Monday, November 26, 2007

A Serra de Monte(z)inho

A primeira vez que me toquei tinha

(que vergonha, meu Deus!)

já mais de quarenta anos.

Fui criada num tempo em que tudo era pecado, quer se fizesse, quer se pensasse.

Casei-me novinha. Dezanove anos. Normal para a época. Hoje tenho setenta e dois

viúva há quarenta e cinco.

Quase já nem me lembro do meu marido. E ao dizer

meu marido

uma distância enorme entre mim e o Abílio, que assim era que se chamava. Reconheço-o pelas fotografias. E é sempre essa imagem que me vem à cabeça se penso nele. Tenho para mim, quando olho para a fotografia do nosso casamento

na parede da salinha pequena, onde quase nunca vou

que nunca casei com aquele menino.

Parece-me mais um filho que podia ter tido, e nem isso…

oito anos de casamento e nunca peguei. Acho que era dos nervos.

Por isso, quando olho para a fotografia

uma sensação estranha

como se um filho

um neto…

Bem, mas não foi para isso que me sentei aqui. Sempre quis escrever as minhas memórias, e nunca soube bem por onde começar, porque a minha vida mal dava para encher este cadernito que comprei faz umas semanas

na papelaria da menina Cátia

(acho que é assim que se escreve)

que no meu tempo só havia Marias

de qualquer coisa

com eu, da Visitação

Araújo de Sousa

…e já me perdi. Onde é que eu…

Ah, já sei

o cadernito

de propósito para começar a escrevê-la. Não é para ninguém ler. Acho que é para me encontrar, para ver quanto tempo vivi efectivamente e o que posso levar de bom no dia em que não houverem mais dias para mim.

Por isso quero começar pelas partes boas. Pelo princípio

o princípio de mim.

Assim

(que vergonha, meu Deus!)

afinal, fui criada num tempo em que tudo era pecado, quer se fizesse, quer se pensasse.

Mas pronto. Quero dizê-lo

(pois tudo o que pomos fora de nós é dito, quer se fale, quer se escreva… ou mesmo quer se aponte)

portanto

a primeira vez que me toquei tinha

(que vergonha…!)

já mais de quarenta anos.

O Abílio atropelado por um eléctrico no Rossio

num tempo em que se podia andar de olhos fechados em Lisboa

ia para mais de quinze anos

quando não aguentei mais a solidão das noites frias e me procurei por onde eu havia. Por companhia. É capaz que por isso mesmo.

Um dedo

tímido

apenas um

à minha procura no mapa de mim

como quando em pequena a professora Piedade

Maria da, com certeza

- Acha lá no mapa a Serra de Montesinho.

e eu com o dedo assustado

à procura no mapa

(numa altura em que eu já…)

- …devias saber de cor!

sem hesitar

achar a dita serra

e porque não

e a palmatória a auxiliar-me a memória

morno, a aquecer, mais quente, mais quente, mais quente

num ferver de dedos

apenas um

tímido

à minha procura

mais de quarenta anos

(que vergonha, meu Deus!)

no mapa de mim

até achar, por fim, o montezinho.

- … Serra de…

Um arrepio a paralisar-me toda

a gelar-me ou a ferver-me o sangue

que quando se atingem os extremos tudo parece o mesmo.

Uma vontade de gritar

de chamar a professora Piedade

Maria da, com certeza

- Já encontrei, senhora professora! Já encontrei.

de dedinho no ar

da outra mão

(porque aquela a não poder sair dali, não se desse o caso de nunca mais lhe dar com o caminho)

a gritar no ar por

Piedade

Maria da, com certeza.

E, de repete, os olhos a fecharem-se, a

- … saber de cor!

a dispensar auxílio para dar com

o montezinho

comigo toda

uma coisinha de nada

tão eu

à mercê daquele fauno anelar

a não desrespeitar a memória do falecido, por que o único dedo que era casado comigo

ou com o Abílio

e o mundo inteiro reduzido a coisa nenhuma, uma luz forte no fundo dos olhos, e nem pai, nem mãe, nem irmão, nem cunhada, nem Abílio, nem dona Piedade

Maria de, com certeza

nem o padre-nosso nem a ave-maria

apenas eu, ali, toda feita mulher.

Quarenta anos!

Mais!

Meu Deus, que pecado!

(que vergonha, meu Deus!)

Tanto tempo na vida de uma pessoa. Meia vida. Com um bocado de sorte, meia vida. Mas não queria pensar em nada. Não conseguiria pensar em nada. E por isso a não pensar em nada. Estava comigo e era uma. Não mais sozinha

a arriscar mais um dedo

(que vergonha, meu Deus!)

mais um dedo

(tão bom)

só mais um; uma cumplicidade. E o primeiro dedo, até aí envergonhado

a perder a timidez à chegada do outro, a pôr-se muito senhor de sim, como se aquilo fosse para ele a prática diária; como se já fosse esperto e experiente na arte de achar montes no mapa de mim

a exibir-se para o outro

por sinal maior, ainda que mais pequeno, pois ouro algum

(que nisto de classes, até entre os dedos as há)

a encher o peito de vaidade

o sacana

que os dedos às vezes, raios os partam, até parecem pessoas.

Z

A minha primeira espada, podem não acreditar, mas foi o Zorro quem ma deu. Tinha seis anos e acabado de vê-lo na televisão. A minha avó chamava-lhe Tyrone Power, e o meu avô dizia ser um dos seus actores preferidos. Mas eu

nenhum actor

sabia bem que

o Zorro

pois era tão real como qualquer um deles, embora a preto e branco. Tanto que, ao fim da tarde, me apareceu no quintal com dois floretes de madeira na mão.

Estava-lhe já quase a apanhar o jeito quando a voz da minha avó nos surpreendeu a combater espanhóis em forma de laranjeiras.

- Que raio de palermice vem a ser esta?!

e as suas mãos a porem em risco o povo do México quando pegaram no meu florete e o partiram em dois, impossibilitando-me de fazer justiça.

- E já à minha frente para casa.

a sentarem-me à mesa da cozinha com um caderno e o livro de português à frente dos olhos furiosos.

- O Zorro vai-me dar outra espada!

- O que é que disseste?

- Nada.

- O que é que disseste?

- O Zorro vai-me dar outra espada. - respondi a contra gosto, porque à terceira já não haveria pergunta.

- Pões-te com palermices e acaba-se a televisão que é um instante!

E eu a desenhar espadas e máscaras em vez de letras e palavras, orgulhoso do meu silêncio, pois se a avó o tivesse apanhado

“ai menino!”

estaria ali comigo, de língua à banda, a copiar hieróglifos. Esperei por ele até tarde, esgrimindo contra o sono, mas acabei derrotado até à manhã do dia seguinte: segunda-feira e dia de escola.

À tarde, quando regressei da mina

onde em vez de uma picareta um lápis, e em vez de uma vagoneta uma folha em branco para encher de carvão até ao toque da sineta

procurei entre a roupa velha da bisavó, tecido preto, e fiz uma mascara e uma espada muito parecida com a primeira e sai para o quintal à procura de mexicanos em apuros.

Ainda não estava bem preparado para ser um Zorro. Tinha de aprender a esconder-me, bem como à espada, à máscara e ao cavalo: o mais difícil de ocultar. Por isso criei um invisível, com o qual cavalgava de um lado para o outro, com ferraduras de veludo, ante o olhar desconfiado da minha avó.

Quando os adultos me começaram a perguntar como nascem os bebés

ou o que queria eu ser quando fosse grande

(que é a mesma coisa, quando perguntado por adultos)

respondia sem hesitar

- Quero ser o Zorro.

E quando depois de uma gargalhada parva

e um

- Essa é muito boa!

voltavam à carga

- E que profissão é que queres ter?

encolhia os ombros, e não sabia o que responder. Nunca entendi o porquê das perguntas estapafúrdias dos mais velhos! Por isso, e porque devia ter pena da sua falta de alcance, lá acabava por dizer

- Médico.

com a mesma convicção que diria tanoeiro se à época já conhecesse profissão.

- Médico? Muito bem!

e uma mão orgulhosa a passar-me pelo cabelo liso, numa lambidela de camelo, como que me autorizando a ir brincar em recompensa pela resposta certa.

Médico. Porque não, para disfarçar?! Era outra forma nobre se ajudar a humanidade. E, bem vistas as coisas, não há assim grande diferença entre uma seringa e um florete, doutor Diego de La Vega!

O tempo foi-se passando e, sempre que alguma laranjeira ameaçava uma couve-galega ou um canteiro de feijões amedrontados, lá saía eu a galope, quintal afora, de florete em punho para os defender

até a minha avó, com cara se Sargento Gonzales (Garcia como ficaria conhecido), me indicar a mesa da cozinha e confrontar-me com dureza

- Os trabalhos de casa faço-os eu, não é?!

E eu a puxar do lápis e da borracha

mais borracha que lápis

e a dar início aos trabalhos

de casa

como um presidiário, condenado ao serviço social, a caiar a igreja de lápis na mão, nervoso

o lápis

sem saber por onde começar, como ainda hoje me acontece sempre que me sento para escrever alguma coisa

como no tempo em que as letras apenas saíam se a língua de fora, num esforço de lesma arrastando-se sobre os lábios

porque o lápis um peso incompreensível, muito mais que a espada

uma picareta disfarçada, e a folha, a vagoneta que

- Não sais daí enquanto isso não estiver tudo feito.

era preciso atulhar de carvão em forma de letras.

E a língua de fora

num esforço de lesma

sobre os lábios

e apenas uma letra na perfeição

záz

duma assentada

nenhum esforço; língua nenhuma

a última do alfabeto. Uma letra que mais ninguém sabia na escola porque ainda só no T

de trabalhos de casa

trabalhos forçados

Todos no T

só eu a conhecer a última letra do alfabeto, a mais importante

a que punha fim a todas as injustiças, menos a de

- Não sais daí enquanto isso não estiver tudo feito.

enquanto isso

os espanhóis malvados a abusarem dos pobres mexicanos.

E, porque nunca mais

- …tudo feito.

ainda hoje, aqui sentado, de língua de fora

num esforço de lesma…sobre os lábios

enchendo vagonetas de papel com lasquinhas de carvão, enquanto o povo da Califórnia, para sempre perdido

vivendo de verdades fictícias

inventando Tyrones Power

para fazerem crer que injustiça alguma; que tudo bem; amigos todos; um faz de conta, apenas

porque por mais que digam que o lápis uma arma poderosa, eu a não conseguir manejá-lo tão bem quanto à espada.

Sunday, November 25, 2007

Um perfume chamado saudade

Passeava o Domingo com uma amiga, num dos três mil centros comerciais da cidade, quando aquele cheiro antigo se me meteu pelas narinas adentro até ao mais recôndito beco da memória. Uma mistura de tabaco, suor e alfazema, que eu nem sabia ainda viver dentro de mim. E de repente eu em África! De repente eu doze anos! De repente o meu vestido de cambraia caqui com florzinhas brancas a subir-me suavemente até meio da coxa com a ajuda da mão morna do chefe da estação do Lobito!

- Que foi, mulher? Parece que adormeceste! - a Clara a trazer-me de volta a Portugal, a Lisboa, a um dos três mil centros comerciais da cidade, a abrir-me os olhos retornados, abertos, com a sua voz de grafonola antiga

- Que foi, mulher? Parece que adormeceste!

- Hum?

- Que foi? - repetiu ela

grafonola antiga

e eu sem coragem de lhe contar da mão morna, dos meus doze anos, do meu vestido de cambraia caqui

florzinhas brancas

a dizer

- Nada!

- Estás bem?

e eu sem coragem de evitar aquela mão quente a dizer

- Sim.

enquanto o calor da tarde a subir-me pela coxa acima, num arrepio incompreensível, até à curva suada do pescoço, onde uns lábios ferventes pousavam, lentos e húmidos, como o fim dos dias na costa de África, para me sussurrarem de seguida

- És a menina mais linda do mundo!

para me sussurrarem de seguida

- Queres um gelado?

de modo que eu

que sim

que queria

a abanar a cabeça

envergonhada

(sedutora talvez)

num sim de olhos postos na barra do vestido.

Por isso, quando a Clara

- Queres um gelado?

eu a responder-lhe com a cabeça, como ao senhor Rafael, com o mesmo jeito de menina hipnotizada pelo calor.

- Então não saias daqui! - a Clara a dizer

ou eu a achar que a Clara a dizer

com a sua voz de grafonola antiga

a caminho do balcão da geladaria

do frigorifico amarelado que havia na cozinha da estação. De modo que eu, ali, no banquinho de madeira corrido, afogueada, a morrer por um gelado.

Não havia dia em que, ao sair da escola, não passasse por lá. Ele sentava-me no colo, passava-me a mão grossa pela penugem alourada das pernas e dizia, entre beijinhos por barbear no pescoço e nas faces

- És a menina mais linda do mundo!

e eu gostava. Acho que eu gostava. Sim eu gostava. Um homem mais velho, que gostava de mim, me punha no colo, dava beijinhos

por barbear

(bons)

no pescoço

nas faces

e ainda

- Queres um gelado?

Muito diferente do papá que

- És uma pamonha, tu! Nunca hás-de arranjar um homem que te ature.

muito diferente, pois

- És a menina mais linda do mundo!

ao passo que o papá

- Qual gelado, qual carapuça! Come frutinha que isso é que faz bem!

o senhor Rafael

- Queres um gelado?

Água, açúcar, limão e um pauzinho, que ele mesmo fazia e punha no gelo

- De quê Gisela?

a Clara

do balcão

com a sua voz de grafonola antiga

- De limão. - queria dizer-lhe - Água, açúcar, limão e um pauzinho.

porque

- Toma. É de limão. Para fazeres aquelas caretas que eu gosto tanto.

- De limão, Clara. De limão… por causa das caretas.

- Quê? - a Clara a frisar a testa. A Clara a não entender se eu

- … de limão.

a Clara

- Tás maluca!?

se eu

- … por causa das caretas, Clara!

Por isso

- Escolhe tu.

porque sem coragem

(não sei se por “sem coragem”, se por “sem vontade de explicar”, ou mesmo se por “sem vontade de partilhar uma coisa só minha; um colo só meu; um gelado por barbear nas faces com caretas de limão)

ou pelo que for.

A verdade é que

a não lhe querer dizer que eu

- … a menina mais linda do mundo!

como a não querer evitar aquela mão quente a contornar-me o elástico das calcinhas, um pouco abaixo do umbigo, onde um

- …capim lindo!

fazia as delícias dos dedos grossos do senhor Rafael, que acabavam sempre por escorregar

- … os trapalhões

não por mal

mas porque

- … trapalhões

aumentando a temperatura e a humidade à costa de África, apear de a barriga a arrepiar-se

do gelado

talvez

que me pingava pelos cantos trementes da boca

- … trapalhões

para o queixo de limão

onde um beijo por barbear caçava o pingo, numa careta

divertida

brincalhona

de me arrancar risinhos envergonhados

(sedutores talvez).

Muito diferente do papá que

-…uma pamonha, tu!

colo algum

beijinho algum

- …frutinha que isso é que faz bem!

Limões e mais limões

sem água, açúcar, um pauzinho que fosse

no gelo de casa

(apesar de em África)

na sala, onde o papá

- Nunca mais cresces tu, rapariga! Hás de ser sempre uma gaiata!

mal sabendo que eu um

- …capim lindo!

que fazia as delícias dos dedos grossos do senhor Rafael, que acabavam sempre por escorregar

- … os trapalhões

Por isso

porque a Clara, como o Papá, a não entender que

- … por causa das caretas

se eu

- … de limão.

eu

- Escolhe tu.

que assim é mais fácil e pronto.

E a deixar-me ficar, ali, no banquinho de madeira corrido, afogueada, a morrer por um gelado, sentindo aquela presença como uma certeza concreta, aquele cheiro antigo

tabaco, suor e alfazema

que passou por mim

juro que passou por mim

agarrado à sombra de um fantasma; que se me meteu pelas narinas adentro até ao mais recôndito beco da memória e parou, diante da montra de uma ourivesaria, de olhos fixos no mostrador de um relógio, que eu nem sabia ainda viver dentro de mim, para saber quanto tempo lhe restava ainda até ao último comboio para o Lobito.

É canja!

A partir de certa altura os mosquitos já faziam parte dos nossos corpos como as pulgas de um cão. Já não os enxotávamos. Como ao medo da morte. A não ser que picassem mais fundo. Também eles tinham esse cuidado. Naquela terra havia sangue para todos, era só uma questão de ter paciência. Não era só o sangue que os mosquitos nos chupavam. As lágrimas também. Pois

quase dois anos após ter desembarcado no estuário do Geba

as lágrimas deixaram de me aflorar à vista. Talvez que a demasia do calor as evaporasse mal começassem a pontear-me os olhos.

Eu nunca tinha visto um preto. Nem ao vivo nem morto. E não sei se alguma vez me tinha passado pela cabeça haverem homens tão diferentes de mim

tão iguais a mim

apesar de tão diferentes

de mim.

Nunca tinha posto os olhos numa televisão, e só conhecia o Eusébio da telefonia, onde os homens são todos da mesma cor.

Os dias, quentes e peganhentos, como beijos de tias solteironas, acordavam-nos com uma camada de melaço sobre a pele. Por isso os mosquitos

antes a nós

numa preferência natural

do que aos pretos

do que aos outros bichos-do-mato, que mais fome que sangue, e aos quais já lhes sabiam o sabor. Além de que sangue de branco é mais docinho, que os pretos só vêem açúcar quando o rei faz anos…

…de morto

como quase tudo por ali

de medo

de cansaço

de fome

de sede

de frio

de calor

de morte mesmo.

Se bem que não eram as balas o que mais matava quem

como eu

quase dois anos após de ter desembarcado no estuário do Geba

ainda por ali andava

a arrastar a vida que

por vontade dela

há muito se tinha sentado de braços cruzados a chorar a desgraça.

Tinham-me preparado para matar, mas nunca me tinha dito que era para matar a sério. Pelo menos nunca o tinha percebido, ou querido perceber. E ninguém está verdadeiramente preparado para matar até matar pelo menos dez homens iguais a si

ou

tão diferentes…

- O que custa são os dez primeiros, depois é canja.

o sargento Dias a garantir-nos que

- … depois é canja.

E eu que sempre detestei canja

só o cheiro a trazer-me o estômago à boca

a não ficar mais descansado, como seria suposto; pois mal matasse dez

o estômago à boca.

E assim foi!

Ninguém se habitua a matar, não me venham com histórias. Tal como ninguém se habitua a gostar de miudezas a boiar num prato de arroz com água e gordura, por mais que

- Tens de habituar! Se os outros comem…

- Se os outros conseguem…

Se os outros, se os outros, se o sou… truz!

O primeiro tiro. E o primeiro tiro é para matar o medo

TRUZ

Mas o medo não morre a tiro. Nem de bazuca. Morre de susto.

Até que o primeiro corpo a cair ao engatilhar da G3, que

- O que custa são os dez primeiros…

um segundo, um terceiro

- … depois é canja.

e eu a morrer também

porque em cada tiro um pouco de mim a ficar por terra

pois quem mata também morre e ninguém se habitua a matar, não me venham com histórias. Da mesma forma que ninguém se habitua a morrer por mais vezes que morra. Digo-o eu que morri muitas:

Almeida; Simões; Antunes; Cabaço; Mascarenhas; Gomes; Pires; Lima; Pereira de Sousa; Borges…

por mais que me digam que

se os outros, se os outros, se o sou… truz!

Um quarto, um quinto

e passaram-se os dez, os vinte, sem que eu desse por isso;

sem que eu me habituasse às miudezas a boiar num prato de arroz com água e gordura

Quem terá sido o décimo? Quem terá sido o cabrão que me ficou com a coragem?

QUEM? QUEM? QUEM?

como

TRUZ, TRUZ, TRUZ…

Até que a luz se me apagou diante dos olhos e o medo se tornou num monstro visível. A descobrir, aos saltos na Unimog, a caminho do aquartelamento improvisado no meio de tabancas abandonadas, que a morte afinal não custa. Mas custa a sede que me entaramelava a boca e que apenas um punhado de lama conseguia disfarçar. Apesar dos avisos para não bebermos

- … essa merda!

Era morrer de cólera ou de sede. O que chegasse primeiro

antes do o Alferes Botelho

- Almeida; Simões; Antunes; Cabaço; Mascarenhas; Gomes; Pires; Lima; Pereira de Sousa; Borges…

a não responderem ao chamado do saco dos aerogramas… nenhuma notícia os moveria do outro mundo

caladinhos que nem uns ratos…

(Ai não! Eu faria o mesmo.)

… não fosse uma convocatória de urgência para voltar ao mato, para voltar à estucha do calor, da humidade, dos mosquitos, das rajadas, do sangue, da lama, da

- …merda!

do mijo pelas pernas a baixo

que um homem só é homem quando não tem fome, nem sede, nem sono, nem medo, nem dores, nem sangue no canto dos olhos; na ponta dos dedos…

por isso

que nem uns ratos

caladinhos

quando o Alferes Botelho

- Almeida; Simões; Antunes; Cabaço; Mascarenhas; Gomes; Pires; Lima; Pereira de Sousa; Borges…

Eu faria o mesmo.

A descobrir, aos saltos na Unimog… que a morte afinal não custa. Embora nada me enchesse de coragem, nem o fumo dos cigarros que aspirava até ao mais profundo de mim. Como que para me sentir por dentro. Como que para me garantir que ainda vivo depois de ter morrido tanta vez

Almeida; Simões; Antunes; Cabaço; Mascarenhas; Gomes; Pires; Lima; Pereira de Sousa; Borges…

Por mais que me digam que

Se os outros, se os outros, se o sou… truz

Ninguém se habitua a miudezas a boiar num prato de arroz com água e gordura, não me venham cá com histórias!

Nostalgia ou Saudade

Tenho a nítida imagem da última vez que aqui estive, quando tudo era tão diferente. Ali ao fundo, junto à janela que dava para o mar, a mais castigada de todas, uma pequena mesa de metal branco

horrível

tão bonita agora

com três cadeiras ao redor, ainda que desse para quatro, mas

- Não se viram as costas ao mar.

na voz tranquila do meu avô que, apesar de nunca ter sido pescador, tinha com o mar

- … uma relação muito íntima.

Na cozinha, sobre o poial de mármore manchado, a memória de uma galinha sem penas nas mãos sem pena da minha avó, e eu…

eu a passar para o quintal com uma retroescavadora de plástico na mão, para ir fazer obras importantíssimas nos canteiros do jardim

eu a passar, com os olhos na mão desocupada, para não ver a galinha adormecida,

não morta

adormecida, apenas

de cabeça à banda

(como o meu avô ao final da noite diante do televisor bicromático)

mas ainda assim

apesar de adormecida, apenas

olhos na mão desocupada

talvez para não me verem sair para o quintal com uma retroescavadora de plástico na mão, para ir fazer obras importantíssimas nos canteiros do jardim

ou talvez apenas para não ver a minha avó de avental cheio de penas, sem pena de mim, por uma orelha

- Quantas vezes é que eu já te avisei que não te quero a esburacar-me os canteiros, hã?

e as minhas orelhas a crescerem, como que para a ouvir melhor

- …hã?

Um hã apenas permitido na sua voz aflautada, porque quando eu

- Hã?

- Diga, se faz favor!

E não, hã, como quando

- Quantas vezes é que eu já te avisei…

Tenho a nítida imagem da última vez que aqui estive, quando tudo era tão diferente

enorme

casa, corredores, canteiros

onde obras importantíssimas…

Ali ao fundo, junto à mesa que dava para o meu avô, o mais castigado de todos, uma janela de metal branco, bonita

tão horrível agora

com quatro cadeiras pequenas, ainda que desse para três, ao redor do mar

com o qual o meu avô

- … uma relação muito íntima.

Apenas os três. Às vezes também o senhor Luís

Capitão-de-mar-e-guerra

(para quem se ajeitava a mesa de outra forma, pois

- Não se viram as costas ao mar.)

um companheiro de armas do meu avô numa qualquer guerra na Índia que ali tinha casa perto.

- Comprámo-las em bom tempo, ó Seixas! - o senhor Luís

um companheiro de Índias, numa qualquer casa do meu avô, que ali tinha armas perto.

E as noites quentes a desenrolarem-se em fios de suor, contornando a barriga do Contra-Almirante Alfredo Seixas que

- Este calor dá cabo da gente!

- Apre! - o senhor Luís, que nunca tirava a camisola de alças, branca, com furinhos

porque a minha avó ali presente

ainda que isto não se dissesse.

porque a minha avó uma mulher de respeito

porque a minha avó

- Só conheci um homem na vida!

e apesar de junto ao mar, não na praia, apenas junto ao mar

não se haveria de tirar a camisola de alças

branca

com furinhos

porque a minha avó... uma mulher de respeito; com uma galinha numa mão e uma orelha de seis anos na outra a perguntar

- …ãh?

E as noites quentes a desenrolarem-se em histórias de vasos de guerra e vazas de bisca sobre o pequeno mar de metal branco

horrível

tão bonito agora

que não sei a quem pertence. Mas a quem pertença, não pertence mais que a mim pertence. De modo que me sinto no direito de entrar pela casa adentro

sem licença, nem meia licença

direitinho à pequena saleta que dá para o mar, e dar dois berros, bem alto, de forma a estremunhar o meu avô lá em cima no céu, que

- Não se viram as costas ao mar!

e enchê-lo de orgulho em mim, a dar um toque de cotovelo ao Almirante-Mor para dizer

- É o meu neto!

orgulhoso

e se Deus

- …ãh?

- … o meu neto!

a repetir mais alto

porque se fosse a minha avó

apesar de Deus

- Diga, se faz favor!

Mas Deus não anda a dormir e por isso a deixá-la no cemitério da Leiria, que quem mata galinhas não vai para o céu, e a Ele não haveria ela de puxar as orelhas.

De modo que me sinto no direito de entrar pela casa adentro

sem licença, nem meia licença

direitinho ao quarto, ao intervalo entre o armário e a parede a borbulhar caliça

porque a maresia não perdoa

onde uma caixinha de latão, de caramelos ingleses, cheia de cromos de futebol, caricas e conchinas do mar. Um tesouro de pirata.

- É um pirata este gajo.

no dizer do senhor Luís

Capitão-de-mar-e-guerra

quando eu me saía

- …com cada uma que até parecem duas!

arrancando gargalhadas satisfeitas àqueles dois, sem entender, ainda hoje, como nem porquê.

Mas apesar de

no direito de entrar pela casa adentro

sem licença, nem meia licença

a ficar por ali, sentado no muro que dava para praia, para a estrada, para o passado, para a história de São Pedro de Muel; não obstante a vontade de entrar, de ir direitinho ao gaiato que esburaca um dos canteiros à procura de um tesouro que há muitos anos lá deixei enterrado, e levá-lo por uma orelha ao cemitério de Leiria, à presença da dona Filomena, para que ela

- Quantas vezes é que eu já te avisei que não te quero a esburacar-me os canteiros, hã?