General Freire Gomes
Artigo copartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 29 de novembro de 2024
Os homens que barraram o golpe
Como os então comandantes do Exército e da Aeronáutica resistiram às pressões de Bolsonaro, militares e ativistas. Felipe Moura Brasil para a revista Crusoé:
Em 2019, o então presidente Jair Bolsonaro e o ministro Dias Toffoli, indicado por Lula ao Supremo Tribunal Federal, tinham um incômodo em comum: a Operação Lava Jato.
Entre a vitória de Bolsonaro sobre o petista Fernando Haddad e a posse no cargo, seu filho mais velho, Flávio, havia sido atingido pela Operação Furna da Onça, desdobramento da força-tarefa no Rio de Janeiro, e o avanço das investigações durante o primeiro ano de governo trouxe à tona o histórico de funcionalismo fantasma em gabinetes ocupados pela família.
Já Toffoli, enquanto Lula estava preso, articulava a retirada de investigações da Lava Jato da Justiça Federal e o envio para a Justiça Eleitoral, transformando propina em caixa dois, o que foi apontado pelo procurador Diogo Castor de Mattos em O Antagonista como “novo golpe” da “turma do abafa” à operação.
O incômodo com o texto levou o ministro a tratar as críticas do então membro da Lava Jato como “ataques ao Poder Judiciário Eleitoral de nosso país”, pedir ao Conselho Nacional do Ministério Público uma investigação sobre elas e abrir de ofício o inquérito das fake news, entregando a relatoria ao colega Alexandre de Moraes, que, logo no mês seguinte, censurou Crusoé por revelar o codinome de Toffoli na Odebrecht.
O “amigo do amigo do meu pai” havia cobrado de Moraes “a devida apuração das mentiras recém divulgadas por pessoas e sites ignóbeis que querem atingir as instituições brasileiras”. Nascia ali o discurso de defesa da “democracia” contra “ataques”, embora estes nada mais fossem que verdades inconvenientes a Toffoli.
Na ocasião, Bolsonaro não só minimizou o caso (“agora vamos tocar o barco”), como também atuou para blindar o ministro contra a CPI da Lava Toga, participando com Flávio da pressão sobre senadores pela retirada de assinaturas de seu requerimento de criação. A aliança apontada na raiz por Crusoé foi mutuamente benéfica: Toffoli blindou Flávio no STF, paralisando investigações a seu respeito.
Faltou, no entanto, combinar o jogo com Moraes, que acumulou superpoderes de relator.
O diversionismo dos dois lados
A Polícia Federal, em seu relatório final de 884 páginas sobre tramas golpistas no governo Bolsonaro, divulgado em 26 de novembro de 2024, apontou que “os ataques às urnas eletrônicas” se iniciaram em 2019, quando “o grupo ora investigado já propagava essa ideia”.
Diz o texto:
“O objetivo era sedimentar na população a falsa realidade de fraude eleitoral para posteriormente a narrativa atingir dois objetivos: inicialmente não ser interpretada como um possível ato casuístico, em caso de derrota eleitoral, e, o mais relevante, ser utilizada como fundamento para os atos que se sucederam após a derrota do então candidato Jair Bolsonaro no pleito de 2022.”
A PF omitiu, no entanto, o objetivo imediato da estratégia bolsonarista: desviar as atenções do desmantelamento da Lava Jato, o primeiro e mais emblemático estelionato eleitoral do então presidente.
A rigor, o que se buscou desde 2019 foi manter o discurso antissistema da campanha, alterando sorrateiramente sua substância: do combate à corrupção real, que não podia mais ser combatida, para exploração de teorias conspiratórias sobre as urnas.
Como explica a PF, “os investigados sabiam que a narrativa falsa de fraude eleitoral, sendo disseminada por muito tempo, por vários canais, especialmente na internet (aplicativos de mensagens, redes sociais, vídeos, entrevistas etc.), em grande volume, seria extremamente eficiente em seu público-alvo”.
“Receber mensagens semelhantes de várias fontes é muito mais persuasivo. O endosso de um grande número de usuários aumenta a confiança na informação que está sendo transmitida, especialmente se a informação vem de um canal (ou perfil de rede social) com o qual o destinatário se identifica (afinidades ideológicas, políticas, religiosas etc.). Além disso, a repetição maçante das informações, mesmo que falsas, leva à familiaridade, e a familiaridade leva à aceitação por parte dos receptores. Por fim, os investigados ainda fizeram uso de pessoas com posição de autoridade perante o público-alvo, para dar uma falsa credibilidade às narrativas propagadas", afirma o relatório, corretamente.
O bolsonarismo havia passado da primeira realidade para a segunda — a das fantasias —, como eu, Felipe, expliquei na Crusoé em 2020, no artigo “Dom Bolsonaro del Centrão”.
O STF, então, aproveitou para dar ares de legitimidade, e até de heroísmo democrático, a um inquérito nascido para destruir a Lava Jato e censurar a imprensa. A partir de maio daquele ano, Moraes determinou operações contra blogueiros e empresários bolsonaristas — e o resto é história.
De um lado, um relator superpoderoso, incumbido sem sorteio de editar o debate público da maneira mais conveniente à Corte; do outro, reacionários aloprados posando de mártires das liberdades públicas e privadas. Tinha tudo para dar errado. E deu.
Mas poderia ter dado mais errado ainda, se não fossem dois homens pouco conhecidos, que, ao contrário de ambos os lados ainda beligerantes, nunca fizeram a menor questão de posar de salvadores da suposta democracia brasileira.
A recusa histórica
Nascido em 31 de julho de 1957, o general Marco Antônio Freire Gomes, durante o governo Bolsonaro, foi Comandante Militar do Nordeste, Comandante de Operações Terrestres e Comandante do Exército, exercendo este último cargo de março a dezembro de 2022.
Nascido em 5 de setembro de 1960, o tenente brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Jr., durante o governo Bolsonaro, foi chefe de Operações Conjuntas do Ministério da Defesa, Comandante Geral de Apoio da Aeronáutica e Comandante da Aeronáutica, exercendo este último cargo de abril de 2021 a janeiro de 2023.
Freire Gomes e Baptista Jr. resistiram a pressões de Bolsonaro, militares e ativistas para que anuíssem com um golpe de Estado travestido de medida constitucional, como Garantia da Lei e da Ordem (GLO), Estado de Defesa, Estado de Sítio, ou intervenção militar por interpretação “anômala”, como diz a PF, do artigo 142.
Os relatórios são fartos em evidências neste sentido, porque, além de ambos terem confirmado em depoimento a postura adotada em reuniões realizadas após o segundo turno de 2022, policiais encontraram as minutas de decreto apresentadas pelo então presidente, bem como mensagens de investigados atestando e lamentando a recusa de anuência, bem como determinando retaliação.
Eis um resumo:
Em 1º de novembro daquele ano, Baptista Jr. foi uma das autoridades que, segundo ele, “expuseram” a Bolsonaro “que não tinha ocorrido fraudes nas eleições”; “que todos os testes realizados não constataram qualquer irregularidade e que era preciso reconhecer o resultado”, “com o objetivo de acalmar o país”.
O então presidente “perguntou ao então AGU [advogado-geral da União] se haveria algum ato que se poderia fazer”, mas “Bruno Bianco expôs que as eleições transcorreram de forma legal” e “que não haveria alternativa jurídica”.
O então comandante da Aeronáutica “achou que o ambiente estava controlado, que não haveria qualquer tentativa de reverter o resultado das eleições”, mas, em 10 de novembro, um dia após a entrega do Relatório de Fiscalização do Sistema Eletrônico de Votação, feito por militares da Aeronáutica, veio um sinal em sentido contrário.
O Ministério da Defesa divulgou uma nota que manteve no ar a possibilidade de fraude eleitoral, apesar de nenhuma ter sido encontrada: "embora [o Relatório] não tenha apontado também não excluiu a possibilidade de existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral”.
Baptista Jr. disse à PF que “não foi consultado sobre a divulgação da nota”.
No dia seguinte, 11 de novembro, os comandantes das Forças Armadas divulgaram a sua própria carta, intitulada “Às Instituições e ao Povo Brasileiro”, reafirmando seu “compromisso” com a “democracia” e apontando o Congresso Nacional como o foro para se “corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos que possam colocar em risco o bem maior de nossa sociedade, qual seja, a sua Liberdade”.
No mesmo dia 11, no entanto, o então ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, encaminhou para o então comandante do Exército, Freire Gomes, um áudio com interpretação distorcida da carta, destacando a importância dela como “respaldo” para manutenção e intensificação das manifestações contra o resultado da eleição, até para deslocá-las à Praça dos Três Poderes, como ocorreria em 8 de janeiro.
“E aí o medo deles é retaliação por parte do Alexandre Moraes. Então, no entendimento deles, essa carta significa que as forças armadas vão garantir a segurança deles. Manifestação pacífica é livre. Então, se eles forem lá e forem presos as Forças Armadas vão garantir a segurança deles", acrescentou Cid.
Freire Gomes disse à PF que “tal interpretação foi dada de forma equivocada”; que “o objetivo era demonstrar que as manifestações não deveriam ocorrer em frente às instalações militares e sim no âmbito do Poder Legislativo”.
Em 14 de novembro, Bolsonaro entregou a Baptista Jr. a versão impressa do “estudo” do Instituto Voto Legal - IVL que embasaria o pedido do PL, partido do então presidente, feito no dia 22 de novembro, para anulação dos votos.
O documento apresentava a narrativa disseminada pelo argentino Fernando Cerimedo em live de 4 de novembro sobre “fraude”, mas, ao ler o relatório, o então comandante da Aeronáutica ressaltou a Bolsonaro “que o documento estava mal redigido e com vários erros técnicos e se tratava de um sofisma”, ou seja, um raciocínio concebido com o objetivo de produzir a ilusão da verdade.
Mensagens encontradas pela PF também mostraram que Mauro Cid confessou, com risadas, que “nosso pessoal que fez” uma publicação na internet que serviu de base ao “argelino” [sic], cujo sistema de nuvem ainda era abastecido por um contato militar do então ajudante de ordens.
Em 6 de dezembro, Mario Fernandes, então secretário da Presidência e interlocutor dos manifestantes acampados em frente ao quartel-general do Exército, imprimiu novamente no Palácio do Planalto o planejamento "Punhal Verde e Amarelo", que previa ações armadas, com possíveis disparos ou envenenamento, contra Alexandre de Moraes, Lula e o vice-presidente Geraldo Alckmin.
Fernandes já havia criado e impresso o documento em 9 de novembro e vinha supervisionando o monitoramento do ministro do STF com outros militares de forças especiais, os “kids pretos”, mas, no dia 6 de dezembro, Bolsonaro, Mauro Cid e seu comparsa Rafael de Oliveira estavam ao mesmo tempo no Palácio, como indicou o rastreamento de mensagens e celulares.
Em 7 de dezembro, Bolsonaro reuniu os comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Marinha, Almir Garnier, além do ministro da Defesa, Paulo Sérgio de Oliveira, e apresentou uma minuta de decreto para consumar um golpe com ares de legitimidade, impondo Estado de Sítio e, “como ato contínuo”, operação de GLO.
Os 'considerandos’, que seriam os ‘fundamentos jurídicos’, foram lidos por Filipe Martins, então assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência, de acordo com Freire Gomes.
O general relatou “que sempre deixou evidenciado” ao então presidente que “o Exército não participaria da implementação desses institutos jurídicos visando reverter o processo eleitoral”.
Em 8 de dezembro, a deputada federal bolsonarista Carla Zambelli interpelou Baptista Jr. com a seguinte indagação, após a formatura dos aspirantes à oficial da Força Aérea Brasileira (FAB), na cidade de Pirassununga/SP:
"Brigadeiro, o senhor não pode deixar o presidente Bolsonaro na mão.”
O então comandante da Aeronáutica respondeu:
"Deputada, entendi o que a senhora está falando e não admito que a senhora proponha qualquer ilegalidade.”
Baptista Jr. ainda relatou à PF que, em 9 de dezembro, quando viu Bolsonaro dizer a apoiadores, ao lado do general Walter Braga Netto, que “quem decide para onde vai as Forças Armadas são vocês!”, “começou a ficar preocupado, pois entendeu que iriam continuar a tentar uma ruptura institucional”.
No dia seguinte, 10, o então comandante da Força Aérea Brasileira, “com o intuito de reforçar a posição” de “que haveria uma transição democrática e pacífica no âmbito da FAB”, parabenizou no X a indicação de seu sucessor, feita pelo presidente eleito, Lula.
Baptista Jr., em outras reuniões, “tentava demover” Bolsonaro “de utilizar os referidos institutos jurídicos” e “deixou claro” que “tais institutos não serviriam” para mantê-lo “no poder após 1° de janeiro de 2023”. Ele contou que o então presidente “ficava assustado”.
Na reunião do dia 14 de dezembro, quando Paulo Sérgio de Oliveira disse que gostaria de apresentar aos comandantes uma minuta, Baptista Jr. questionou o ministro da Defesa:
"Esse documento prevê a não assunção do cargo pelo novo presidente eleito?"
Paulo Sérgio “ficou calado” e o comandante “entendeu que haveria uma ordem que impediria a posse do novo governo eleito” e disse que “não admitiria sequer receber esse documento”, que “a Força Aérea não admitiria tal hipótese (Golpe de Estado)”; e que “retirou-se da sala”.
O brigadeiro ainda confirmou que, depois de Bolsonaro “aventar a hipótese de atentar contra o regime democrático, por meio de algum instituto previsto na Constituição (GLO ou Estado de Defesa ou Estado de Sítio)”, o então comandante do Exército “afirmou que caso tentasse tal ato teria que prender o Presidente”.
No mesmo dia 14 de dezembro, o general Walter Braga Netto, vice na chapa presidencial derrotada, e o capitão reformado Ailton Gonçalves Moraes Barros, eleito em 2022 deputado estadual suplente do Rio de Janeiro dizendo-se “o 01 do Bolsonaro”, passaram “a realizar ataques” a Freire Gomes “por uma suposta postura de ‘Omissão’ e ‘Indecisão’”. Fizeram isso em diálogos depois identificados pela PF no celular de Ailton.
Braga Netto afirmou: “a culpa pelo que está acontecendo e acontecerá é do GEN FREIRE GOMES. Omissão e indecisão não cabem a um combatente”; “Oferece a cabeça dele. Cagão”.
Ailton completou: "Se FG tiver fora mesmo. Será devidamente implodido e conhecerá o inferno astral".
Braga Netto também encaminhou a Ailton uma foto da frente da casa de Freire Gomes com manifestantes pressionando pela anuência dele.
Freire Gomes confirmou à PF que as falas de Braga Netto se devem ao fato de ele ter se “negado a anuir com o plano de ruptura institucional”.
Falou ainda que “recebia ataques pelas mídias sociais, principalmente por meio da pessoa de PAULO FIGUEIREDO”, blogueiro então atuante em emissora de rádio e TV que faturou mais de 18 milhões de reais em verbas de publicidade do governo Bolsonaro.
Baptista Jr. também disse ter recebido ataques de Figueiredo, “dentre outros”, “recebendo o rótulo de ‘melancia’, ‘traidor da pátria’ etc.”.
Em 15 de dezembro, Braga Netto orientou Ailton Barros: "Senta o pau no Batista Júnior… Inferniza a vida dele e da família". Também orientou o destinatário a elogiar Almir Garnier.
Baptista Jr. confirmou que ele e sua família sofreram diversos ataques, pressões e hostilidades de apoiadores de Bolsonaro “para que a FAB anuísse com a ruptura democrática”.
No mesmo dia 15 de dezembro, Freire Gomes visitou Bolsonaro, frustrando de vez os reacionários aloprados.
Como concluiu a PF, “apesar de todas as pressões realizadas, o general FREIRE GOMES e a maioria do Alto Comando do Exército mantiveram a posição institucional, não aderindo ao golpe de Estado. Tal fato não gerou confiança suficiente para o grupo criminoso avançar na consumação do ato final e, por isso, o então presidente da República JAIR BOLSONARO, apesar de estar com o decreto pronto, não o assinou. Com isso, a ação clandestina para prender/executar o ministro ALEXANDRE DE MORAES foi ‘abortada’.”
Sem estardalhaço, portanto, os homens que efetivamente barraram o golpe não salvaram apenas o regime supostamente democrático brasileiro, mas também alguns de seus autoproclamados defensores.
Essa é a história que o STF deveria contar.
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com