Intolerância religiosa é crime. Foto: reprodução da internet
Intolerância religiosa é preocupante
Por Thayná Ferreira
Religiões de matrizes africanas são as mais discriminadas.
Saiba o que leva as pessoas a praticarem crimes de ódio contra eles
Vivemos em uma sociedade preconceituosa. Isso é fato. No
quesito intolerância religiosa carregamos esse fardo desde a chegada dos
portugueses ao Brasil. A única religião aceita na época era o catolicismo, não
admitiam nenhuma outra que não fosse a deles. Foi então que as crenças dos
indígenas começaram a ser designadas como maléficas. A mesma coisa aconteceu
com as religiões de matrizes africanas. Muitos as consideram como religiões do
“demônio”. De acordo com o professor adjunto do Departamento de Museologia da
Universidade Federal de Sergipe (DMS/UFS), Fernando Aguiar, o crime de ódio
pautado em intolerâncias religiosas no país tem sua origem no próprio modelo de
colonialidade, tendo por base a dominação e transformação de homens e mulheres
de origem africana e seus descendentes. Segundo ele, Igreja e Estado juntos a
serviço de um Estado-patrimônio, que foi criado antes mesmo que a formação da
sociedade.
“A marca de cor é a de origem e muito pouco ou quase nada
mudou ao logo da República no Brasil. Não podemos esquecer que o campo
religioso é tenso em função das concorrências simbólicas que não se resumem a
meras questões teológicas, mas se valem delas para apregoar e justificar
estigmas vinculados à origem africana e às cosmovisões transplantadas do lado
de lá do Atlântico para o lado de cá. Nessa mistura de fé, referenciais
indenitários e teológicos, poder político e controle e colonização mental, a
demonização dos cultos têm mais a ver como estratégia de intolerância racial, que
se reveste de discurso religioso, mas que, na verdade, torna indizível, que
tudo isso ocorre em razão de ocupação e controle de poder”, informa.
Segundo o professor, você pode até ser branco, mas se você
for iniciado em alguma religião afro-brasileira, você é intolerado, perseguido
e preterido. Não por ser branco, mas por fazer parte de cultos. O professor
explica que o que leva aos crimes de ódio praticados contra o povo de Ilê Àṣẹ
(na língua yorubá: local de bênção, de energia, terreiro) é a manipulação
mental através de doutrinações por parte de cristão, como forma de eliminar,
intimidar e desqualificar os que praticam a ‘fé de pretos’.
“Eles desconhecem e/ou ignoram os ensinamentos de Cristo e
reinventam ao seu mero prazer e ambições um jogo perigoso de conversão, que vai
de encontro a tudo o que o Cristo ensinou. Demonizaram as ancestralidades
africanas como estratégia de dominação que reinventaram para não possibilitar
diálogos possíveis entre os diferentes e as diferentes concepções de mundo. ‘Aonde
houve escravidão, houve resistências’, ninguém se permite facilmente a ser
submetido à perda da liberdade e da própria fé e religiosidade. Nossos
terreiros, Ilê Àṣẹ, Abaçás, Mansu, Acè Kpó, Nzo, sempre foram e continuarão a
ser espaços religiosos de resistência. São territórios religiosos de uma África
reinventada na Diáspora Negra e a partir das vivências e experiências
brasileiras”, afirma.
CANDOMBLÉ
De acordo com o Babalorixá, Cristiano José dos Santos, o
principal fator é a questão histórica, com todos os discursos e práticas
discriminatórias que, infelizmente, existiram e se perpetua até os dias atuais.
As religiões de matrizes africanas trazidas pelos negros escravizados foram
descritas e conceituadas como “primitivas”, e durante muitas décadas foi negado
o seu sentido religioso. Segundo ele, assim sofreu todo tipo de discriminação
possível, por parte de todos que pregavam uma hegemonia religiosa. Havia, e
porque não dizer há, fatores e interesses diversos para que os Terreiros e seus
adeptos continuem sofrendo com atos de violência por uma parte da sociedade.
“O racismo religioso é uma violência diária sofrida por
todos os adeptos, mas, também, tem sido combatido pelo povo do Santo por meio
da união e da luta constante para firmar os nossos direitos. O preconceito e a
discriminação religiosa são batalhas bem complexas de vencer num país que
insiste em tentar mascarar a nossa falta de democracia racial. Outro fator
preponderante são os movimentos neopentecostais fundamentalistas, que têm
reforçados e muito esse cenário. Entendo que tais movimentos não representam a
comunidade evangélica no todo. Verdadeiros cristãos que seguem os ensinamentos
de Cristo, onde o amor é o sentimento que deveria nortear todas as ações do
cristianismo. As religiões de matrizes africanas são contrárias a qualquer tipo
de opressão que restrinja a liberdade de qualquer cidadão. Os nossos espaços
sagrados e toda a nossa prática dentro das casas de axé, e as ações sociais que
geralmente envolvem também a comunidade que está a sua volta, são pontos de
resistência a todos tipos de violência impostos pela sociedade, inclusive o da
opressão”, declara.
Segundo o Babalorixá, as religiões de matrizes africanas
sempre ocuparam um papel de resistência contra as diversas formas de opressão.
Desde a sua instalação nas terras brasileiras que seus adeptos lutam para que
seus direitos sejam de forma efetiva respeitados. “Essas lutas sempre foram em
torno da preservação de seus ritos e seus espaços sagrados. A busca por
equidade para todos os indivíduos que compõem a nossa sociedade, sem distinção
de gênero, poder socioeconômico, raça, sempre constituiu uma das principais
bandeiras da religião. A nossa Luta é constante e diária. A própria
Constituição nos garante a liberdade de culto e crença. Mas, uma das grandes
ferramentas nos dias atuais é o estatuto racial. Sabemos que apesar da
existência das leis que nos protegem e dão legitimidade e direitos às nossas
práticas, elas não atuam como deveriam. Por isso, em pleno século XXI acontecem
todos tipos de barbárie e violência contra o nosso povo, noticiado quase que
diariamente pela mídia. A sociedade e o poder público precisam compreender que
para vivermos em um estado real democrático de direito é imprescindível respeitar as diversidades e as diferenças. Não
suportamos mais tanta violência e preconceito e na maioria das vezes em nome
‘Deus’, aonde o Deus que eu acredito e professo é a força criadora do universo;
é a energia pura do Amor infinito e incondicional, que não comunga com nenhum
tipo de preconceito, ódio, violência, segregação, racismo, em seu nome”, diz.
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
De acordo com o professor Fernando Aguiar, a Constituição
Federal, ao reconhecer o caráter multicultural da sociedade brasileira,
assevera em seus artigos 215 e 216 a proteção das manifestações culturais e
religiosas das populações negras, garantindo o exercício pleno dos direitos
culturais, garantindo o acesso às fontes de cultura nacional, bem como o
incentivo à valorização e difusão de suas manifestações.
“Para além e ao mesmo tempo consubstanciado com as questões culturais e
patrimoniais, a Constituição Federal de
1988 estabeleceu como direito fundamental de todos os indivíduos a liberdade de crença e de manifestação desta, promovendo proteção aos locais de culto e liturgias (art.5*, VI), imunidade tributária dos
templos religiosos (art. 150, VI, alínea “b”), a proibição de criação
de religiões e cultos pelo Estado como forma de não permitir regimes de preferências
para determinadas religiões
(BRASIL,1988). Todavia, sabemos que não há direito fundamentalmente
absoluto, razão pela qual tais direitos devam ser contrapostos aos demais
preconizados pela mesma Constituição e nos tratados de direitos humanos. Convém
destacar que, se por um lado temos as garantias constitucionais, por outro a
sua aplicabilidade e interpretação são muito subjetivas, ao menos na prática
temos vivenciado. Fato que não inviabiliza a importância das conquistas legais,
mas, nos tornam vulneráveis à mercê de quem julga e aplica”, esclarece.
Segundo Aguiar, o Racismo é também institucional e nem
sempre direito é sinônimo de justiça, ao menos para as populações negras e as
populações de comunidades de Terreiros. “É difícil haver justiça aonde só
imperam desigualdades de oportunidades de acesso étnico-raciais e sociais.
Resistimos ao longo de mais de cinco séculos de História porque existimos.
Porque antes de nós, resistiram os que nos antecederam e que são nosso fomento
e referências de resistência ancestral. Construímos com nosso sangue, nossas
visões de mundo e nossas vidas um país que ainda não é nosso. Resistimos e
resistiremos, pois, temos raízes e somos sementes. O que pulsa em nós
afro-religiosos é a sede de reconhecimento, liberdade, garantias e justiça
social. Sobrevivemos à escravidão, às Diásporas Negras Atlânticas. Jamais deixaremos de ofertar e rogar em
nossos alteres pelo nosso povo. Seremos sempre gratos pela existência de todos
e todas que nos antecederam e lutaram pelo nosso sagrado na terra. Resistimos e
resistiremos porque existimos”, pontua.
NA ESCOLA
A lei 11.645/08 exige o ensino de cultura afro e indígena do
ensino fundamental ao médio. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), lei
n° 9394/96, insere o ensino religioso como disciplina e área de conhecimento
como as outras, porém em caráter proselitista, com participação de agentes
religiosos, a exemplo de padres.
Em 1997 ela é alterada e o ensino passa a não ser
proselitista. O professor Ramon Fonseca está trazendo esta discussão em sua
dissertação, segundo ele a sua pesquisa tem por importância central apresentar
a face da intolerância velada, institucionalizada e legitimada pelos poderes
(STF, MEC, ESCOLAS, Município etc.) e como isso pode contribuir para o fim do
preconceito e da intolerância.
“O país é um estado laico desde 1891, porém essa laicidade é
considerada, no meu ponto de vista, com base em autores Philipe Portier,
Giumbelli, como uma “laicidade flexível” e de “reconhecimento”. Tal
entendimento de laicidade se apresenta com a LDB de 1996 em que exige a
presença do religioso no espaço público, contrariando a Constituição Federal.
Em 1997 temos um ganho quando a LDB é alterada e não exige mais a consulta aos
líderes religiosos para construção do currículo escolar (conteúdos), promovendo
o pluralismo. Em 2003 é aprovada a lei 10.639/03 que exige o ensino de cultura
afro e em 2008 altera com acréscimo do indígena. Diferente da França que rompe
laços com a religião, no Brasil vivemos uma história de reconhecimentos de o
que é ou não religião, de quem tem ou não pertença ao espaço público. Esse processo
reflete em um ensino proselitista, em que as escolas em suas aulas usam de
elementos cristãos [católicos] e protestantes neopentecostais. Essa forma de
ensino reflete em discursos intolerantes, como, por exemplo, orações cristãs em
sala de aula com adeptos de religião afro; crianças serem impedidas de entrar
na escola com contas, mocas e senzalas (elementos sagrados); demonização dos
cultos afros, recusa de apresentação de temas voltados à religião afro;
utilização de espaço público (escola), como espaço para catequização e
conversão, aumento do discurso intolerante intencional ou por desconhecimento”,
explica.
Texto e imagem reproduzidos do site: cinform.com.br
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