domingo, julho 31, 2005

Rastejos

Debaixo deste sol imenso, deste céu azul e puríssimo, há gente que toma refrescos e olha as pernas das mulheres que passam. E eu sinto rastejar no fundo de tudo isto, com um arquejar que assusta e confrange, um infindável cortejo de tragédias...

José Rodrigues Miguéis, A Amargura dos Contrastes

[Paulo Ferreira]

Conspirações

Parece que Dan Brown, fazedor de dinheiro, lançará um novo livro em 2006. Depois de ler Anjos e Demónios e O Código Da Vinci, o público em geral aguarda pelo terceiro livro, que completará uma suposta trilogia. Com a saída de um novo livro agendada para o próximo ano, o público pode voltar a respirar. Dan Brown não desaparecerá.
Quem também parece sentir muita falta de novas obras de Dan Brown é a imprensa em geral. Provavelmente, o nome de Dan Brown, só por si, venderá centenas de jornais. No entanto, é sempre esclarecedor o facto de o Público, que é somente o melhor jornal nacional, dignar-se a colocar constantemente o nome de Dan Brown nas suas páginas. Claro que seria natural que um jornal de referência quisesse informar o público sobre os resultados económicos da ignorância nacional. Porém, o Público não se interessa pelos índices de vendas de Anjos e Demónios . Não, o Público afirma que «o livro de Dan Brown que encerra a trilogia de Anjos e Demónios e o Código Da Vinci vai chegar às livrarias portuguesas já em 2006.» Mais, o referido jornal interessa-se pela divulgação das sempre complexas tramas a que Dan Brown já habituou o mundo. Eu, que nunca li Dan Brown na vida, sei que «A Conspiração (2001) pega na descoberta de um objecto enterrado no Ártico para tecer uma trama de crise político-espacial.» Atente-se na prosa. Atente-se no jornalista (sem nome) que escreveu «uma trama de crise político-espacial», como se pensasse que, com aquela frase, conseguiria denunciar todas as tramóias políticas deste mundo, em particular, e do universo, em geral.

Com tantas menções a Dan Brown na imprensa (esta que aqui referi é só um exemplo), calculo que não exista apenas um interesse jornalístico de informar as pessoas. Julgo, pelo contrário, que existe um grande partilhar de interesses e de gostos entre público e jornalistas. Dir-se-ia, então, que os jornalistas estão, cada vez mais, perto dos níveis intelectuais das pessoas comuns. Dir-se-ia, ainda, que as pessoas comuns também andarão perto dos níveis intelectuais dos jornalistas. E, quem fala de jornalistas, fala do resto da sociedade, já que as pessoas comuns são, em alguns casos, pessoas com responsabilidades profissionais que ultrapassam a enxada e o martelo; são advogados, bancários, professores, etc. É por isso que não me espanto com aqueles que afirmam que o que interessa é ler alguma coisa, nem que sejam as célebres tramas de J.K.Rowling. Afinal, somos todos pessoas comuns.

[Paulo Ferreira]

Culto da juventude

Helena Matos, num excelente artigo no Público de ontem (aliás, ao sábado de manhã, ao dirigir-me para a tabacaria, a probabilidade de sair um bom artigo de Helena Matos é altíssima, penso), discorre acerca dos vícios da sociedade contemporânea, «vícios» do culto dos mais novos, da reverência e submissão a eles. Afirma Helena Matos, com a minha completa concordância desde sempre, sobre uma curiosa situação que nem todos enxergam: «Assim todos os anos somos confrontados com legiões de autores jovens, bandas jovens, jovens talentos, jovens realizadores, que em muitos casos, não fosse o serem jovens, nunca seriam mencionados». É um facto.

Mas um das razões do artigo também é abordada: Mário Soares. Isto é, a sua recandidatura «senatorial» às presidenciais de 2006. Diz Helena Matos: «O problema não é a idade de Mário Soares. Tal como, em situações semelhantes do nosso passado, o problema não foi a idade de Bernardino Machado ou Américo Thomaz. O problema é a idade das ideias que defendem». Aliás, «a recandidatura de Mário Soares e o entusiasmo que ela suscita no BE, a par do apoio que pode vir a ter por parte do PCP, remetem-nos para o tempo das frentes populares de má memória». Na verdade, Soares é a figura a que normalmente se chama o «Papa» de qualquer coisa. Há-os em diversos locais, os homens e mulheres intocáveis, seja na filosofia, literatura, cultura (os famosos «inquisidores» dos jornais portugueses), política, entre tantas áreas. Mário Soares pode fazer e dizer o que bem lhe apetecer, sem por isso haver alguém que ouse dar a cara numa crítica solitária. Aliás, assusta-me, no caso de Soares, a coincidência lexical entre candidatura e cândido - significando este algo muito puro ou inocente.

Para além da juventude, são estes «Papas» ou figuras românticas que fazem a diferença. Não sendo, por isso, positivo. Remata Helena Matos no final do seu artigo, numa opinião particularmente certeira: «E é tudo isso, esse sentimento de impunidade, essa espécie de renascimento do espírito da casa civil do dr. Afonso Costa, essa convicção de que existe uma aristocracia da República, que ressurge nesta candidatura. No início do século XXI, Portugal torna-se de novo no anacrónico palco da consagração do percurso excepcional daqueles, poucos, muito poucos, que sabendo de antemão que vão ficar para a História não resistem à tentação de acrescentar mais um capítulo. Certamente importantíssimo do ponto de vista pessoal mas política e nacionalmente grotesco. Isso sim é que é uma velha tragédia».

Aliás, a idade de Soares até é uma «lufada de ar fresco» (choquem-se), exceptuando a contrariedade de Mário Soares ser ainda Mário Soares. No entanto, para além deste caso, é curioso que um conjunto de sociedades que se advogaram combatentes dos totalitarismos (fascismo, nacional-socialismo, socialismo real,...) do século passado, tenham herdado este amor cego pelos «filhos do regime», com a única diferença visível na diferença desses mesmos regimes: enquanto Himmler tinha esperança num «jovem alemão» já nascido sob a sociedade e a educação ultra-arianas, as democracias derramam banhos de leite e mel sobre as crianças que nasceram, cheias de oportunidades e potencial, numa sociedade livre e democrática. Velhice, nos dias que correm, significa «amarras à mentalidade antiga» - e isso, para o «homem moderno», é doença.

[João Silva]

Today's art gallery


Elisabeth Shue

[João Silva]

sábado, julho 30, 2005

Movimento

uma parte do movimento é excremento.
a outra é desejo.
Não sai apenas esperma e Fluxo MATERNAL.
Caem Fezes das ancas.
Caem Fezes das ancas lateralmente, atravessam o ar, roubam o AROMA
escondido do invisível e FAZEM-NO aparecer de modo feio, CLARO,
MORTAL.
As Fezes são Mortais. Matam.
uma parte do movimento é esse excremento.
a outra é desejo.
Caem Fezes dos Pés da bailarina que é delicada e é bailarina.
Não pode ter vergonha das Fezes, a bailarina.
Se o Mortal tem medo da Morte tem medo de si, do corpo, do Ego,
da consciência, de pensar, tem medo do corpo, Medo da Morte e do
corpo e de tudo.
Não pode ter vergonha das Fezes, a bailarina.


Gonçalo M. Tavares, Livro da Dança

[Paulo Ferreira]

O romântico

Algumas mentes menos esclarecidas têm a infelicidade de cair na vulgar trapaça que a semântica reserva na apresentação popular de certos «ismos». Sem o hábito da curiosidade intelectual (i.e., conhecimentos «secundários» ou de documentos originais), a descontrução semiológica dos termos que se lêem poderá cair em seco num estômago vazio. A exemplo flagrante: para o menino e para a menina, o Romantismo poderá tomar os contornos de uma doutrina abstracta que recomende aos amantes proibidos que se atirem de um penhasco em direcção a um riacho encoberto em névoa, isto após se terem entregado aos prazeres amorosos na copa de um abeto. Ou seja, o Romantismo poderá equivaler, para quem lê ensaios sentado numa sanita, a um convite à loucura ou a uma cegueira real, ainda que de origem psicológica. Por oposição a um ser racional, o herói romântico será visto como um amante não correspondido, de cabelo desgrenhado e camisa aberta até meio do peito.

Goethe, no seu Werther (Die Leiden des jungen Werther), modela um protagonista homónimo que preconiza já uma determinada atitude que se atribui ao séc. XIX. A famosa obra de Goethe poderá ser um esclarecimento a uma ou outra pessoa que estaria em erro ao pensar que a atitude romântica nasce das circunstâncias sociais oitocentistas. Assim, não sem uma certa ironia, o senhor Johann Wolfgang transmite a Werther uma certa petulância humana que, ao contrário do que se pensa, não eleva o amor e a temática onírica acima de tudo o resto, mas sim impregna a sua visão das «coisas» de todo um sentimento subjectivo, impermeável às influência de outros: «Ah!, as pessoas razoáveis!», exclamei eu com um sorriso. «Paixão! Embriaguez! Loucura! Eis-vos impassíveis, totalmente desinteressados, vós, os homens da moral, que censurais o ébrio, vos afastais, horrorizados, do louco, passais ao lado como o sacerdote e agradeceis a Deus, como o fariseu, por não vos ter feito como um destes. Eu próprio já estive mais que uma vez embriagado, as minhas paixões nunca estiveram longe da loucura e não me arrependo de nada: é que, à minha medida, aprendi a compreender que todos os homens extraordinários que realizaram qualquer coisa de grandioso, que parecia impossível, sempre foram declarados ébrios e loucos.

Para quem anda confuso com a capacidade do sujeito alienado pelo amor de compreender, ainda que deliberadamente não lhes dê importância, os sentimentos que rodeiam o «amor», poderá ser uma situação esclarecedora.

[João Silva]

Ausência

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
por isso, de deixar alguns sinais - um peso
nos olhos, no lugar da tua imagem, e
um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
tivessem roubado o tacto. São estas as formas
do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
as coisas simples também podem ser
complicadas, quando nos damos conta da
diferença entre o sonho e a realidade. Porém,
é o sonho que me traz a tua memória; e a
realidade aproxima-me de ti, agora que
os dias correm mais depressa, e as palavras
ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de
mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.


Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês

[João Silva]

De olhos no céu


2003UB313, décimo planeta do Sistema Solar (imagem via SIC Online)

«A planet larger than Pluto has been discovered in the outlying regions of the solar system.

The planet was discovered using the Samuel Oschin Telescope at Palomar Observatory near San Diego, Calif. The discovery was announced today by planetary scientist Dr. Mike Brown of the California Institute of Technology in Pasadena, Calif., whose research is partly funded by NASA.

The planet is a typical member of the Kuiper belt, but its sheer size in relation to the nine known planets means that it can only be classified as a planet, Brown said. Currently about 97 times further from the sun than the Earth, the planet is the farthest-known object in the solar system, and the third brightest of the Kuiper belt objects.»


(Ler mais aqui)

[João Silva]

sexta-feira, julho 29, 2005

Oliver

Oliver sentia-se só. Oliver ficava todas as noites agarrado ao telefone. Oliver não telefonava para ninguém. Ninguém telefonava para Oliver. Oliver vivia ligado ao som contínuo do pequeno aparelho comunicativo. Oliver sentia-se só. Oliver era casado. Oliver tinha filhos. Oliver sentia-se só. Oliver vivia só. Oliver agarrava-se ao telefone. Oliver não falava com o telefone. O telefone não falava com Oliver. Oliver sentia-se só. As pessoas diziam que Oliver era maluco, mas Oliver não era maluco.

[Paulo Ferreira]

Deed of joy

now Ugly was the husband of
(as happens every now and then
upon a merely human plane)
someone completely beautiful;
and Beautiful,who(truth to sing)
could never quite tell right from wrong,
took brother Fearless by the eyes
and did the deed of joy with him


e.e. cummings, 73 poems

[João Silva]

Natureza morta


Paul Cézanne, Oignons et bouteille

[João Silva]

quarta-feira, julho 27, 2005

O que fazer quando os troféus saem da praia?

Para grande alegria de todos aqueles que não apreciam as tórridas temperaturas do Verão, a chuva reapareceu. A mudança climatérica pode parecer algo sem grande importância, até porque as vidas de todos aqueles que não suportam o Verão e o calor continuarão iguais, isto é, doentias, vazias, tristes e a roçarem o pretensioso. Porém, mesmo que uma parte substancial do quotidiano individual permaneça indiferente a coisas como a chuva e o calor, a verdade é que as vidas de figuras, de certa forma, doentias mudam consideravelmente com o aparecimento da chuva. A enxurrada de mulheres molhadas que entram nos cafés para fugirem da chuva é exemplo dessa mudança. Com efeito, nos dias de calor e de sol abrasador, o mais provável que aconteça a um indivíduo é ficar sentado todo o dia a espiar as esbeltas pernas da senhora que passa na rua (escrevo no singular porque, realmente, as senhoras que passam na rua não têm cara. São anónimas e, por conseguinte, são componentes de uma única pessoa que vai passando sempre pelo mesmo local). Pelo contrário, nos dias de chuva, as mulheres desaparecem ou enchem os cafés. Ora, o grande problema de existirem mulheres que enchem os cafés nos dias de chuva são, nem mais nem menos, as próprias mulheres. Com isto, não desejo ser mal interpretado, visto que não sofro de qualquer tipo de misoginia. As mulheres são um problema quando enchem um café porque, como se sabe, no Verão a única função das mulheres (bonitas) é ter um bronze de fazer inveja a qualquer crioula do Morro da Tijuca. Ou seja, as mulheres, não tendo sol, vêm para os cafés agarradas aos seus troféus de caça que, neste caso, não são mais que sujeitos dotados de uma ignorância muito elevada e que são conhecidos por serem todos iguais.

Com a entrada das mulheres e dos seus troféus nos cafés, surge um outro problema: como é que se lê ao lado de pessoas que só se conseguem exprimir através de gritos? A resposta para este problema pode ser muito complicada, no entanto, numa tentativa de arranjar um tipo de solução não muito trabalhosa, diria que o melhor é o indivíduo pegar nos seus livros e na sua perversidade e enfiar-se em casa, esquecendo, dessa forma, que está no Verão e que existem pernas queimadas na rua.

[Paulo Ferreira]

A ler

A entrevista a Nuno Júdice na revista Ler.

[Paulo Ferreira]

A geração dourada

Euclides, paranóico, matou-se com um tiro na cabeça.
Alceu, gordo, suicidou-se com um tiro no peito.
Lúcio, de corpo esbelto e bronzeado de praia, cortou os próprios pulsos, forçando um sorriso até ao último suspiro.
Marcial, eternamente apaixonado, suicidou-se com um tiro na mulher.
Em tempos, prometeram-se que seriam adultos felizes.

[João Silva]

Morar com uma mulher

Morar com uma mulher é a maneira mais rápida de acabar com o tesão, com o amor, até mesmo com a amizade. Porém as mulheres em geral querem casar, ter um lar e, dentro do lar, um homem gentil que lhes dê um ou mais filhos, e que saia para trabalhar toda a manhã e volte à noite. Não querem esse homem para amar e foder - evidentemente ficam mais tranquilas quando o macho as come, mesmo quando não estão muito dispostas - , querem companhia, provisão, segurança. Uma amiga minha, escritora, bonita, viúva de meia-idade, mora sozinha, disse que queria casar novamente para ter um homem "para botar o lixo lá fora".

Rubem Fonseca, Diário de um Fescenino

[Paulo Ferreira]

terça-feira, julho 26, 2005

Jardim

Foi numa tarde de Verão que te conheci. A primeira coisa que me chamou a atenção em ti não foi, como se poderia pensar, a tua beleza. Com efeito, eras bela. No entanto, foi a forma como te defendias das investidas do teu companheiro de mesa que fez com que me tentasse aproximar de ti. Embora demonstrasses para comigo uma indiferença quase assustadora, ganhei coragem para me levantar e dizer-te que, mesmo não te conhecendo, te admirava desde a Idade Média, por seres tão bela e tão astuta. Naquela tarde de Verão, a minha vida mudaria. E eu sabia-o. Foi por isso que, mal te viste livre daquele sujeito com feições de playboy, me sentei a teu lado. Foi ainda por isso que peguei na tua mão e te puxei para longe daquele lugar que nada tinha que ver com pessoas apaixonadas (estava apaixonado por ti, era um facto).
Já na rua, tentei soltar umas palavras desesperadas, típicas de quem sabe que o amor tem hora marcada para chegar e para voltar a partir. Porém, as palavras custavam a sair. Afinal de contas, estava apaixonado por ti. E, como se sabe, quando uma pessoa se apaixona por outra, não se encontram palavras para se prolongar eternamente a ilusão de um sentimento que é o amor. De qualquer forma, beijei-te na boca. Não resististe. Mas, num impulso de timidez, pedi-te desculpa. Disseste que não fazia mal. Beijei-te outra vez, como se quisesse prolongar aquele beijo e aquilo que estava a sentir por ti naquele momento para o resto dos meus dias. No fundo, sabia que todos aqueles chavões que me passavam pela cabeça eram uma farsa; sabia que estavas destinada a desaparecer indefinidamente. Nem sequer me espantei quando me disseste que aquele sujeito com feições de playboy do café era teu patrão e que tencionavas casar com ele. Como me dirias agora, «uma mulher tem sempre de passar a um estádio superior!».
Acabei por esquecer-me de quem acabou por deixar o outro sentado sozinho num banco de jardim, mas talvez tenha sido eu quem ficou com a penosa tarefa de me arrastar pela lama da noite. Também já não interessa. Agora és uma mulher casada. Agora tens uma carreira de advogada. Mas, só para que se saiba, foi numa tarde de Verão que te conheci. Foi nessa mesma tarde de Verão que te comecei a esquecer.

[Paulo Ferreira]

Variações em torno de um conceito III

Stanislaw só lera Kafka. Ocupava os seus dias a reler e a anotar os seus exemplares do escritor. Poder-se-ia dizer que vivera à sombra da influência deste.
Uma noite, numa estação de metro vazia, dois homens agrediram-no quase até à morte, rasgaram-lhe a mala e atiraram os seus livros e anotações para o poço da linha do metro.
Mesmo depois dos agressores saírem, Stanislaw deixou-se ficar estendido, de cara no chão. Sangrando. Sem dentes da frente. Os dedos da mão direita esmagados. Não se afligia com o seu estado. Na verdade, apetecia-lhe sorrir. Fechou os olhos e pensou: «Sou kafkiano».

[João Silva]

Variações em torno de um conceito II

Zuckerman, jovem poeta e desgraçado, gostava de dizer aos amigos que sofria. «Se há pessoas que sofrem, eu sou uma delas!», afirmava. Em casa com a família, Zuckerman embriagava-se de lágrimas quando alguém lhe dirigia a palavra. Dir-se-ia que o rapaz era o sofrimento incarnado no Homem. Nos momentos de maior comoção, Zuckerman gritava em pranto: «Eu sou kafkiano!». (A lágrima cai. Fim do terceiro acto).

[Paulo Ferreira]

Variações em torno de um conceito I

Numa altura em que os incêndios grassam por esse país fora e que centenas de bombeiros e de autarcas apontam o dedo ao vilão, aqui fica a origem da tragédia.



[João Silva]
[Paulo Ferreira]

Luz esplêndida

Escrever sobre mulheres é como escrever sobre um assunto sobre o qual muito se fala mas muito pouco se sabe. Escrever sobre mulheres pode tornar-se uma tarefa arriscada, já que pouco se sabe sobre o assunto, e os estudos disponíveis no mercado não são totalmente esclarecedores. No entanto, mesmo sabendo tão pouco sobre um assunto de tão árdua compreensão, não resisto a tentar divagar um pouco sobre um dos maiores mistérios das tardes de Verão, que é o seguinte: pernas de mulher, geralmente, bronzeadas.

Para quem passa várias tardes em cafés a ler ou, mais ocasionalmente, a conversar, este não é um tema novo. Com efeito, a presença de pernas de mulher bronzeadas no imaginário de um leitor de café é constante, mesmo que essa presença constante permaneça eterna e irreversivelmente na imaginação. A realidade, que muito pouco se relaciona com a imaginação, não entra nestas contas. Assim sendo, dir-se-ia que, o leitor de café é um privilegiado e, ao mesmo tempo, um desafortunado. Isto porque é a imaginação que funciona e é ela que não tem margem de erro. A realidade, quando não erra, simplesmente não funciona. Por isso, o leitor de café limita-se a assistir a um desfile constante de pernas bronzeadas que, na maior parte dos casos, não possuem cara. O pior é que o ritmo do desfile é frenético e a imaginação, ao contrário da realidade, não pára.

[Paulo Ferreira]

Arte Poética com Melancolia

Preocupam-me ainda as coisas do passado. Escrevo
como se o poema fosse uma realidade, ou dele nascessem
as folhas da vida, com o verde esplêndido de uma súbita
primavera. Sobreponho ao mundo a linguagem; tiro
palavras de dentro do que penso e do que faço, como
se elas pudessem viver aí, peixes verbais no
aquário do ser. É verdade que as palavras não nascem
da terra, nem trazem consigo o peso da matéria;
quando muito, descem ao nível dos sentimentos, bebem
o mesmo sangue com que se faz viver as emoções,
e servem de alimento a outros que as lêem como se, nelas.
estivesse toda a verdade do mundo. Vejo-as caírem-me
das mãos como areia; tento apanhar esses restos de tempo,
de vida que se perdeu numa esquina de quem fomos; e
vou atrás deles, entrando nesse charco de fundos movediços
a que se dá o nome de memória. Será isso a poesia? É
então que surges: o teu corpo, que se confunde como o das
palavras que te descrevem, hesita numa das entradas
do verso. Puxo-te para o átrio da estrofe; digo o teu nome
com a voz baixa do medo; e apenas ouço o vento que empurra
portas e janelas, sílabas e frases, por entre as imagens
inúteis que me separaram de ti.


Nuno Júdice, Teoria Geral do sentimento

[Paulo Ferreira]

domingo, julho 24, 2005

Línguas

Pequenas diferenças constroem grandes hábitos/nações, e separam o trigo do joio. A petulância que normalmente se atribui aos ingleses talvez não seja mais do que inveja histórica. Até porque Portugal é um país inevitavelmente na órbita geográfica (quero pensar que é só nesse aspecto) de França. Mas uma das diferenças mais interessantes está na linguagem, e mais especificamente nas diferentes importâncias atribuídas ao sujeito.

Repare-se nas particularidades da língua inglesa no que toca a presentear o sujeito de uma frase com maiúsculas. Os ingleses apenas o fazem perante dois: o Senhor («Thou») e eles mesmos - o «eu» («I»), para além da institucional «Her Majesty». A partir daí é fácil perceber o respeito que se tem pela tradição em tal país, nomeando as 3 pessoas mais importantes em Inglaterra: the Lord, the Queen and I.
Já em França a via é outra. Os míseros meses são escritos com letra minúscula, contrastando com o calendário que ainda hoje os franceses pedem: Brumário, Termidor, etc, etc, evocando uma memória murchinha com o desaparecimento do santo Rousseau.

Por fim, é possível comparar o I britânico com «Tudo pela Pátria» do velho Salazar. Quando um homem se esquece de si, o país está perdido. Problemas que não preocupam os ingleses.

[João Silva]

sábado, julho 23, 2005

Teatro «Vives e Calas?»

Ensaio Sobre a Cegueira, livro de José Saramago, vai ser transposto para o teatro (Teatro da Trindade). Adivinha-se que a peça, à semelhança da maioria das peças que vão surgindo ocasionalmente no panorama teatral português, pertença a um daqueles géneros a que se dá o nome de «Vives e calas?». Embora a expressão «Vives e calas?» possa ser adaptada a qualquer situação da vivência humana, é no meio teatral que essa mesma expressão encontra um maior protagonismo. Calcula-se, então, que Ensaio Sobre a Cegueira pertença ao género «Vives e calas?». É sempre bom repeti-lo, já que é através desta expressão e, como não poderia deixar de ser, através deste tipo de peças que se consegue perceber o teatro português e, de certo modo, o teatro em geral.

Não erraria muito se afirmasse que «Vives e calas?» é dos movimentos de lavor primoroso que mais se aproximam do chamado movimento neo-realista (português). Assim, à semelhança do neo-realismo (português), o «Vives e calas?» é rico em descrições da tragédia humana, da opressão e da loucura provocada por regimes sanguinários (de direita). A corrente «Vives e calas?» foca ainda, de modo quase sobrenatural, a dor pela dor. É como se o sofrimento de um actor fosse a única metáfora possível para todo o sofrimento do mundo. O certo é que a corrente «Vives e calas?», com o avanço de algumas teses progressistas, ameaça tornar-se numa corrente preponderante no meio português, embora o termo «preponderante» seja bastante discutível, pelo menos se se tiver em conta que o teatro português sem o complexo mundo do «Vives e calas?» não existiria. Dir-se-ia, assim, que o teatro português, afastado do movimento «Vives e calas?», seria como um barco a naufragar. Ou seja, seria uma inexistência, embora o termo «inexistência» também seja discutível.

[Paulo Ferreira]

Personagens inigualáveis #4: Sobchak



[João Silva]

Paixão de Verão II

Num banco de jardim, duas línguas cruzam-se, e uma mão adolescente penetra num espaço entre as calças e o ventre.
No banco em frente, trocam-se promessas de amor eterno, começando na puberdade.
No espaço entre os dois bancos, uma rapariga puxa as calças a um rapaz até aos tornozelos. O rapaz, rindo e com o pénis embriagado, diz à rapariga: «Amo-te tanto!».

[João Silva]

Paixão de Verão I

Maria havia chegado de uma exposição. O seu namorado, Platão, esperava-a à beira-mar.
- Estou cansada.
- Ainda me amas?
- Não foi grande coisa, a exposição...
- Já não és a mesma.
- Para a distância que é, mais valia não ter ido.
- Ainda me amas ou não?
- Se soubesse, tinha combinado outra coisa.
- Não me amas...
- Não, não te amo! Há muito que to queria dizer! - e, dito isto, Maria levantou-se e partiu.
Platão irrompeu em lágrimas. E, de olhos semi-cerrados, correu e atirou-se ao mar. Até porque o mar estava mesmo ali ao lado.

[João Silva]

An Upbraiding

Morri, é fácil vires agora
cantar-me aquelas canções
de que gostávamos os dois.
Porém, quando era vivo
nunca cantaste, ah nunca
quiseste. Agora, morto,
vejo-te a chegar ao pé de mim,
ao luar, vens em abandono.
O que eu não teria dado
para te ter tido mais vezes.
Quando também tu morreres
e estiveres aqui, comigo,
sem ser em estados diferentes,
será distante como dantes,
vai ser tudo muito diferente
ou nem por isso?


-Helder Moura Pereira, Um Raio de Sol

[João Silva]

Fog


Jennifer Connelly

[João Silva]

sexta-feira, julho 22, 2005

Tarde de Verão

Numa tarde de Verão, um casal de namorados beija-se loucamente. Numa mesma tarde de Verão, um rapaz com deficiências na fala lê um livro.
Dentro do livro, o rapaz com deficiências na fala encontra o casal de namorados apaixonados aos beijos. Por outro lado, o casal de namorados, que se beija ininterruptamente, não encontra nada nem ninguém, a não ser um suspiro angustiado de alguém que aguarda pela sua vez de ser feliz.

[Paulo Ferreira]

Não faça isto no supermercado

Enquanto esperava para pagar numa caixa de um super, lembrei-me de começar a criticar Dan Brown e Nicholas Sparks em voz claramente audível não só pelo meu interlocutor mas também por todos aqueles que estavam num raio de 10 metros. Se os olhos daquelas pessoas disparassem, nesta altura haveria um cadáver (irreconhecível) no Modelo de Tomar.

[Bernardo Sousa de Macedo]

N.: A minha amiga Mariana também teve a infeliz ideia de destruir Paulo Coelho no anfiteatro de uma faculdade. Descobriu rapidamente a quantidade de admiradores do senhor e (sobretudo) a sua fidelidade canina. Como a compreendo agora...

Cartilagens

F., homem apaixonado, gostava de dizer palavras bonitas. Por isso, no seu bairro era conhecido por «poeta». F., sendo um rapaz apaixonado e com queda para as palavras, tentava seduzir todo o tipo de mulheres que encontrava à sua frente. «Poeta, esticas muito a corda e a pinga da torneira acaba-se!», exclamou uma vez um marido desconfiado. Mas F. era apaixonado e nada nem ninguém poderia impedi-lo de apaixonar-se por todas as mulheres que via. F. era o amor e , como se sabe, contra o amor não há virilidade que resista. É por isso que todos aqueles machos bairristas eram, normalmente, traídos pelas suas mulheres e por F., que não tinha compromisso algum com aqueles maridos mas que deitava-se muitas vezes por dia em muitas camas de família. Com o tempo, os maridos de todas aquelas esbeltas mulheres começaram a habituar-se à traição. Porém, F., sempre no seu estilo romântico, apaixonou-se definitivamente por uma só mulher. Por conseguinte, F. abandonou todas as outras mulheres que haviam sido conquistadas pela força da palavra. C. era o nome dessa mulher privilegiada. Mas C. era casada, tal como todas as outras mulheres, com a diferença de o marido de C. ser muito ciumento. Com efeito, quando o marido de C. imaginava a mínima hipótese de ser traído, falava logo em tiros, morte, sangue. Ou seja, o marido de C. não era para brincadeiras.
Ora, numa tarde crepuscular, ao chegar a casa, o marido de C. vê o amor, ou, neste caso, F. na cama com a sua mulher. E foi nessa tarde que morreu o amor. Com um tiro na boca.

[Paulo Ferreira]

Aprender o trabalho do amor

Mas agora, que tanta coisa muda, não será a nossa vez de mudarmos? Não poderíamos tentar evoluir um pouco mais e assumir lenta e gradualmente a parte que nos cabe do trabalho no amor? Pouparam-nos a todos a sua dor, e desse modo nos escorregou para o meio das distracções, como cai, por vezes, na gaveta dos brinquedos de uma criança um bocado de renda verdadeira causando alegria e deixando de causar alegria e por fim ali fica entre coisas partidas e escangalhadas, em pior estado do que tudo o resto. Estamos estragados pelo prazer fácil como todos os diletantes e é-nos atribuída a mestria. E se desprezássemos os nossos êxitos, se começássemos desde o princípio a aprender o trabalho do amor, que sempre foi feito para nós? Se partíssemos e nos fizéssemos principiantes, agora que tantas coisas mudam?

Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laurids Brigge

[Paulo Ferreira]

Questões sentimentais

Naqueles tempos em que o conceito de modernidade parecia não ter qualquer tipo de significado, observava-te à distância como quem assiste, sem nada poder fazer, ao naufrágio de um navio. Sentavas-te no banco de jardim dos teus dias e, num truque de metafísica, sorrias. Depois, sem saberes que te observava à distância, copiavas versos das canções que ouvias para um papel cor-de-rosa e escrevias por baixo o meu nome (um pouco infantil, convenhamos). Era este o verdadeiro significado da palavra amor, sentimento partilhado sem qualquer tipo de pulsão física. Mas, à medida que o tempo avançava e que tu crescias na hierarquia urbana, os significados de amor e de modernidade começaram a confundir-se um com o outro. Talvez por isso não me tenha espantado quando disseste que não tinhas tempo para questões sentimentais.

[Paulo Ferreira]

quinta-feira, julho 21, 2005

A génese do homo partidarius

Leónidas, jovem banqueiro e indeciso político, indignava-se com as correntes a que o associavam, mesmo quando dizia que adorava a vida política. Em conversa com um amigo, tenta dissipar dúvidas: «Chamas-me fascista, mas sempre afirmei veementemente que não me identifico com essa ideologia. Aliás, no outro dia fui ver o Benfica e olha que não gostei do que vi.»

[João Silva]

Elixir da existência

Todos os dias era assim. R. acordava com o Sol a bater na janela, mas ainda atordoado com o despertar dos homens. Assim que lhe despertava a consciência, corria para a casa-de-banho e punha o gel no cabelo, meticulosamente aparcelado e eriçado num exemplo de perfeição estética. Quando acabava, limpava as mãos aos calções e sorria para ele mesmo ao espelho: agora sim, existia.

[João Silva]

Estranhos

No jardim, de manhã, o vetusto senhor esperava a hora definitiva em que o viriam buscar, para junto dos seus.
Sentado no banco, já há muito que havia desistido, e coleccionava novos rostos desconhecidos para preencher o espaço das paredes do seu quarto, agora povoado por estranhos.

[João Silva]

quarta-feira, julho 20, 2005

Em defesa do «mos maiorum»

O Homem, quando dominado pelo medo, fala por si e só por si. Não é, por isso, de estranhar que pactos e alianças antigas não façam sentido quando se teme a morte às mãos do «inimigo». A pusilanimidade é uma característica saliente da espécie. É por isso que este pobre ser aplaude a dignidade de John Howard, primeiro-ministro australiano, que ontem, numa conferência de imprensa em Washington, garantiu o «apoio incondicional do seu país à política de luta antiterrorista de Bush» (cito uma breve notícia do Diário de Notícias).

[Paulo Ferreira]

A ler

O artigo de António Costa Pinto sobre o best-seller de José Gil. Aqui fica um pequeno excerto:

Aqui a História condiciona para bem e para mal, mas para Gil ela é uma canga que não dá margem a mudança. Ainda que muito do diagnóstico de José Gil seja fascinante, o método parece-me representar um recuo preocupante para um ensaísmo sem ancoragem analítica no que de melhor tem sido escrito sobre a sociedade portuguesa.

[Paulo Ferreira]

terça-feira, julho 19, 2005

Uma inexistência

P. afirmava-se social-democrata. Mas, como a social-democracia não existe, P. vivia na ilusão. Dir-se-ia que P., à semelhança da ideologia que lhe preenchia o espírito, era um sério exemplo de inexistência.

[Paulo Ferreira]

Love and Hate



Em delírio, dois jovens sofrem uma brusca retaliação à sua estufa de decibéis ambulante. Perguntam-me: «Se não gostas de hip-hop e dance music, que raio de música gostas, homem?!». Apanhado de surpresa, o único nome que me salta é Leonard Cohen. Envoltos em risinhos de cara escondida, nunca mais ninguém me perguntou nada o resto do tempo. No entanto, avanço, para indignação do reino da juventude, que o meu álbum favorito é «Songs of Love and Hate». O favorito de todos os tempos.

Ao chegar a casa já tarde, tomo consciência que é mesmo capaz de ser o melhor álbum de sempre.

[João Silva]

segunda-feira, julho 18, 2005

Personagens inigualáveis #3: Col. Kilgore



[João Silva]

Some things never change

O Presidente Sampaio está nervoso. Ele nunca foi particularmente calmo. Sempre se mostrou irritável com adversários, engenheiros, economistas, professores, empresários e, sobretudo, jornalistas. Uma pergunta ou uma opinião diferente da sua sempre foram um problema. Mas, desta vez, ultrapassa as marcas. Qualquer coisa que se diga e não seja do seu gosto provoca logo reacções hostis. Perguntas triviais, questões fáceis ou problemas difíceis, tudo lhe parece malicioso. A tudo responde de modo inóspito. Já nos lembrou mil vezes que «não aceita lições de ninguém» e que «anda nisto há mais de quarenta anos». Mesmo sem saber o que entende por «isto», não deixo de me surpreender perante esta susceptibilidade. Reage como se tivessem posto em causa a sua honra, o seu passado e as suas boas intenções. É incapaz de separar a política das emoções, o que aliás já tínhamos detectado pela quantidade de lágrimas que verteu no primeiro mandato. E não parece que os seus afectos sejam os de um homem maduro, habituado a questões de facto e a políticas objectivas.

-António Barreto, Público 3/12/2000 (incluído em Novos Retratos do Meu País)

[João Silva]

Carla Sofia

Carla Sofia, promessa de mulher, tem consulta no dentista. Como toda a mulher que se tenha em grande apreço, Carla Sofia acha-se misteriosa. Por isso, Carla Sofia,quando chegar a hora de entrar no consultório do dentista com um ar triunfal, sentir-se-á misteriosa.

Durante toda a consulta, Carla Sofia usa todos os seus truques para seduzir o dentista, mas este, como bom profissional que é, limita-se a sorrir e, como não poderia deixar de ser, a perfurar as cáries da jovem mulher. Porém, Carla Sofia é estuta e, num golpe de perna, consegue vencer o profissionalismo do dentista (faz sexo com o dentista).

No final da consulta, o dentista pega no seu caderno e escrevinha umas palavras desinteressadas debaixo do nome da sua paciente. Carla Sofia, ao mesmo tempo que veste o seu fatinho extraordinariamente apertado, pensa: «Achou-me misteriosa!».
Os dois, médico e paciente, despedem-se. Carla Sofia sorri e abana as nádegas, enquanto o dentista transpira.

No caderninho do dentista aparecia a seguinte palavra: «Chupa».

[Paulo Ferreira]

Coisas que se perdem com o tempo

Só mais tarde me apercebi do investimento que o meu pai depositou na minha educação. Isto, durante anos de tormento privado e público, quando a amarga necessidade de encontrar um qualquer futuro para nós, à medida que se aproximava o nazismo, o deixou emocional e fisicamente exausto. Ainda me espanto com a ternurenta astúcia das suas maquinações. Não me era permitido ler nenhum livro novo até ter escrito, para sua inspecção, um resumo daquele que acabara de ler. Caso não tivesse percebido um determinado passo - as escolhas e sugestões do meu pai eram sempre criteriosamente direccionadas um pouco acima da minha cabeça - deveria ler-lho em voz alta. Frequentemente, a voz esclarece um texto. Se a incompreensão persistisse, tinha de copiar o excerto relevante na minha caligrafia - actividade que, geralmente, acabava por desvendar o filão.

George Steiner, Errata: Revisões de uma vida

[Paulo Ferreira]

domingo, julho 17, 2005

Livros e educação

O Paulo respondeu ao meu comentário sobre o lançamento de um best-seller qualquer para crianças, isto é, que eu atribuo a um público mais infantil, mas com que a autora supostamente tenta subjugar a inteligência universal, como o Paulo bem indica. A sua opinião parece-me clara, como já foi revelada noutro post, ou, pelo menos, o seu «sentimento»: uma angústia perante a mediocridade reinante. Mas, uma vez mais, digo que Harry Potter deverá ser um livro infantil que, ocasionalmente, apele a adultos sem mais nada para fazer, a «ignorantes» (pela definição de um indivíduo que desconhece, que ignora que há coisas bem mais importantes, e abundantes, para ler). Mas será apenas para crianças? Aí reside um primeiro «problema»: a tentativa, de Rowling e editoras, de o caracterizar como um livro «educativo», rico no que quer que seja.

Visto que ambos concordamos com a liberdade de ensino (talvez um mais, outro menos) nas escolas, no sistema educativo, na medida em que se concorda que a via pluralista é a mais indicada (ainda que, inevitavelmente, sujeita a algumas injustiças face à desigualdade que acabaria por acontecer na qualidade do ensino) para educar as crianças, também o mesmo se deverá passar quanto à «educação familiar», que hoje deixa muito a desejar. Mas há outra liberdade que sempre prezei: a liberdade de «ser burro». Isto é, numa democracia liberal idealizada (com o ênfase no «liberal» e nunca perfeita) será sempre relativamente fácil e útil identificar os mais ignorantes e os mais letrados, sendo que os iletrados não são necessariamente menos importantes nem menos «capacitados» para funções públicas, administrativas, judiciais e políticas. Uma antítese extrema reside na forma escarnecedora ou desconfiada como os pensadores são vistos e na aclamação dos «grandes líderes políticos actuais», célebres iletrados. Por muito que me incomode, acho que é perfeitamente natural e louvável que assim seja, que haja essa diferença (não se pense numa linha bem demarcada socialmente mas sim em algo bem mais individual), ainda que seja triste a forma de projecção individual para cargos públicos e governativos dos dias que correm, onde «vence» quem pega na bandeira e grita mais alto.

Caso não se respeite a desigualdade natural de desenvolvimento, aprendizagem e «crescimento intelectual», que vem dos tempos em que começou a educação do primeiro homem, é bem possível que se seja seduzido, parcial e subtilmente, pela assustadora lógica da engenharia de almas bem conhecida dos regimes (dos mais diversos quadrantes e origens políticas) que singraram na Europa, Sudeste Asiático e Pacífico entre 1920's e 1980's. Refiero-me a «engenharia de almas» descartando a chamada «engenharia social» visto que, ao querer impingir hábitos de leitura a crianças que procuram o livro pelo Harry Potter, e não o Harry Potter pelo livro, teria de se ultrapassar os mecanismos sociais para entrar no campo individual. Seria bem mais cívico, da parte dos mais velhos (não vejo outra forma de «cidadania», palavra delicada, senão a que parte dos mais velhos), educar as crianças em Dickens, Twain ou outros, visto que duvido que leituras obrigatórias de Henry Miller ou Burroughs não seriam bem aceites, mas isto é só uma projecção. De uma forma ou de outra, a primeira educação vem da transmissão do conhecimento e exemplo «de cima para baixo».

Na verdade, como grande adepto das liberdades individuais, uma das que mais prezo é aquela que muita influência vai buscar aos empiristas: a liberdade de experiências e, consequentemente, a desigualdade das mesmas. A partir daí, cada um constrói (na sua pessoa e pela dos pais/encarregados de educação) a sua via e campo de aprendizagem, segundo formas socialmente estabelecidas. Haverão, pois, os que desenvolvem um ávido gosto pela leitura e conhecimento, outros mais pontualmente, e ainda outros que não desenvolvem nada. Mas, finalizo, está no seu direito. Chama-me negligente Paulo, mas a verdade é que temos apenas de assistir optimistas, confiantes numa futura mudança de mentalidades em geral, enquanto uma grande parte de jovens adultos, e de outros menos jovens, cai na trapaça da mediocridade dos best-sellers, preferindo-os a livros no mínimo razoáveis. Afinal, não saber nada do Mundo faz parte das liberdades naturais dos homens.

[João Silva]

sábado, julho 16, 2005

Educação em casa

Diz o João que não partilha do meu desprezo pelo objectivo dos livros de J.K. Rowling, visto serem os livros da famosa escritora dirigidos a «um público claramente infantil». Compreendo a mensagem e a disposição do João. Porém, não posso deixar de acrescentar que os livros de Rowling não são dirigidos somente a um público infantil. Pelo menos, julgo que a pretensão de Rowling é fazer com que a sua obra chegue a todo o tipo de público. Prova disso é o facto de Harry Potter and the Half-Blood Prince, último livro da série Harry Potter a ser lançado para o mercado, ser escrito em duas versões, mais especificamente, em versão infantil e em versão adulta.

Por outro lado, surpreende-me o João quando refere que «Os Harry Potter's são livros infantis, nada mais, e entende-se o fenómeno por reacção mini-intelectual aos rapazinhos que querem ser Cristianos Ronaldos quando crescerem (a começar pelo penteado e desenvoltura do torso).» Surpreendo-me pela forma descontraída com que o João assiste a uma negação total daquilo a que se poderia chamar de «educação saudável». Bem sei que as pobres crianças terão oportunidades de crescer e de aprender mais tarde o que não aprenderam quando estavam a ler J.K.Rowling. Porém, não posso deixar de afirmar que é na infância e na adolescência que se adquirem conhecimentos que, mais tarde, se revelarão essenciais para o desenvolvimento intelectual de um indivíduo. Com efeito, a educação deveria ter um papel fundamental na vida das pessoas, e não na vida do Estado, como se refere muitas vezes. Deveria haver uma maior responsabilidade cívica, para que não existissem rótulos de indivíduos precoces (leia-se indivíduos que leram alguma coisa decente na infância) e de indivíduos eternamente incapacitados. Com isto não quero dizer que deveríamos andar todos, obrigatoriamente, a ler Rilke ou Dostoiévski aos dez anos. Não, digo é que deveríamos evitar os casos crescentes de indivíduos (que de crianças só têm o cérebro) que pernoitam numa livraria para comprar best-sellers, que muitas vezes não passam disso mesmo. E, quando digo «devíamos», digo «nós» indivíduos (separados do Estado) preocupados com o futuro do país.

[Paulo Ferreira]

Livrinhos

Não posso deixar de prolongar o texto do Paulo sobre o lançamento mirabolante (ontem à noite) do último livro infantil que tem como personagem um miúdo de nome Harry Potter. Há que louvar as palavras do Paulo quando diz que «não vale a pena perder tempo a discutir as hipotéticas capacidades literárias de J. K. Rowling, assim como não vale a pena explicar a alguém que um jogo de futebol, só por si, não completa o espírito de quem quer que seja». O que lembra a cara de choque de alguém a quem se revele não ter sido subjugado pelos livros de montra de Dan Brown, Paulo Coelho ou o (menos medíocre e mais meritório) Miguel Sousa Tavares. Aliás, toda esta azáfama rodeando o evento especial do lançamento de um livro infantil bem se poderia ter passado com os livros da Madonna (da, e não de, por subentendido pedido da própria a partir do momento em que se quis chamar Madonna), que seria o mesmo, com excepção de um público adulto bem mais extenso.

Mas, por outro lado, não partilho do desprezo do Paulo pelo objectivo dos livros de J.K. Rowling, assim como não partilho o desprezo pelos doutos romances do arquitecto do Expresso. Enquanto os primeiros terão um público claramente infantil, os segundos têm a missão de agradar a um público sem grande interesse em bons livros. O ridículo acontece quando tanto uns como outros ultrapassam o seu terreno (lembrar Mel Gibson com o seu Hamlet) e querem ser fenómenos de genialidade. Os Harry Potter's são livros infantis, nada mais, e entende-se o fenómeno por reacção mini-intelectual aos rapazinhos que querem ser Cristianos Ronaldos quando crescerem (a começar pelo penteado e desenvoltura do torso). Ambos os tipos de crianças terão o mesmo tipo de desilusão quando perceberem que perderam muito do tempo útil dos seus primeiros anos de crescimento.

Ainda assim, sendo um livro infantil, não há nada a apontar de negativo, sendo que eu nunca passei, na idade pré-púbere, de Stevenson, Twain e Dumas light. Pior é quando os leitores avulsos dos «romances» de Rowling são, não rapazinhos e rapariguinhas, mas «rapazolas» de 40, com responsabilidades familiares. A isso chama-se abdicar do privilégio de «homem da casa».

[João Silva]

«Harry Potter and the Half-Blood Prince»

O Pedro não lê livros, não ouve música e frequenta o primeiro ano de liceu há três anos, porém, não dormirá enquanto não acabar de ler Harry Potter and the Half-Blood Prince.

[Paulo Ferreira]

«Pessoas como nós»

Ao que parece, já está disponível nas livrarias o novo livro da série Harry Potter. Calcula-se que as filas de pessoas em busca do éter dos deuses sejam intermináveis. Não é caso para menos. Como dizia ontem um imberbe para as câmaras de televisão, « os livros de J. K. Rowling são os melhores do mundo!». Acredito que sim. Pelo menos, se se tiver em conta que a maior parte das pessoas (portuguesas) que lê os livros da série Harry Potter, lê, com igual afinco, autores como Nicholas Sparks, Margarida Rebelo Pinto e Paulo Coelho, é possível considerar-se que a escritora britânica é possuidora de capacidades literárias extraordinárias. Ou seja, se se tiver apenas em conta este leque de «escritores», é compreensível que um menino de trinta anos considere J.K. Rowling a melhor escritora de todos os tempos.

Porém, não vale a pena perder tempo a discutir as hipotéticas capacidades literárias de J. K. Rowling, assim como não vale a pena explicar a alguém que um jogo de futebol, só por si, não completa o espírito de quem quer que seja. Os fenómenos de massa estão implantados por esse mundo fora há muitos decénios e a única coisa a fazer é aplaudir. De preferência, sentado numa esplanada, a ler um bom livro.

[Paulo Ferreira]

A propósito de pessoas


René Magritte, Golconda

[João Silva]

sexta-feira, julho 15, 2005

Progénitos

A ratazana acorda todas as manhãs esfomeada. Dias há em que o desgraçado animal chega a devorar as suas próprias crias (a ratazana, sabendo que vive na selva, não sofre de doenças morais). No entanto, outros dias há em que a ratazana chora de vergonha. Afinal, mesmo quando devora a cabeça dos filhos, a ratazana sente fome.

[Paulo Ferreira]

Definição de vergonha:

Uma pessoa lembrar-se de que já perguntou a alguém se queria namorar consigo.

[Paulo Ferreira]

Desesperada Esperança

O vetusto Desesperada Esperança faz dois anos. Mérito resultante da tremenda constância do Bruno Alves ao longo de dois longos anos.

[João Silva]
[Paulo Ferreira]

Nota de campanha número um:

Lembrar aos lisboetas que não podem votar em Bárbara Guimarães.

[João Silva]

Sentimentais

Sorris e exultas prostrada na modernidade, garantem-me. De facto, encurtaste de forma trocista o espaço de cada degrau que leva à tua casa, como se eu tivesse pés tão rudes e pouco desenvolvidos que esperavas não subissem.
É verdade que o meu primeiro nome deixou de ter a dignidade mínima requerida pelo cálculo meticuloso da tua geometria de sentimentos, brilhante e orgulhosamente desenhada ao longo de noites sem leitura.
Na tua última carta a alguém, não me lembro quem, vinha escrito: «Para quê ter amor quando podemos ter certezas?».

[João Silva]

Oslo

Ao pôr-do-Sol, gostavas sempre de olhar para o relógio e dizer: «Todos os dias a esta hora, alguém se mata por mim».

[João Silva]

Brecht

«He [Bertolt Brecht] expressed the wish to be buried in a grey steel coffin, to keep out worms, and to have a steel stiletto put through his heart as soon as he was dead. This was done and published: the news being the first indication to many who knew him that he had a heart at all.»

-Paul Johnson, Intellectuals

[João Silva]

quinta-feira, julho 14, 2005

Jorge Coelho

Bárbara Guimarães tem sido alvo de difamação por parte de todos e mais alguns. É, mais ou menos, isto que se pode retirar das palavras que Jorge Coelho ontem proferiu. Acontece que, a menos que o mundo tenha mudado muito desde que ontem decidi dormir umas horas, Bárbara Guimarães, ex-namoradinha de Portugal, não é mais que esposa de Manuel Maria Carrilho, sapientíssimo filósofo/político português. Bárbara Guimarães não ocupa cargo algum de relevo no Partido Socialista. Bárbara Guimarães, à semelhança do seu marido, nem sequer pertence ao mundo da política. Portanto, das duas uma: ou Jorge Coelho é um grande demagogo ou perdeu a cabeça.

[Paulo Ferreira]

O desafio de Lisboa

As eleições autárquicas estão aí à porta. Para além do Porto (e a esperança de mais Rui Rio) e da minha cidade - que, generosamente, vai albergando os últimos comunistas, estrangeiros num mundo em mudança -, é em Lisboa a Câmara que, compreensivelmente, mais interesse me desperta. Deixando de ser uma questão de vereadores de este ou aquele partido, tornou-se um caso sentimental, para além das características políticas.

Ruben de Carvalho tem a missão que se lhe espera, uma louvável ortodoxia ideológica, uma reverência universalista aos valores do velho V. I. Ulianov, ainda que atenuada por uma (francamente duvidável, de tempos a tempos) clareza pessoal em assuntos mais terrenos, como o trabalho em vez dos trabalhadores, ou a oposição ao PS. Não é de esperar, no entanto, que seja levado a sério depois das corajosas e líricas homenagens que tem prestado a regimes desumanos fora de Portugal.

Maria José Nogueira Pinto lidera a candidatura de um CDS cambaleante, ainda desencontrado com a eleição de Ribeiro e Castro e, ainda menos, alheio à enorme queda que se avizinha depois da saída do mediatismo de Portas. Nogueira Pinto, pela sua evolução política sui generis, como uma boa parte do seu partido, nunca me despertou grande empatia social e política. No entanto, e como causa de um reconhecimento de mérito mais pessoal, a sua persecução de um ideal social (realizável), baseado numa noção de «solidariedade» característico das linhas democratas-cristãs, levou a um currículo digno, sério e com «gestões» eficientes de recursos e pessoas (em vez do insultusoso e militarizado termo «recursos humanos»).

José Sá Fernandes, por seu lado, lembra a velha geração oitocentista. Discute a situação de Lisboa e a sua candidatura nos cafés, com naturalidade. Reúne personalidades e intelectuais desencontrados e desiludidos com as gerações de dirigentes partidários actualmente (e futuramente) em funções. Aponta baterias a assuntos tão úteis e urgentes como a ultra-especulação imobiliária, como indicou Vasco Graça Moura ontem no Diário de Notícias. Enfim, para pessoas que tinham saudades da oposição de outros tempos pré-republicanos, ou que viraram ou querem virar as costas à inércia sonhadora dos políticos formados nas sempre activas na produção de fornadas das «Jotas», este é o candidato que se esperava.

E depois vem Manuel Maria Carrilho. Penteia-se bem antes de sair em pré-campanha, arranja as sobrancelhas, exibe Bárbara Guimarães e filho, sorri e sonha. Faz-nos a todos pensar num futuro radiante. De tão radiante que se adivinhará desastroso. A sua vitória está tudo menos assegurada, mas é bem provável que a consiga. A forma como Carrilho sorri nos cartazes de Lisboa parece sugerir a frase da famosa rainha de França: «Não tem pão, coma brioche», e em tempos de (eterna) crise, é a atitude que os lisboetas menos artísticos verão ser reflectida na actividade camarária quando as finanças apertarem. Eternamente principesco, Carrilho ilustra a lista, e a candidatura, mais poética a Lisboa. E, portanto, mais aérea.

Candidatura bem mais prosaica, mas também mais eficaz, é a de Carmona Rodrigues, de um PSD «menos PSD» do que os outros. Algo nele me faz lembrar Giuliani, talvez pela certeza de três valores comuns: segurança, seriedade e execução. Como primeiro trunfo está a forma generosa como, paciente e gradualmente, numa «política de pequenos passos», pisou o egoísmo ignorante de Santana Lopes, e ganhou um lugar e imagem simpáticos junto dos lisboetas. Saíu dos últimos anos de governo PSD/PP, e da Câmara de Lisboa, com uma imagem de sincera isenção e, exceptuando o natural orgulho político, permitido e louvável, Carmona Rodrigues não espera vir para a Câmara em busca do Mundo. Não quer «amar Lisboa e os lisboetas», quer trabalhar pela cidade e, importante, na cidade, coisa que tem faltado. Pela importância óbvia que tem na condução dos destinos da economia e investimentos, como capital de um país em busca de retoma do crescimento, Lisboa mantém-se solidamente como cidade e autarquia mais importante a ganhar. Mesmo que à cabeça da lista de um partido oscilante, Carmona Rodrigues é o melhor candidato. Para Lisboa, mas não só.

[João Silva]

Personagens inigualáveis #2: Pagoda



[João Silva]

Mestres da mentira

Much of Sartre’s time in the 1960s was spent travelling in China and the Third World, a term invented by the geographer Alfred Sauvy in 1952 but which Sartre popularized. He and de Beauvoir became familiar figures, photographed chatting with various Afro-Asian dictators – he in his First World suits and shirts, she in her schoolmarm cardigans enlivened by ‘ethnic’ skirts and scarves. What Sartre said about the regimes which invited him made not much more sense than his accolades for Stalin’s Russia, but it was more acceptable. Of Castro: ‘The country which has emerged out of the Cuban revolution is a direct democracy’. Of Tito’s Yugoslavia: ‘It is the realization of my philosophy.’ Of Nasser’s Egypt: ‘Until now I have refused to speak of socialism in connection with the Egyptian regime. Now I know I have been wrong.’ He was particularly warm in praise of Mao’s China. He noisily condemned American ‘war crimes’ in Vietnam and compared America to the Nazis (but then he had compared de Gaulle to the Nazis, forgetting the General was fighting them when he himself was having his plays staged in occupied Paris). Both he and de Beauvoir were always anti-American: in 1947, following a visit, de Beauvoir had written an absurd piece in Les Temps modernes, full of hilarious misspellings (‘Greeniwich village’, ‘Max Tawin’ [Mark Twain], ‘James Algee’’) and dotty assertions, e.g. that only the rich are allowed inside the shops on Fifth Avenue; virtually every statement in it is false, and it became the butt of a brilliant polemic by Mary McCarthy.

Paul Johnson, Intellectuals

[Paulo Ferreira]

Perfil

Observo o teu rosto despudorado, sabendo que não te apercebes da minha existência. Mesmo assim,sabendo que não te apercebes da minha existência e que não há nada que te impeça de fugires deste lugar, observo o teu rosto despudorado. Mas, daqui a poucos minutos, o tempo escapar-te-á das mãos e correrás em direcção ao infinito, enquanto eu ficarei aqui sentado a observar a tua partida triunfal (ou a forma como os teus pés encaixam nas sandálias). Desesperadamente.

[Paulo Ferreira]

quarta-feira, julho 13, 2005

Paralisia

Telmo tinha o sonho de lutar pela paz. De modo a cumprir o seu destino, Telmo tornou-se veterinário. A causa dos animais oprimidos seria defendida.
Telmo tinha uma forma especial de tratar os animais: por exemplo, quando eles tentavam resistir à vacina, Telmo aplicava-lhes um murro no focinho.
Assim, a vida de Telmo girou sempre em torno de três conceitos: técnica, efeito e função. Técnica: murro no focinho. Efeito: paralisante. Função: paz.

[Paulo Ferreira]

Tragédia humorística

Bertrand Russell, acusado de sofrer da funesta «doença antiamericana», afirmava que metade das suas mulheres tinham sido americanas.

[Paulo Ferreira]

Forget What did

Stopping the diary
Was a stun to memory,
Was a blank starting,

One no longer cicatrized
By such words, such actions
As bleakened waking.

I wanted them over,
Hurried to burial
And looked back on

Like the wars and winters
Missing behind the windows
Of an opaque childhood.

And the empty pages?
Should they ever be filled
Let it be with observed

Celestial recurrences,
The day the flowers come,
And when the birds go.


Philip Larkin, High windows

[Paulo Ferreira]

Coisas que fazem sentido

É no Verão que percebo o real contraste entre «claro» e «escuro». Exemplo: «pele clara»/«pele escura». Outro exemplo: «pele queimada»/«pele por queimar».

[Paulo Ferreira]

Praia

A caminho da praia, o rapaz pede a sua melhor amiga em casamento. A rapariga responde abnegadamente. O rapaz, lendo o artigo de Luís Delgado, solta para o ar um grande «Em que ficamos?». A rapariga, ao mesmo tempo que boceja, dá uma palmadinha na face do rapaz.

[Paulo Ferreira]

terça-feira, julho 12, 2005

Sofrer o Verão II

Acompanhado por uma mulher abençoada por Deus, um homem de óculos escuros, gel, chinelos e calções que gritam «estou aqui!», folheia um livro de George Steiner.
Nunca me viram desrespeitar a máxima «To each according to his needs», pois não?

[João Silva]

Sofrer o Verão I

Para uma criatura disforme e albina como eu, o Verão sempre teve efeitos perigosos, ameaçando a metamorfose num ser pegajoso e suado. Ainda assim, mesmo antes de perder os sentidos, sempre me vem à memória uma passagem de Camus no Estrangeiro:

«Era o mesmo brilho avermelhado. Na areia, o mar ofegava com a respiração rápida e abafada das pequenas ondas, que se sucediam umas às outras. Dirigia-me lentamente para os rochedos e sentia que a testa me inchava, sob o peso do sol. Todo este calor se apoiava contra mim, opondo-se ao meu avanço. E cada vez que sentia o sopro quente deste calor enorme na minha cara, cerrava os dentes, qpertava os punhos nas algibeiras das calças, retesava-me todo para triunfar do sol e da embriaguez opaca que caía sobre mim. A cada espada de luz surgida da areia, de uma concha esbranquiçada ou de um vidro partido, os queixos crispavam-se-me. Andei assim durante muito tempo.»

[João Silva]

Ideias que se repetem II

Independentemente da classe política de cada um (comunista, anarquista, jornalista, etc.), há uma coisa que é quase sempre motivo de aprovação geral: Angelina Jolie.



[Paulo Ferreira]

Ideias que se repetem I

O Verão tem várias coisas más. O sol, a transpiração e o fedor de terceiros são exemplos de coisas más, que têm mais probabilidade de aparecer no Verão. Porém, esta triste estação também trás consigo coisas interessantes. Exemplos disso são os milhares e milhares de pernas (femininas) bronzeadas, que se vão passeando pelas ruas do país. Seguindo a teoria de que, quanto menos se falar sobre um assunto, menos esse mesmo assunto se torna visível, o melhor é não abordar novamente as coisas más do Verão. Pode ser que essas coisas desapareçam (embora eu não veja como). Por outro lado, as coisas boas têm de ser sempre destacadas. Neste caso, como já foi referido, as coisas boas são as pernas (femininas) e, nalguns casos, os pés (femininos). Afinal de contas, é através deste tipo de coisas que o coração consegue suportar meses e meses de intenso calor e sofrimento.

[Paulo Ferreira]

No Aniversário da Libertação de Paris

«Os maquis portadores de simbólicas bandeiras
arrastam-se debaixo de árvores rasteiras
pois a gestapo só nas gigantescas árvores
se digna demorar a principesca vista
A mais altiva divisão do führer
blindada e couraçada numa espessa muralha de ferro
vê o caminho para a normandia
cerrar-se nas calosas mãos dos camponeses
mãos feitas para o pão e para a paz
mãos medida do homem não da máquina»


-Ruy Belo, País Possível

[João Silva]

segunda-feira, julho 11, 2005

A summer school portuguesa

A summer school portuguesa é o retrato perfeito do nosso do ensino universitário. A summer school portuguesa - ao contrário das summer schools que se vão realizando um pouco por todo o mundo - não é um sítio para aprender. Na summer school portuguesa paga-se entre 190€ e 600 € para assistir (e friso o "assistir") a 3 ou 4 dias de alucinantes conferências e de discursos monologados. Na summer school portuguesa não há avaliações, intervenção dos alunos, debate - há «diplomas de participação». A summer school portuguesa chega muitas vezes a não dar destaque ao mestre, ao professor, ao orador que convida porque é (mais ou menos assumidamente) uma feira das vaidades onde se pavoneiam diplomatas, ministros, presidentes de institutos públicos e wannabes do meio académico. À summer school portuguesa - que não passa, afinal, de mesa redonda de verão - não basta ser curso de verão ou seminário de verão: há que incluir um pomposo subtítulo em inglês logo a seguir à designação de summer school. A summer school portuguesa não cria, não ensina e não promove o verdadeiro conhecimento, aquele que está para além dos discursos de ocasião, das palavras bonitas, das frases feitas e das verdades lapalicianas. A summer school portuguesa revela microcosmicamente os defeitos da nossa Academia, mesmo quando tem professores de Harvard, Georgetown ou Oxford entre os seus chairmans e discussants. A summer schoool portuguesa exige dark suit em vez de vontade de aprender. A summer school portuguesa é uma merda.

[Bernardo Sousa de Macedo]

domingo, julho 10, 2005

Feist


Esta canadiana que, para além das suas colaboração com "aqueles senhores que nunca mais vêm a Portugal", tem desenvolvido uma interessantíssima carreira a solo estará por cá dia 25 (Fórum Lisboa) e dia 26 (Hard Club). Gostava de ir ouvir Gatekeeper ou Inside and Out. Já tenho companhia e só me falta o mais difícil nesta altura: arranjar bilhete...

[Bernardo Sousa de Macedo]

Boys don’t cry

Sentados a uma mesa, dois homens falam sobre dor. Encostados a uma parede, dois homens são espancados até à morte. Deitada na lama, uma mulher é violada. Sentados a uma mesa, dois homens falam sobre dor. Deitada na lama, uma mulher sente dor. Encostados a uma parede, dois homens não sentem dor.

[Paulo Ferreira]

Eternamente

Via-te na esquina da rua. Via-te nos transportes públicos. Via-te na tua varanda. Via-te em todo o lado. Mesmo assim, não te via o tempo suficiente. Foi por isso que te matei. Para sentir o teu último sufoco na minha pele. Eternamente.

[Paulo Ferreira]

Beleza na televisão

Vejo uma jovem actriz num programa televisivo dedicado às grandes estrelas da «sociedade». Quebrando a tradição, decido ouvi-la. Afinal, «a rapariga até está a chapinhar numa piscina!». Merece ser ouvida. Ouço, então, as vivências, experiências e confissões da jovem actriz. A determinado momento, a jovem actriz parte para as afirmações. A actriz afirma, entre outras coisas, que o seu sonho era «ir para aqueles países exóticos lutar pela causa dos animais desprotegidos». Fico contente, não pelo facto de a jovem actriz ter revelado tudo aquilo que é, ou seja, um cabelo oxigenado e um bonito par de seios, mas por a jovem rapariga ter confessado que tem sonhos. Apesar de estar deitada na piscina a beber um sumo «especial», a rapariga sonha. A rapariga, para além de decorar todos aqueles guiões complicados, característicos da ficção (trágica) nacional, e de se deleitar numa piscina de hotel, sonha com os pobres animais e, quem sabe, com os fracos e oprimidos. É de louvar. Mas, pensando melhor, será que há aqui dedo de António Guterres? Ou será que, seguindo os passos dessa grande humanista («gosta de pessoas e dos bichinhos em geral») que é Angelina Jolie, o mundo feminino não-pensante se fartou de anos e anos de humilhação e incompreensão? Não sei.

[Paulo Ferreira]

Ora nem mais

É como a história do violador e do violado. A vítima, para além de umas palmadinhas nas costas, ouve sempre em surdina "então o que é que ela esperava, com um vestido daqueles e umas pernas daquelas!”. No fundo, o violador aproveitou a exposição da vítima. Para os nossos idiotas úteis, as causas são profundas: o imperialismo, a pobreza, Bush, o Iraque etc… Eles não lêem, nem querem ler, as confissões dos terroristas (vide Rua da Judiaria)*.

Jorge Bento num mail publicado no Contra a Corrente

[Bernardo Sousa de Macedo]

*Na entrevista a que se refere Jorge Bento, disponível aqui, Omar Bakri Mohammed não tem pejo em dizer que nós não fazemos a distinção entre civis e não civis, inocentes e não inocentes. Apenas entre muçulmanos e descrentes. E a vida de um descrente não tem qualquer valor. Não tem santidade. Ou que o Islão também é a religião da guerra. Da paz, mas também do terrorismo...

Modern Times

Na véspera do casamento, afirmavam que eram felizes. Joana, 22 anos, cultivava religiões do Além - para «realçar o meu lado espiritual», dizia. Tiago, 48 anos, vestido da mesma forma que os filhos que o renegavam, garantia que o espírito nunca envelhecia e fazia saber que nunca o poriam na palma da mão. Casaram-se.
Menos de uma semana depois, Joana, espiritual e traída, metia uma bala na cabeça de Tiago.

[João Silva]

Personagens inigualáveis #1: Begbie



[João Silva]

sábado, julho 09, 2005

Leitura



[Paulo Ferreira]

Indício de Verão II

Numa escada rolante, um velho tenta observar a «beleza interior» de uma ninfeta.

[Paulo Ferreira]

Indício de Verão I

Dois jovens apaixonados atiram-se de um penhasco.

[Paulo Ferreira]

Vestido

Dentro de um automóvel, um homem discute com a sua amante. Momentos mais tarde, um homem chora dentro de um automóvel, sozinho. Numa loja de roupas, uma mulher desabafa com outra mulher: « A minha vida hoje mudou. Vou comprar um novo vestido. Vou passar a uma nova etapa. Vou ser feliz. O Francisco não me merecia!». Dentro de um carro, um homem conta o número certo de balas para o seu crânio.

[Paulo Ferreira]

Beleza

Normalmente, a beleza não costuma ser vista como um problema. É certo que, para indivíduos como eu, a beleza alheia (a feminina) é, especialmente no Verão, um grande problema. Mas não é sobre os problemas da depravação que me interessa escrever. Interessa-me, antes, abordar a temática da beleza como modo de vida.

Nos últimos anos, tem-se assistido a uma tendência crescente para ver a beleza física como um meio de afirmação profissional. Com efeito, cada vez mais são os seres que abdicam do ensino e da aprendizagem baseada no «livro», para abraçarem a fama. Todos nós conhecemos o caso do rapaz que deixa os estudos a meio para se dedicar, «de corpo e alma» (é assim que eles falam), a uma carreira de actor, de músico ou de cantor. Porém, surpresa das surpresas, para se ser cantor, músico ou actor, os estudos também são essenciais. Não basta ter «piada». Afinal de contas, nem todos têm a sorte de nascer com os atributos de uma Amanda Peet ou de uma Isabel Figueira. Nem todos têm a sorte de possuir uma beleza suprema, que lhes dê o direito de abdicar da leitura dos grandes clássicos da literatura, da filosofia ou da história, simplesmente porque nem todos são bonitos. Porém, a ideia de progresso, cada vez mais fortalecida pela televisão, faz com que alguns se esqueçam das suas limitações físicas e intelectuais. O que não deixa de ser um sinal de decadência. Provavelmente, no futuro, votar-se-á num político pela sua beleza ou pela sua indumentária. Por vezes, tento acreditar que aqueles que afirmam que «esse Bush» parece um macaco sofrem da doença da idade. Tento ainda acreditar que os sujeitos que arriscam a sua sorte num daqueles concursos musicais ou numa daquelas séries de Verão, tão típicas da nossa televisão, são criaturas que sofrem de um grave problema de erudição, erudição essa que faz com que os livros, só por si, não cheguem para uma educação lúcida. Mas, olhando para tantos músculos e para tantas caras feias que querem tornar-se bonitas, fico um pouco céptico.

[Paulo Ferreira]

Redenção num cemitério

Soergui-me e olhei para o rosto de Amy. Ninguém em todo o mundo tinha estas feições. Esta era a coisa mais espantosa do mundo.
O caixão estava à espera de ser tapado. O tractor estremeceu e depois rugiu e fez uma corrida abrupta sobre o solo, imprimindo mais marcas em forma de louros. Pegando em Amy pela mão, eu disse:
- Não é a melhor ocasião para um pedido de casamento. Mas, se é um erro, não será o meu primeiro erro contigo. Esta é a altura para fazer o que estou a fazer, e espero que me aceites.


Saul Bellow, A Autêntica

[Paulo Ferreira]

sexta-feira, julho 08, 2005

A Love Song for Bobby Long



A vontade de caminhar mais rapidamente para o próprio fim não é nova. Leaving Las Vegas (Mike Figgis) é, numa altura em que um pudor moral castrante se ausentou (em grande parte) do cinema americano, o exemplo mais expressivo e intenso do tema. Em A Love Song for Bobby Long, filme da realizadora (para mim desconhecida) Shainee Gabel, a personagem de Nicolas Cage no referido filme de Vegas converte-se numa outra talvez mais triste, embora não tão angustiante: Bobby Long. Interpretado por John Travolta, Bobby Long é um antigo professor de Literatura caído em desgraça por acção de outros mas, no fundo, também , por escolha própria. Tal como Cage, Bobby Long escolhe o caminho mais curto para o rápido «consumo» da vida: o álcool.

Em casa de Bobby mora também Lawson Pines (Gabriel Macht), seu antigo aluno, professor assistente, discípulo e, sobrevivendo, seu «biógrafo» e amigo. Tal como o seu «mentor», Lawson também escolhe a via da bebida como redenção dos próprios erros e, pensa, do seu falhanço pessoal e «profissional». A situação degradante a que chegaram tem uma causa comum para os dois: uma luta de bar, que deixa um irado, possesso e agressivo (Lawson, por uma mulher) e outro desfigurado, ferido, violento e agredindo o sobrinho do reitor (Bobby). No mesmo dia da luta de bar, o filho mais novo de Bobby Long é atropelado por o pai nunca o ter ido buscar, e a sua família abandona-o de vez.
A casa onde ambos moram é de Lorraine, uma antiga cantora, cujo funeral inicia o filme. Chegando demasiado atrasada para ir ao funeral, a filha de Lorraine, Purslane Will (Scarlett Johansson), vai ter ao endereço que a sua mãe lhe havia dado. Esse endereço é a sua antiga casa e, agora, casa de Bobby e Lawson. A razão pela qual eles lá moram vai além da amizade, e revelá-la num artigo menor como este, seria destruir o filme.



Note-se que a situação professor-discípulo entre Travolta/Bobby e Macht/Lawson não é exagerada, não é uma caricatura de Hollywood, deformando os intelectuais ao ponto de aparecerem como um bando de tipos excêntricos e arrogantes. Macht tem uma boa interpretação, a lembrar o estilo de abordagem de Luke Wilson em The Royal Tenenbaums (de Wes Anderson) onde, sem muito diálogo nem muita expressão facial, transmite uma noção de sentimentos e pensamentos interiores. Já Travolta opta pela via contrária, de explosão de sentimentos e opiniões, talvez revelando um homem já incapaz de se conter e incapaz de interiorização. Ainda assim, mesmo sendo Travolta um actor que, na minha opinião, nunca conseguirá ser uma personagem angustiada pela sua cara demasiado simpática e 70's movies, tem uma interpretação muito boa, revelando que, com a evolução da sua carreira, foi enriquecendo o seu leque de personagens expressivas, sentimentais, «centrais», tão acessíveis para um actor carismático (demasiado até, correndo o risco de estragar um filme contido como este) como ele.

Lawson é o que melhor define a evolução psicológica de Bobby Long ao longo dos anos de leitura e conhecimento de personagens: «See what it is invisible and you will see what to write. That's how Bobby used to put it. It was the invisible people he wanted to live with. The ones that we walk past everday, the ones we sometimes become». Bobby Long escolhera, portanto, fazer a sua redenção dos seus pecados pela bebida, tornando-se ele mesmo uma «história», e passando os últimos dias inspirando o futuro escritor Lawson. Processo de auto-destruição interrompido pela chegada de Purslane, que passa a encarnar o que, depois da proposta de Lawson, passa a ser a sua nova oportunidade de redenção, por mais que uma razão. Travolta, pela força interior e expressão, traz-nos uma personagem muito interessante, no mínimo, um homem debochado e com raiva pela vida, ainda que com bom coração. É uma boa interpretação, tal como a dos outros dois actores (estas 3 personagens - Bobby, Lawson e Purslane - valem o filme): Gabriel Macht e Scarlett Johansson. Quanto à última, abdico de adjectivos para o seu talento e presença em filmes - deixo, em vez disso, uma prova do mesmo...



[João Silva]

Pecado III

Antes de te levantares, olhaste-me muito rapidamente e deste-te conta que, naquele momento, foste amada em segredo, como sempre quiseste. Apanharas-me desprevenido, o que te fez sentir dona de alguém.

[João Silva]

Pecado II

A tua perna abraçava a outra de forma perfeita, como se todo o teu corpo fosse parte da natureza, muito anterior a mim.

[João Silva]

Pecado

«De um momento para outro, essa pequena, jamais tocada, sem nenhuma marca do demônio, pura e trivial - passou a desinteressá-lo. Tomou-se de um tédio irremediável, de um enjôo de tudo e de todos. Dias depois, arranjou, na prisão, sem que se soubesse como, uma arma. E, então, fez o seguinte: introduziu na boca o cano do revólver (teve a sensação de que praticava algo de obsceno) e puxou o gatilho. Sua chapa dentária descolou.»

-Nelson Rodrigues, A Mentira

[João Silva]

Trocadilhos da Antiguidade

«Então eu atraco-me logo a ela e digo: "Ó Palestra, minha linda, com que admirável cadência bandeias e remexes ao mesmo tempo as nádegas e a panela! E essa cintura, com que delicadeza se move! Feliz daquele que 'molhar a sopa' nessa coisa"»

-Luciano, Eu, Lúcio - Memórias de um Burro

[João Silva]

quinta-feira, julho 07, 2005

Nós



[João Silva]

Maria

Deitada numa cama, uma mulher espera por um pénis. Deitada numa cama, uma mulher sente dor. Deitada numa cama, uma mulher morre. Deitada numa cama, a Maria, que nunca sentiu dor nem sonhou com a morte, escreve uma carta para o namorado: « Manuel, agora que a minha mãe morreu e que a minha avó desespera na cama, confesso-te uma coisa: perder a virgindade com o Francisco fez-me descobrir que não estou apaixonada por ti!».

[Paulo Ferreira]

Momento Gonçalo M. Tavares II

A primeira vez que matei um homem eu próprio ainda não
era um homem.
Depois disso cresci rapidamente.
Não sei se foi das vitaminas se do sangue.


Gonçalo M. Tavares, O homem ou é tonto ou é mulher

[Paulo Ferreira]

Momento Gonçalo M. Tavares I

geografia pesada: pedra.
geografia leve: AR.
geografia de Peso intermédio: Corpo.
geografia exaustiva: deus.
(Deus não dá ESPAÇO ao Espaço).
Deus recusa o INTERVALO.
Deus não tem Intervalos.


Gonçalo M. Tavares, Investigações, Novalis

[Paulo Ferreira]

Verdades inamovíveis

Escreve o Bruno acerca do artigo de Fernando Rosas:

«Não sei se basear a política externa na História de um país será por si só suficiente. No entanto, se assim fosse o resultado seria uma associação à "superpotência reinante" que o dr. Rosas tanto abomina. A tradição da política externa portuguesa é a de associação à potência ou potências atlânticas, a Inglaterra e/ou Estados Unidos. O que se explica em grande parte pela localização geográfica do país. Que, pelo menos que eu tenha dado por isso, não se alterou nos últimos anos. É normal, portanto, que essa relação continue.»

[João Silva]

quarta-feira, julho 06, 2005

Fernanda

Fernanda andava na vida. Era, portanto, uma mulher amargurada, engolindo insultos, entre outras tantas sevícias que a vida impõe.
O próprio nome era ingrato. Másculo. Nem um «Maria» para amenizar e santificar. Não, Fernanda era Fernanda, soando a mulher que arregaçava as mangas para ganhar a vida.
Ao fim do dia, no entanto, destacava-se pela estável vida conjugal que parecia levar. Nem sempre fora normal no seu ramo, e no caso do seu local de trabalho continuava a não ser. As colegas mais novas juntavam-se para o esforço habitual: «Fernanda, ele é banana! Arranja um destes e sai para te divertires!». E era mesmo. O Sr. Inácio nunca se preocupara mais com o emprego da mulher do que com a programação televisiva.

«Fernandinha, qualquer dia vais acordar velha e ver que a tua vida e o teu marido nunca prestaram... Aproveita agora». A pressão exercida acabou por surtir efeito, rebentanto numa noite de Verão em que o marido, desempregado e eterno caseiro, lhe gritou numa inédita e breve discussão: «Nunca te arranjas como deve ser para mim, cá em casa!».
O abandono não se fez tardar. Os avisos também não. No primeiro dia de férias, já estava no aeroporto com um antigo cliente extrovertido. Destino: Havana.
Os risos cúmplices e o desassossego apoderavam-se de ambos na alfândega, quando Fernanda fora buscar as suas malas. «Eu levo», dizia o extrovertido. «Não, esta não», retorquia Fernanda, enquanto apertava a mão na pega da sua mala de viagem favorita. Lá dentro, os saltos altos novos, prenda de anos de casados, e metade do marido.

[João Silva]

Amor

«Convenceu-se que era por ele que estava apaixonada. Isto de apesar de visitá-lo só uma vez por semana. Se calhar dava-lhe jeito pensar-se apaixonada por alguém que já tinha morrido. A morte afecta muito os vivos. Põe uma pedra sobre o assunto. Assunto que, em vida, só traz complicações.»

-Miguel Esteves Cardoso, A Vida Inteira

[João Silva]

terça-feira, julho 05, 2005

25


Eva Green

[João Silva]

segunda-feira, julho 04, 2005

A Guerra e o Homem

A guerra, como conflito físico, letal, entre nações, povos e «facções» tem o dom de chocar as mentalidades mais enraizadas (demasiado enraizadas e abstraídas da concepção de «animalidade do homem») à entrada do séc. XXI. Infelizmente para nós, a guerra não é algo que possa ser suprimido através da iluminação das mentes das gerações vindouras, e muito menos uma situação ultrapassável através da racionalidade. Infelizmente para nós, o conflito é, na maioria das vezes, a irónica tradução do encontro de duas ideias racionais que, por acaso, se opõem num mundo bem humano, onde a Guerra é expressão da própria avidez tão humana de movimento e vitórias. Ernst Jünger, «suspeito» para muitos, em A Guerra como Experiência Interior (do original Der Kampf als inneres Erlebnis, numa tradução bem expressiva de Armando Costa e Silva), tem, provavelmente, uma das atitudes mais úteis e sóbrias sobre a guerra e a forma de aceitá-la:

«(...) Esforço-me, neste livro, onde quero firmar a minha paz com a guerra, por a considerar como algo que sempre existiu, que existe em nós, por lhe retirar, por completo, a crosta de representações, para libertar a coisa em si. Sobre a guerra, contemplada assim, a partir do seu centro, só há um ponto de vista possível, é o ponto de vista mais viril.»

[João Silva]

sábado, julho 02, 2005

«Meu amor, a morte!»

Uma bala alojada no crânio de um homem.
Uma mulher que entra em casa e se atira aos pés de um cadáver.
O choro convulso.
A roupa rasgada.
O sangue.
O chão.
O sangue no chão.
Uma carta em cima de uma mesa.

[Paulo Ferreira]

Uma brisa de Stalingrad

Josef acordou a meio da noite gritando um nome. Suava e sentia um enorme aperto no estômago. Acontecia o mesmo todas as noites, mas hoje era uma dor especial. Tinha tido um dia em cheio.
Saiu da cama, dominado por um estranho presságio que trouxera do pesadelo. Correu para o telefone querendo confirmar o seu trabalho. Pediu à telefonista do Partido que ligasse para Nikolai. «Esse número já não existe, camarada Josef S.», disse a telefonista. A memória longínqua dos seus actos presentes voltou-lhe então de repente, ainda que à revelia da ética que aconselhava.
Morto Nikolai o que se seguiria? Ou quem? Olhou para a repugnante foto dos dois, lado a lado, numa reunião e conheceu, por fim, o abismo que era a sua vida.
Tentou abrir a porta do quarto mas esta estava trancada, pelo menos enquanto não viesse a hora certa, a hora do pequeno almoço do ditador. Ao voltar, resignado, para a cama, lembrou-se que sempre achara que Nikolai o trairia um dia. Sorriu sozinho perante a imagem dos sacrifícios pessoais. Ao fechar os olhos, sorrindo, ainda disse alto: «Um dia, todos me agradecerão».

[João Silva]

Idem

«Confesso pois que sei tanto sobre discotecas como Marx sabia sobre a classe operária. Mas o pouco que sei não me anima.»

-Pedro Mexia, Grande Reportagem, 2/7/2005

[João Silva]

Arte da fuga

O Arte da Fuga faz um ano de vida. De vida, e não de «existência». Um dos blogs de eleição do Conselho Executivo do Lusitano. Um blog a continuar, esperamos.

Fim da Primavera de Leste

Dizer que todos os ucranianos que emigram para o nosso país são incompreendidos letrados, licenciados e doutorados pode ser um mito, mas da próxima vez que menosprezarem um senhor do leste bem aparentado lembrem-se: Joseph Conrad nasceu Józef Teodor Konrad Korzeniowski.

[João Silva]

Alone with everybody


Richard Ashcroft (mestre estético da música britânica dos anos 90)

[João Silva]