A primeira vez que me toquei tinha
(que vergonha, meu Deus!)
já mais de quarenta anos.
Fui criada num tempo em que tudo era pecado, quer se fizesse, quer se pensasse.
Casei-me novinha. Dezanove anos. Normal para a época. Hoje tenho setenta e dois
viúva há quarenta e cinco.
Quase já nem me lembro do meu marido. E ao dizer
meu marido
uma distância enorme entre mim e o Abílio, que assim era que se chamava. Reconheço-o pelas fotografias. E é sempre essa imagem que me vem à cabeça se penso nele. Tenho para mim, quando olho para a fotografia do nosso casamento
na parede da salinha pequena, onde quase nunca vou
que nunca casei com aquele menino.
Parece-me mais um filho que podia ter tido, e nem isso…
oito anos de casamento e nunca peguei. Acho que era dos nervos.
Por isso, quando olho para a fotografia
uma sensação estranha
como se um filho
um neto…
Bem, mas não foi para isso que me sentei aqui. Sempre quis escrever as minhas memórias, e nunca soube bem por onde começar, porque a minha vida mal dava para encher este cadernito que comprei faz umas semanas
na papelaria da menina Cátia
(acho que é assim que se escreve)
que no meu tempo só havia Marias
de qualquer coisa
com eu, da Visitação
Araújo de Sousa
…e já me perdi. Onde é que eu…
Ah, já sei
o cadernito
de propósito para começar a escrevê-la. Não é para ninguém ler. Acho que é para me encontrar, para ver quanto tempo vivi efectivamente e o que posso levar de bom no dia em que não houverem mais dias para mim.
Por isso quero começar pelas partes boas. Pelo princípio
o princípio de mim.
Assim
(que vergonha, meu Deus!)
afinal, fui criada num tempo em que tudo era pecado, quer se fizesse, quer se pensasse.
Mas pronto. Quero dizê-lo
(pois tudo o que pomos fora de nós é dito, quer se fale, quer se escreva… ou mesmo quer se aponte)
portanto
a primeira vez que me toquei tinha
(que vergonha…!)
já mais de quarenta anos.
O Abílio atropelado por um eléctrico no Rossio
num tempo em que se podia andar de olhos fechados em Lisboa
ia para mais de quinze anos
quando não aguentei mais a solidão das noites frias e me procurei por onde eu havia. Por companhia. É capaz que por isso mesmo.
Um dedo
tímido
apenas um
à minha procura no mapa de mim
como quando em pequena a professora Piedade
Maria da, com certeza
- Acha lá no mapa a Serra de Montesinho.
e eu com o dedo assustado
à procura no mapa
(numa altura em que eu já…)
- …devias saber de cor!
sem hesitar
achar a dita serra
e porque não
e a palmatória a auxiliar-me a memória
morno, a aquecer, mais quente, mais quente, mais quente
num ferver de dedos
apenas um
tímido
à minha procura
mais de quarenta anos
(que vergonha, meu Deus!)
no mapa de mim
até achar, por fim, o montezinho.
- … Serra de…
Um arrepio a paralisar-me toda
a gelar-me ou a ferver-me o sangue
que quando se atingem os extremos tudo parece o mesmo.
Uma vontade de gritar
de chamar a professora Piedade
Maria da, com certeza
- Já encontrei, senhora professora! Já encontrei.
de dedinho no ar
da outra mão
(porque aquela a não poder sair dali, não se desse o caso de nunca mais lhe dar com o caminho)
a gritar no ar por
Piedade
Maria da, com certeza.
E, de repete, os olhos a fecharem-se, a
- … saber de cor!
a dispensar auxílio para dar com
o montezinho
comigo toda
uma coisinha de nada
tão eu
à mercê daquele fauno anelar
a não desrespeitar a memória do falecido, por que o único dedo que era casado comigo
ou com o Abílio
e o mundo inteiro reduzido a coisa nenhuma, uma luz forte no fundo dos olhos, e nem pai, nem mãe, nem irmão, nem cunhada, nem Abílio, nem dona Piedade
Maria de, com certeza
nem o padre-nosso nem a ave-maria
apenas eu, ali, toda feita mulher.
Quarenta anos!
Mais!
Meu Deus, que pecado!
(que vergonha, meu Deus!)
Tanto tempo na vida de uma pessoa. Meia vida. Com um bocado de sorte, meia vida. Mas não queria pensar em nada. Não conseguiria pensar em nada. E por isso a não pensar em nada. Estava comigo e era uma. Não mais sozinha
a arriscar mais um dedo
(que vergonha, meu Deus!)
mais um dedo
(tão bom)
só mais um; uma cumplicidade. E o primeiro dedo, até aí envergonhado
a perder a timidez à chegada do outro, a pôr-se muito senhor de sim, como se aquilo fosse para ele a prática diária; como se já fosse esperto e experiente na arte de achar montes no mapa de mim
a exibir-se para o outro
por sinal maior, ainda que mais pequeno, pois ouro algum
(que nisto de classes, até entre os dedos as há)
a encher o peito de vaidade
o sacana
que os dedos às vezes, raios os partam, até parecem pessoas.