aproveitar os primeiros raios quentes de Maio.
Eu, pela tua companhia
tu
pelo meu carro
que de Lisboa à Caparia ainda uma estopada de transportes. Resumindo num esquema paralinguístico: eu porque tu, tu porque eu, não porque eu, mas porque eu popó. Ou no jogo do teu livrinho de xadrez desorganizado
"Sujeito que é levado pelo engodo a fazer tudo quanto um outro quer ainda que no fim fique a chuchar no dedo grande do pé?"
como se tu me perguntasses
ou tu a perguntares-me
- Sinónimo de simpático?
não
sinónimo de
"Sujeito que é levado pelo engodo a fazer tudo quanto um outro quer ainda que no fim fique a chuchar no dedo grande do pé?"
mas
- Sinónimo de simpático?
seis letras
e eu
a pensar
otário
a responder
(otário)
- Gentil!
apesar de
otário
pois só um
como eu
otário
a meio da semana
responderia
béu, béu
como um cão
seis letras
béu, béu
- Vamos, pois!
quando tu
- Vamos à praia amanhã?
feliz, porque tu
contente
pois de carrinho até à praia, descapotável ainda por cima, apanhada e deixada à portinha de casa. A perguntares-me já só no caminho
- Não trabalhavas hoje?
e eu
(otário)
todo inchado, como se o dono daquilo tudo, a responder
- Trabalhava, dizes bem.
como se
dono daquilo tudo
(- Passei a noite a vomitar, chefe, não consigo ir...)
para que tu me achasses o máximo
(otário)
um grande maluco
(otário)
o gajo ideal para ti…
O…T…Á…R…I…O…
e não
gentil
sinónimo de simpático
seis letras
mas sim
otário
o mesmo é dizer
sujeito que é levado pelo engodo a fazer tudo quanto um outro quer ainda que no fim fique a chuchar no dedo grande do pé.
E tu
quando eu
- Trabalhava, dizes bem.
todo inchado, como se o dono daquilo tudo
a dizeres
- Só tu!
um torrãozinho de açúcar
ao urso, à cavalgadura, ao burro
(otário)
a repetires
- Só tu!
e eu
só eu
todo inchado
a ouvi-lo como queria ouvir
no sentido
“És único!”
“O único, tu!”
e não no sentido que tu
- Só tu!
o mesmo é dizer
“Mais nenhum otário se sujeitaria a tanto em troca da nada!”
Pois as mulheres não gostam homens que se sujeitam a tanto em troca da nada, percebes ó
O…T…Á…R…I…O…
Não para homens delas. Não para lhes fazerem filhos
para criá-los, talvez
para sustentá-las, talvez
para as levar à praia a meio da semana…
nem sequer para companhia
o preço, apenas
pois
companhia nenhuma
visto que tu
óculos escuros
fixos
no xadrez desordenado das palavras cruzadas, imóveis, como os olhos de uma
não queria dizer mosca, mas
mosca
à cata de sinónimos para
otário
tanso
urso
cavalgadura
burro
Rodrigo
Merda!
Tu de olhos fixos no livrinho de quebra-cabeças e
eu de olhos fixos em ti
por debaixo do braço que me escondia o rosto
(ainda que não escondesse não repararias)
fingindo dormir
(O que as mulheres gostam de homens chatos que fingem dormir!)
de olhos fixos nas linhas de ti
no teu seio espalmado contra a toalha
os pêlos alourados do teu pescoço
vontade de chegar mais perto.
(Já nem falo num beijo!)
apenas mais perto
a cruzar palavras na horizontal e na vertical
jamais
Rodrigo e Tânia
como nos plátanos da escola
a cruzar palavras
horizontal
vertical
Samuel e Tânia
Edmundo e Tânia
Narciso e Tânia
Filgebrino e Tânia
Gonçalberto e Tânia
Edmiotério e Tânia
mas jamais
Rodrigo e Tânia
como nos plátanos da escola
a cruzar palavras
de olhos fixos em ti
horizontal
vertical
no teu seio espalmado contra a toalha
os pêlos alourados do teu pescoço
vontade de chegar mais perto.
(Já nem falo num beijo!)
apenas mais perto
até que a não aguentar mais e
a perguntar
- Não pões protector?
(todo protector)
e tu a desculpares-te
que
- Não está calor suficiente para isso.
(para as minhas mãos em ti)
não calor suficiente para as minhas mãos em ti
(otário).
Antes um escaldão que os meus dedos por ti.
E um pequeno silêncio
depois silêncio
e eu a voltar ao sono fingido
fingindo que dormia
como tu que percebias alguma coisas de palavras cruzadas
até que
- Sentimento esdrúxulo com quatro letras
e eu
sem pensar
- Amor!
e tu
- Pois, mas começa por P.
e eu
- Então é pena…
e tu
- É isso!
a repetires para ti
- É isso!
e eu
- É isso…
a repetir para mim
- É isso…