Ainda que quisesse contar como foi que tudo começou, não creio que fosse capaz de o fazer sem falsear factos.
Foi de repente. Será mais honesto dizê-lo. De repente, como quase sempre acontece. E de repente, uma mão de aliança no dedo a descasar-me os botões da camisa, numa fome de animal por bagas. E de repente, o contraste dourado de uma promessa esquecida a perder-se-me entre o negrume do peito.
Tinha um nome que não convém que se diga, duas filhas pequenas e um homem de negócios com quem casou, ainda muito nova, quando o sonho de ser arquitecta era ainda um ramo verde.
Ainda que quisesse contar como foi que tudo aconteceu
numa pensão barata da Pascoal de Melo. Não que não pudessemos pagar mais, mas porque ambos, de repente, quisemos assim.
- Também sei ser puta! O que é que ele julga?!
Dissera-mo uma vez, entre um copo de cerveja e um desabafo desesperado numa das raras conversas que tivemos no final do expediente.
- Também sei ser puta!
E não sabia. Sabia ser pouco mais que uma mulher carente que apenas conhecera um homem na vida.
- O que é que ele julga?!
E eu a não saber o que é que ele julga. A saber apenas que
…pouco mais que uma mulher carente.
E de repente - porque tudo acontece de repente -, nós, guiados pelo corrimão sombrio, gasto pelo suor das mãos, até ao primeiro andar de uma pensão barta da Pascoal de Melo. Não que não pudessemos pagar mais
onde uma senhora - se é que as donas das espeluncas podem ser senhoras -, uma mulher de cinquenta, entremeava romances da Maria com janeirar de molas.
- Tem quartos para alugar? – como se quisessemos mais do que um.
- Tem quartos... – na curva do corrimão sombrio
gasto pelo suor das mãos
- Tem... – no lugubre patamar da escada, onde uma senhora, ou uma mulher de cinquenta
- Por quanto tempo?
Uma vida inteira, um final de tarde, um “até que a coragem volte” para voltar para casa, para mais um bocadinho, para mais uma apneia de afecto no gélido mar do desengano.
E de repente, porque tudo acontece de repente, uma mão de aliança no dedo, a procurar honestidade no interior da minha roupa, enquato me provocava, com olhar de mulher carente, e não de puta, como ela achava que também sabia ser. Ainda que soubesse ser pouco mais que… à procura de conforto, não sexo, um abraço
não vingança
- O que é que ele julga?!
somente um beijo, sincero, desejoso da mulher que ainda achava ser.
Tão nova e já tão sem futuro! Cada dia menos um. Cada-dia, cada-dia, como pouca-terra, pouca-terra, num devorar de carril por um comboio sem destino, às voltas na serra até ao limite do carvão.
Tão nova e…
e a seguir a mim o quê?
A seguir a
- Tive um convite para ir trabalhar para Toronto.
…o quê?
Uma depressão?
Umas férias no Algarve, numa tentativa desesperançada de reconciliação? A última; como a primeira, sem destino, às voltas na serra em pouca-terra, pouca-terra, até ao limite do carvão.
Um psiquiatra?
- … muito bom!
aconselhado por uma amiga em processo de divórcio.
- … a mim foi o que me valeu!
Ou
- …uns copos e isso passa!
por outra, já divorciada.
Numa mezinha caseira de gin tónico e prozac (em simultâneo ou alternados).
E eu a pensar nisso agora (claro que não em Toronto, em Lisboa), dois meses depois da última vez em que
- Boa tarde.
sem perguntar
- Tem quartos?
sem perguntar
- Tem quartos para alugar?
Simplesmente
- Boa tarde. - como um silêncio absoluto.
- Boa tarde. - porque era sempre de tarde. Porque ela, uma mãe de família: duas filhas pequenas e um homem de negócios com quem casou, ainda muito nova, quando o sonho de ser arquitecta, ou feliz, era ainda um ramo verde.
E eu a pensar nisso agora (claro que não em Toronto…), dois meses depois da última vez em que
- Boa tarde. – na curva do corrimão sombrio, gasto pelo suor das mãos
sem conseguir contar como foi que tudo começou, sem falsear factos; com a nítida sensação que foi de repente.